Capítulo 3
Rosalie
A madrugada foi longa para mim. Meus olhos não conseguiam se manter abertos, mas minha mente não apagava. Eu estava um caco.
A luz entrava pela janela me fazendo desistir de tentar dormir. Tomei um banho e me arrumei para tomar café.
Quase todos já estavam à mesa quando apareci. Cumprimentei e fui me servir. Senhora Lia ainda não tinha chegado e isso me dava mais tempo para planejar uma reação menos assustada pra quando ela mencionar que vou casar novamente.
-- Oi -- Um rapaz se aproxima de mim, sorrindo amigavelmente. -- Sou Conrado, ajudante de cozinha.
-- Olá, Conrado. -- Sigo até a mesa e sento. Ele senta perto de mim. -- Você já deve saber meu nome. -- Ele assente. -- Trabalha há muito tempo aqui?
-- Cinco anos, Rosalie. Mas ainda mal acostumado. Você vai trabalhar de quê aqui?
Eu não sabia essa resposta. Qual o nome do trabalho que te prepara até você se tornar esposa de um rei? Eu não sei. Ainda bem que nesse exato momento senhora Lia surge cumprimentando todos e pedindo para agilizarem seus serviços.
Conrado se despede de mim e se afasta. Lia senta em seu lugar segurando uma caneca fumegante de café.
-- Assim que terminar, iremos até meu quarto. Pode ser? -- Assinto. -- Temos quatro semanas para prepará-la.
-- A Rosália está aqui temporariamente? -- A moça mal educada me ataca novamente.
-- Sim, Rânia. Agora não se entrometa onde não é chamada. Volte ao seu lugar.
Ela sai da nossa presença pisando duro. Abafo uma risada, mas me recomponho quando noto Lia me encarando. Peço desculpas e termino de comer.
Logo estávamos seguindo para o quarto da senhora Lia. Ela tem a face fechada, mas me lembra muito Madie. Ou eu devo estar imaginando coisas mesmo.
Assim que ela abre a porta, pede para que eu entre rapidamente. Assim que entro, noto que o quarto dela é três vezes maior que o meu e mais mobiliado.
-- Temos muito o que conversar, Rosalie. Você foi criada isolada do mundo exterior por ordens do rei. Ainda bem que sabe ler e tem inteligência para conduzir alguns assuntos. -- Pede para que eu sente perto da mesinha de estudos. -- Agora vamos apenas focar no seu modo de se portar.
-- Isso é tão... Confuso. -- Engulo seco. -- O rei é casado, não? Como vou casar com ele?
-- O que o rei faz não é da nossa conta. Primeira lição. -- Assinto soltando lentamente o ar. -- Separei três livros para que leia. Darei até amanhã pela manhã para que tenha concluído. Também tenho outra coisa para impor.
-- Pode falar, senhora Lia. -- Respondo enquanto folheio os livros.
-- Por enquanto, só saia do quarto para as refeições ou quando eu autorizar. Não é desejável pelo rei que você seja vista por qualquer pessoa da família real. -- Ela me oferece uma máscara. -- Use isso quando eu autorizar passeios.
Encaro a máscara por um tempo. Ela é feita de madeira fina e tem a cor preta. É um pouco bizarra, mas ordens são ordens. Facilmente eu usaria isso para assustar Madie.
-- Leve esses três livros para o seu quarto e dedique-se.
Ela me dispensa. Antes de sair, coloco a máscara. Alguns serviçais me olham esquisito, mas tento não ligar. Ainda não sei como reagir a isso tudo.
Eu queria ter alguma reação, queria muito, mas não tenho. Nada eu posso fazer. Não posso fugir, até porque nem sei me localizar ainda. E também tenho certeza que do portão eu não passaria. Ainda correria o risco de ser castigada pelo rei.
E se minha fuga fosse bem sucedida, eu não saberia sobreviver sozinha. Principalmente por ser mulher. Meu corpo inteiro se arrepia ao pensar qual seria o meu fim se homens maus me apanhassem vagando por ai.
