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Capítulo 4

Rosalie

Estávamos a alguns dias de encerrar meu "treinamento". Sofri muito todo esse tempo. Andar de salto foi uma das piores coisas que tive que aprender. Eu tinha a impressão que iria perder os pés de tanta dor que senti.

Senhora Lia não tinha pena de mim. Mesmo me ouvindo reclamar e até chorar, ela não me deixava descansar nos momentos de dor. Eu não a culpava. O rei incubiu-a de me preparar para casar com ele. Eu precisava estar pronta.

Ela também inventou uma mentira para os funcionários. Disse que meu verdadeiro nome era Ivy e que eu estava sendo perseguida pelo meu pai que me queria vender. Por isso que me deu abrigo. Porém, temporário.

Andar com a máscara no início foi sufocante. Mas me acostumei. Tenho fugido bastante do príncipe Erick, pois ele me viu um dia e quis falar comigo. Eu corri.

Ele vive com as ajudantes de cozinha, flertando com elas. Senhora Lia já me pediu para manter distância dele. Principalmente porque se aproxima o dia da minha saída da cozinha.

Sei tão pouco sobre as coisas e isso é tão angustiante. Parece que o dia de amanhã é uma incógnita pior do que já é. Solteira hoje, casada amanhã. Ou plebéia hoje e rainha amanhã...

Hoje eu fui liberada de andar pelo jardim. Com a máscara. Não é bem um jardim, daqueles grandiosos. É um canteiro com uma pequena fonte e flores de diversas cores. Senhora Lia disse que as flores são cuidadas pelos funcionários. É um jardim nosso.

Aproveitei que estava sozinha e fiquei treinando como se deve andar. Até para andar se tem um jeito todo pomposo. Que saudade de subir nos pés de fruta lá do sítio. Que saudade de Madie!

-- Oi? -- Acabo tomando um susto com a voz levemente grave que ecoa muito perto de mim. Viro-me e vejo o príncipe Erick. Começo a dar passos para trás. -- Você deve ser Ivy, a empregada misteriosa e temporária da cozinha.

Apenas assinto. Quando eu iria dar a volta e ir embora, ele corre e fica na minha frente. Tomo outro susto. Por que os homens são assim? Imprevisíveis?

-- Não vá, por favor. Fique tranquila. Não vou encher você de galanteios. -- Ri. Como ele é bonito... -- Rânia disse que você é feia. E, sendo verdade ou não, eu não iria cortejar uma pessoa que esconde a face. Você pode muito bem ser um homem.

-- Então, muito prazer, Vossa Alteza.-- Faço uma reverência espalhafatosa. -- Ivo, ao seu dispor.

Ele cai na risada e eu também não me aguento. Como essa Rânia é insuportável! Tenho certeza que não sou tão feia assim. Custava pelo menos dizer que sou bonitinha?

-- Você tem bom humor. Eu gosto disso, Ivo. Pelo menos o motivo que Rânia disse sobre você esconder a face é verídico? Seu pai a persegue?

-- Sim, Vossa Alteza. -- Desvio dele já querendo encerrar essa conversa. -- Com licença. Não tenho autorização para conversar com ninguém.

-- Eu estou lhe dando essa autorização agora. -- Segura em meu braço. Seu toque não é bruto, pelo contrário, é leve. Como se tivesse medo de me machucar. -- Desculpe. -- Ele me solta e ri sem graça. -- Hoje é um daqueles dias que eu estava pedindo aos deuses uma pessoa anônima como você para conversar um pouco. E não, isso não é nenhum galanteio. É só um príncipe solitário precisando de alguém para desabafar.

Ao dizer isso, algo dentro de mim foi tocado por suas palavras. Eu torcia muito, quando mais nova, para que outra pessoa além de Madie surgisse para que eu pudesse conversar.

É tão vazio olhar para os quatros cantos e se limitar a conversar com animais para tentar tirar o peso que fica no coração. Vivi praticamente toda a minha vida conversando com o nada. Apenas monologando.

