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Capítulo 2

Valkandria, ano de 548

Aiden Scott Bourbon

As melhores lembranças que eu tenho com meu pai passaram a ser um tipo de penitência. Elas ficam rondando a minha mente, fazendo com que um nó se forme na minha garganta e eu praticamente desabe sem controle.

Há mais ou menos 5 anos meu pai descobriu que tem uma doença que está destruindo seu corpo por dentro. Os médicos e cientistas de Valkandria ainda não sabem denominar essa doença, mas sabem que ela não é contagiosa.

Desde que meu pai parou de reagir a qualquer medicamento, eles vem fazendo testes e mais testes para conseguir entender o que está acontecendo.

Enquanto não chegam a uma conclusão, meu pai vai definhando. Os médicos foram justos e disseram que não sabem por quanto tempo mais ele vai sobreviver.

Eu sou Aiden Scott Bourbon, 26 anos, filho de Dimitri Bourbon e Francesca Schumann, irmão mais velho entre quatro filhos.

–– Você sabe que irá reinar, Scott, não adianta fugir disso. –– Meu pai diz pela milésima vez. Eu não consigo me imaginar rei e muito menos fazendo isso sem o meu pai ao lado.

–– Você ainda vai reinar por muito tempo, pai –– Tento dispersar essa conversa. –– Por favor, vamos só tomar banho de sol e aproveitar esse momento.

–– Sua mãe já está preparando as cartas que serão enviadas para as moças de boa família. Logo marcarão uma pequena recepção para que as conheça. –– Ele tosse e eu espero ele levar o tempo que julgar necessário para retomar a conversa. –– Quero presenciar seu casamento, filho. Quero passar a coroa pra você em vida. É meu último desejo.

Eu odeio quando ele fala assim. Simplesmente odeio. Meu pai é simplesmente um homem incrível e o melhor exemplo que eu podia ter para seguir.

Em resposta para sua afirmação, apenas assinto. Ele sabe que é minha única resposta. Eu não ligo em casar, sei até quem provavelmente escolherei para ser minha esposa. Ele sabe que isso não me preocupa.

Meu pai sempre deixou claro todas as obrigações de um rei, inclusive a de tomar decisões que muitas vezes não é do seu agrado. Não sou nenhuma criança birrenta que vai espernear e dizer que não vai casar. Não sou desses.

Valkandria é o maior e mais rico país dentre os cinco que compõe o continente Ândria. Cresci entendendo a dimensão da minha responsabilidade quando começasse a governar. Somos constantemente ameaçados por Arkandria, mas nada fazem devido ao nosso bom número de soldados.

A paz que hoje reina em nosso país é pelo imenso e incansável esforço do meu pai. Já deu para imaginar que homem incrível ele é.

–– Você sabe que os banhos de sol do seu pai não podem passar das nove da manhã, Scott. –– Minha mãe surge com sua frequente expressão de preocupada. Ultimamente ela tem carimbado bastante papéis em nome do meu pai. Sem contar os pequenos eventos que precisa comparecer.

–– Estávamos conversando, mãe. Onde estão meus irmãos?

–– Liz e Linna estão na aula de piano e Erick deve estar atazanando a vida de alguma pobre empregada do castelo. –– Reviro os olhos. –– Já não sei o que fazer com Erick. Queria que ele fosse compreensivo como você, filho.

Peço licença e sigo para ver se consigo falar com meu irmão. Ele é bem problemático e rebelde. Nunca entendi o motivo dele ser tão irresponsável e baderneiro. Teve a mesma educação que eu, porém sempre foi pouco esforçado. A verdade é que Erick nunca gostou de ser da família real.

Me dirijo para o local onde eu sei que vou encontrá-lo. Ele ama estar entre as empregadas, tentando levá-las para a cama. Ao longe, já ouço sua voz exaltada se gabando de alguma proeza inexistente.

–– Erick –– Chamo pelo seu nome ganhando um olhar nada amistoso. –– Precisamos conversar.

Ele se despede das três moças que conversava animadamente e passa por mim como um furacão. As moças me reverenciam e depois se dispersam. Sigo meu irmão.

Erick tem 23 anos, ótimo com espadas, aptidão incrível com mapas, porém relapso. Ele sempre disse que ser da família real é como uma lepra em sua vida, que acaba afastando todos que ele deseja ter proximidade.

Não é de um todo mentira, porém ele é bem exagerado quando quer. A verdade mesmo é que Erick gostaria de ter frequentado a escola junto com outras pessoas, queria ser livre para viajar entre as cidades, porém sabe o quão limitado sua vida é e permanecerá sendo. Isso o aborrece muito e o faz ser afastado de todos.

–– Para, Erick. Eu disse que preciso falar com você. –– Seguro em seu ombro para que ele fique parado.

–– O que foi dessa vez, Scott? –– Vira-se visivelmente incomodado. –– Nem conversar eu posso mais? São porque elas são domésticas?

–– Não entendo por que você cria essa barreira entre todos que se importam com você. –– Ele desvia o olhar. –– Não fizemos nada contra com você, Erick. Pelo contrário, tudo que fizemos é para seu bem. Não compreende isso?

–– Não, e nem quero compreender. Era só isso? –– Queria poder dar umas boas bofetadas nele. As vezes me falta paciência, que é uma das minhas grandes virtudes.