Eu também não tenho muita escolha. Preciso ir aceitando casar-me com o rei. Isso me fará rainha. É mais do que eu poderia alcançar se tivesse meus pais vivos.
O que é que eu estou falando?
Se meus pais tivessem vivos seria muito provável que minha vida tivesse sido feliz. Eu seria criada em sociedade, teria amigos. Ganharia presentes no meu aniversário e poderia até ter irmãos, avós, primos.
Mas a vida tinha outros planos pra mim. Planos cruéis, ressalto. Sem pai, nem mãe, irmãos, família. Ainda bem que tive a Madie. Ainda bem.
O rei também poderia ter me criado. Eu poderia ser sua filha. Por que não? Ou uma inquilina. Mas ele tinha outros planos para mim. Casar com o seu presente.
Ele deve ter quantos anos? 50?
Que triste fim.
Volto ao meu quarto, jogo-me na cama e começo a ler o primeiro livro que tem por título COMO UMA MULHER DE FAMÍLIA DEVE AGIR.
As horas voaram e quando eu estava quase no fim do livro alguém bate na porta. O susto que tomei me fez saltar da cama.
-- Senhora Lia pediu que almoçasse em seu quarto. Aqui está. -- Conrado coloca a bandeja em cima da mesinha.
-- Obrigada, Conrado. Você é muito gentil.
-- De nada, Rosalie. Bom apetite!
Agradeço mais uma vez e fecho a porta. Já vi que serei prisioneira aqui também. Mas em um nível pior porque agora tenho que usar máscara ao sair.
Faço minha refeição enquanto finalizo o livro. Não é um livro que eu costumeiramente leria, mas ok. Nada tão catastrófico. Porém me despertou uma vontade grande de ter nascido homem.
Próximo livro: AULAS PRÁTICAS DE ETIQUETA.
[●●□●●]
Aiden Scott Bourbon
Assim que amanheceu, precisei ir até a ala dos serviçais. Erick estava metido demais naquela ala e isso poderia ser prejudicial. Para as moças, claro.
Meu pai mandou vários avisos, mas elas parecem não escutar mais a senhorita Lia. Talvez porque meu irmão saiba como enganá-las bem.
Assim que piso os pés no lugar, todos se alinham ficando ombro a ombro com o colega de profissão e com as cabeças baixas. Espero que eles me reverenciem para então falar.
-- Onde está a senhora Lia?
Ninguém ousava falar nada. Arrisco dizer que alguns nem respiravam direito. Era grande o medo de dizerem algo e isso for um erro. As vezes isso me irritava.
Olhei para cada um ali e me aproximei de um rapaz aparentando ter mais ou menos a idade de Erick. Ele ergue o rosto assim que cheguei perto.
-- Diga, por favor, onde está a Lia.
Ele me olhou por alguns segundos, que pareceram tão longos, e depois abriu a boca para falar.
-- A senhora Lia está conversando com a funcionária temporária que chegou, Vossa Alteza.
-- Não sabia que estavam precisando de novas funcionárias na cozinha. Obrigado.
Volto para o local onde eu estava antes e bato duas vezes o pé no chão como sinal para que erguessem suas cabeças. Eles obedecem.
-- Gostaria de deixar avisado, principalmente para as moças que são os alvos dele, que meu irmão Erick não pensa em assumir nada sério com nenhuma de vocês. Ele quer brincar, distrair-se. Então, para que não haja problemas futuros, não cedam aos galanteios dele. Erick é um príncipe e muito em breve casará com alguém da sociedade. Por favor, não caiam no charme dele. Estão avisadas.
Me reverenciam mais uma vez e eu saio daquele lugar calorento. Poucas, se não forem raras, são as vezes que piso na ala da cozinha principal. A chefe dessa ala é a senhora Lia, ela que entra em contato com a minha mãe para tratar de assuntos relacionados a isso.
Já estou cansado de ter que pedir pra Erick se afastar da cozinha, ou melhor, das moças. Preferiria que ele estivesse indo para aprender a cozinhar do que pra levar donzelas pra cama. Me daria menos dores de cabeças para abafar os rumores de que o segundo príncipe gosta dos lençóis das empregadas do castelo.