Olhei em volta e vi que estávamos apenas nós dois. Acredito que não tenha problema nenhum eu conversar dois minutos com ele. Se a Senhora Lia não souber, não terá com o que se aborrecer.

E confesso querer saber o que meu futuro enteado tem de tão importante assim para falar. Como anônima, posso usar isso ao meu favor e saber um pouco do que se passa com ele.

Caminhei até perto da fonte e me sentei. Ele assente e senta um pouco perto. Não muito.

-- Não curte muito falar?

-- Não tenho tanto assim para falar, Vossa Alteza.

-- Por favor, hoje e aqui, me chame de Erick. Pode soar estranho o que vou falar, mas se me chamares pelo meu nome eu me sentirei mais à vontade. Tudo bem? -- Assinto. -- Eu não sei como é a sua realidade porque sou um príncipe, nasci com muitos privilégios. Mas acredito não ser tão diferente da minha.

Será que ele estava contando uma piada? Ele é um príncipe. UM PRÍNCIPE! Ele nasceu em berço de ouro, cercado da família e de amor, teve tudo que quis, pode um dia ser rei... Qual a nossa semelhança?

-- Por que você acha que nossas realidades são semelhantes, Erick?

-- Conversando com algumas funcionárias, percebi que há uma pequena luta que vocês travam todos os dias para alcançar um lugar de honra na sociedade. Entre vocês, o topo é conseguir ser dama pessoal da rainha ou de alguma nobre do castelo. Sair da cozinha é tudo que vocês almejam. -- Ele olha nos meus olhos, mas rapidamente eu desvio. -- Eu também travo uma luta parecida. Na verdade, eu travava. Apenas desisti quando percebi que não adiantava, eu nunca iria alcançar um lugar de destaque como meu irmão alcançou.

-- Você inveja o lugar que seu irmão alcançou?

-- Não, não invejo. Apenas digo isso no sentido de que ele não lutou para ser o primogênito, o futuro rei um dia. Ele nasceu com isso determinado em sua vida. A mim só restou batalhar pra conseguir ter o meu valor. E isso é no geral. Acho que meu pai nem lembra que teve outro filho depois dele. -- Seus ombros caem e eu sei que está decepcionado, triste. Fiz isso tantas vezes... -- Você me compreende?

-- Compreendo os dois lados. -- Encaro a fonte que jorra água límpida. -- Sei como é se sentir obrigada a cumprir algo que foi estipulado sem perguntarem se é isso que você quer mesmo e também sei o que é tentar ser alguém, olhar para os lados e perceber que não vai adiantar nada todo esforço do mundo. Quem você é e será já foi determinado por terceiros.

Mais uma vez sinto seus olhos em mim e isso me traz um incômodo no peito. Eu estou conversando com o filho do meu futuro marido, percebendo que o rei não é lá esse homem tão maravilhoso que idealizei. Para um filho sentir-se assim, há uma grande falha na distribuição de amor e atenção dos pais.

-- Você falou com tanta firmeza... Não quer me contar o que te aflige?

Olhei para ele de soslaio e, para não deixá-lo pensar que só ele tem seus momentos frágeis, resolvi falar alguma coisa também.

-- Não sei direito quem sou. Isso me incomoda muito...-- Suspiro. -- Não tenho mãe e esse pai que me persegue querendo me vender não é meu pai. Apenas me criou até eu servir de alguma coisa para ele. Eu me sinto uma partícula de poeira no vento. Queria poder saber quem sou.

-- Profundo... -- Ele olha para o céu e depois para seu relógio de bolso. -- Preciso ir, Ivy. Ou melhor, Ivo. Mas foi bom falar com você. Gosto de não ter que te olhar o rosto. Acho que eu me apaixonaria facilmente. Até mais!

Ele me dá as costas e some. Coloco as mãos por debaixo da máscara para sentir minhas bochechas quentes. Ele disse que se me visse se apaixonaria facilmente?

Por que estou quente com isso? MEU DEUS!

Eu serei a madrasta dele. Como olhá-lo depois de ouvir isso? Melhor eu tratar de tirar isso da minha cabeça. Não quero ficar pensando nisso.

Mas... Como é se apaixonar? Será que é bom?

Curto mais um pouco da manhã deitada na grama. Encaro o céu azul e limpo imaginando como minha vida vai mudar daqui uns dias. Confesso não estar nenhum pouco preparada.

Sei que terei que cumprir minhas obrigações de esposa com o rei. Senhora Lia foi bem clara de que ele quer que eu tenha um filho. É uma das coisas que ele mais quer de mim, além da obediência.

Não me imagino mãe. Na verdade nunca nem me imaginei casando. Preferia viver no sítio com Madie até ficarmos velhinhas e morrermos.

Mas a vida não é como quero. Minha mãe escolheu por mim antes que eu pudesse entender o que era viver. Entendo que provavelmente ela quis me salvar já que meu pai estava morto e ela estava morrendo também. Mas não me conformo dela ter me dado de presente.

Ela poderia ter pedido para ele me deixar com alguma família de perto de onde moravam. Mas ela me deu como um presente. Ela sabia que ele teria total controle sobre mim a partir do que fez.

Sabia que ele iria me proteger e cuidar de mim, mas à maneira dele. E a maneira que ele optou foi me mantendo afastada por quase 22 anos e depois querendo casar comigo.

Talvez seja exatamente por isso que ele não quis contato comigo em nenhum momento. Ele tinha planos de casar comigo desde sempre.

Resolvo voltar para o meu quarto depois de ter almoçado, mas sou interceptada no caminho por Conrado. Ele tem sido um bom amigo, mas acredito que ele esteja presumindo que eu tenha mais do que amizade para oferecê-lo.

-- Vi que não pegou um fruta para comer de sobremesa. -- Ele me oferece uma maçã. -- Toma. Sei que vai se trancar ai dentro, então pegue para não sentir fome.

-- Obrigada, Conrado. -- Pego a maçã. -- Mas não faça mais isso, por favor. Podem entender que... que entre nós...

-- Eu gosto de você, Ivy. -- Ele me encara tão intensamente que fico desconcertada. -- Não rejeite minhas demonstrações de afeto. Elas são as mais sinceras possíveis.

-- Não é isso -- Respiro fundo encarando a maçã. -- Eu não vou ficar aqui muito tempo. Eu irei embora. E também não posso me envolver emocionalmente com ninguém. Não posso. Desculpe-me.

-- É por conta do seu pai? Você vai viver fugindo dele? Se casar comigo eu te protegerei, Ivy. Serei seu escudo, seu protetor. -- A voz dele soa desesperada. Como que fala algo agora?

-- Preciso tornar ao meu quarto, Conrado. Obrigada pela maçã.

Dou as costas e ando o mais rápido que posso até meu quarto, trancando-o rapidamente assim que estou dentro.

O que aconteceu com os homens hoje? Eles não estou normais. Não estão mesmo.

Ao cair da noite, Senhora Lia veio até meu quarto e sentou comigo na cama. Ela parecia séria, como sempre. Porem com um tom mais preocupado.

-- Tenho algumas coisas para passar para você, garota.

-- Pode falar, Senhora Lia.

Eu já nem questionava mais nada de novo que ela me trazia. No início eu queria saber o porquê de tudo. Acredito ser normal querer saber das coisas, mas as respostas eram sempre as mesmas.

" O rei que sabe. Sou apenas uma mensageira." Ou " Não questione, apenas aprenda. Tornará tudo mais simples quando parar de perguntar o motivo de tudo."

E eu aprendi. Ela chegava com prato de comida e me fazia comer com os talheres certos e beber com as taças corretas.

Me fazia perguntas sobre amenidades e eu tinha que responder exatamente o que os homens gostam de ouvir. Eu odiava essa parte.

Tenho certeza que o que quer que seja que ela tenha para me passar eu tirarei de letra. O segredo é só fazer. Nada de questionar.

-- Você vai decorar toda uma história falsa da sua vida e ser bem convincente ao narrá-la para terceiros. Está pronta pra isso?

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