Assim que estou subindo as escadas para ir ao meu quarto, minha mãe vem ao meu encontro. Sua face não estava relaxada e quando a vejo assim sei que é porque está ficando cada vez mais difícil manter as esperanças de que meu pai dure pelo menos seis meses.
-- Não sei mais o que fazer. Nem a água de coco diária seu pai não quer mais tomar. Ele diz que é em vão. -- Suspira. -- Temos que adiantar seu casamento. Seu pai não quer mais ser ajudado.
Conversamos bastante sobre tudo e decidimos marcar logo o dia do baile de apresentação das moças. Um mês e nada mais. Esse tempo é suficiente para que as moças preparem-se. Tem todo um ritual de dança nesse baile. Até eu preciso me preparar para esse evento cansativo.
-- Mãe, a senhora Lia está precisando de mais funcionárias na ala da cozinha?
-- Como? -- Franze a testa. -- Não estou sabendo disso. Apesar de que para o baile teremos que contratar mais ajudantes. Talvez ela tenha começado a adiantar as coisas. Sabe como Lia é apressada, filho.
Assinto e me despeço. Volto ao meu quarto para refletir sobre os últimos acontecimentos. Quem diria que minha vida daria uma mudada tão drástica assim.
Eu já cogitava em me preparar para casar, mas a doença do meu pai me fez olhar tudo de forma tão banal. Eu só queria mesmo que ele vivesse mais 30 anos.
Eu cresci sendo influenciado a ter estabilidade. Ser estável, principalmente, emocionalmente. Era um tal de "engula o choro" ou "reis não demonstram fraqueza". Meu pai foi duro comigo, muito mesmo. Mas sei que era para o meu bem.
Sei ser grato e reconhecer que tudo que fez foi para que eu aprendesse a governar um país, mas muitas vezes desejei que Erick fosse mais velho que eu.
Foi, e ainda continua sendo, muito exaustivo ter que ler inúmeros livros, aprender bem o mapa de Valkandria e dos outros reinos do continente, saber escrever discursos, procurar meios para sanar as dificuldades do povo, ouvi-los...
E eu comecei tudo isso aos sete anos de idade. Já imaginou quão saturado estou? Então multiplica por mil. Mas é isso que fui destinado pelo destino para ser.
Durante o almoço, meu pai apresentou um quadro febril e teve a visita do médico. Eu e minhas irmãs almoçamos sozinhos. Normalmente quando isso acontece, nosso pai ordena que prossigamos com os afazeres normais. Nada de parar tudo por conta dele. Ele só permite que a minha mãe fique ao seu lado enquanto se recupera. Nós, na forma mais simples de dizer, somos excluídos de contemplar seus momentos frágeis. As gêmeas muito mais. Meu pai não quer que elas tenham mais lembranças ruins do que boas dele, a julgar que eram novas demais quando ele começou a definhar.
No final da tarde, recebi uma carta de Erick. Ele mandou quando estava no meio do caminho, para avisar que um pequeno povoado estava sofrendo com falta de cereais.
Lá vai eu ter que sair à cavalo para nosso plantio mais perto ordenar que sacas de grãos sejam destinadas a esse povoado. Como disse antes: é tudo muito exaustivo.
Principalmente porque ainda não tenho pessoas trabalhando para mim. Ainda não sou o rei. Sou apenas o aprendiz dele.
Quero muito que Erick fique ao meu lado. Mas ele é difícil de se convencer disso, de que é importante para Valkandria e pra mim.
Logo no início da noite, minha mãe me procurou avisando que nosso pai estava um pouco melhor. Ele tinha um evento amanhã no final da manhã e era importante pra ele estar presente nesse evento.
Meu pai odeia demonstrar fragilidade. Ele tem um grande inimigo, Narciso Monferrato, rei de Arkandria. Desde que me tornei mais entendido das ideias meu pai fala quão astuto e cobiçoso é esse Narciso.
Quando rei, espero não ter problemas com ele. Mas sei que isso é um sonho impossível de ser realizado. Só basta me preparar agora.