–– Preciso da sua ajuda com uma cidadezinha nova em Valkandria. Precisamos adicioná-la em nosso mapa. Sei que você gosta de sair um pouco do castelo e também sei que é bom com isso que pedi. O que me diz? –– Ele já me olha diferente. –– Preciso que vá e adicione essa cidade em nosso mapa. Também quero um relatório sobre ela. Valkandria tem crescido muito e, com certeza, você não dará conta do trabalho em breve.

Ele assente e se dirige comigo até a minha sala. Erick é teimoso, implicante, rebelde, mas fica manso quando tem a oportunidade de ser útil fazendo isso fora do castelo. Queria poder liberá-lo das obrigações de príncipe, mas quando nosso pai morrer eu só terei ele de apoio. Nisso eu terei que ser egoísta.

–– Partirei hoje mesmo. Ainda é cedo.

–– Tome cuidado e leve quantos homens forem necessários. Mande notícias ao chegar lá. –– Aviso enquanto vejo ele ir embora.

Olho no relógio e vejo que ainda falta um tempo para o almoço. Resolvo então voltar a estudar mais sobre meu país. Isso tem sido minha rotina desde que concluí os estudos com professores. Dei continuidade sozinho.

Depois de um bom tempo, alguém bate na porta. Autorizo a entrada e vejo minha mãe e seu sorriso contido. Suspiro e sorrio também.

–– Seu pai contou? –– Ela vem até mim e beija minha testa. Assinto. –– Sei que você irá escolher Brianna Wendvan, mas pelo protocolo você precisa ver todas as opções.

–– Não me importo com isso, mãe –– Fecho os olhos e respiro fundo encostando a cabeça no encosto da cadeira. –– Só não queria ter que lidar com o fardo de saber que meu pai não estará aqui por muito tempo.

–– Seu pai está cansado de tantos testes e medicamentos ineficientes, filho. E a rotina de rei também não está o agradando mais. –– Minha mãe sempre foi muito forte e sei que está sendo mais ainda agora. –– Eu quero que ele tenha descanso. E isso irá acontecer assim que ele não ser mais rei e ver você ocupando o lugar dele. Meu Dimi e eu sempre tivemos certeza de que você será um ótimo rei.

Conversamos alguns minutos e depois nos dirigimos até a sala onde fazemos as refeições. Meu pai já estava à mesa juntamente com as gêmeas.

Liz e Linna estão proximas de fazer 18 anos e estão altamente preocupadas. Sabem que é a idade que as moças começam a serem pedidas em casamento. Liz sonha em conhecer um bom homem, ter filhos e ser uma boa esposa. Linna quer escrever livros, participar de competições de hipismo e abrir um haras.

–– Você prometeu andar de cavalo comigo fora dos muros do castelo, Scott. –– Linna vem me cobrando isso faz semanas. –– Já estou começando a cogitar ir sem você.

–– Não começa, Linna Mariah. –– Meu pai repreende e ela abaixa a cabeça. –– Sabe que por ser mulher não pode estar andando por aí sozinha. Logo seu irmão irá com você.

Ela assente. Linna é um pouco hiperativa, o que faz ela ser extremamente inquieta. E ela fica pior nos dias de hoje, quando tem aulas de piano. Ela odeia.

–– Onde está Erick?

Explico ao meu pai a ordem que dei ao meu irmão. Meu pai sabe que muitas vezes eu faço isso para amenizar as insatisfações de Erick com as coisas do castelo. Ele assente.

–– Você vai casar, Scott. –– Liz ganha minha atenção. –– Será com Brianna?

–– Provavelmente. –– Respondo e ela sorri.

–– Mas você terá muitas opções, filho. Não vá conhecer as moças com a mente fechada. Permita-se cortejar todas até que tenha sua opinião formada. –– Ele me olha de maneira esquisita. Será que ele não gosta de Brianna?

–– Há algo contra a filha do barão e da baronesa do gado, pai? –– Bebo um pouco de suco.

–– Nada. –– Balança a cabeça em negação. –– Apenas não acho justo você determinar algo antes de avaliar.

Assinto. Ele tem razão. Posso ter um pouco de sentimento pela Brianna aqui dentro e provavelmente meus olhos a procurarão primeiro, mas não posso determinar algo antes de avaliar se realmente é o que desejo.

Brianna foi uma namorada que tive quando mais novo, mais ou menos 19 anos. Namoramos dois anos e depois ela rompeu nossa união. Não podíamos nos ver mais que duas vezes a cada seis meses e isso desgastou bastante nossa relação.

Sem contar que eu sempre tive que ficar mergulhado em livros e não respondia todas as milhares de cartas que ela me mandava. Acabei sendo relaxado com nosso namoro e ela terminou. Sofri bastante por uns oito meses, mas me recuperei.

Ainda restou alguma coisa aqui dentro que pode ser suficiente para propôr casamento. Mas irei seguir o conselho do meu pai.

Assim que terminamos o almoço, minha mãe seguiu com meu pai para descansarem. As gêmeas estavam com a tarde livre e tinham autorização para fazerem o que quiserem dentro do território do castelo.

Acabei abandonando algumas coisas e propondo passar a tarde com elas. Liz ama nadar, então passei um tempo nadando com ela na nossa piscina e depois fui andar à cavalo com Linna. Ela implorou para sairmos do castelo, mas eu não fui. Não estava muito no clima de ir longe cavalgando.

Quando a noite caiu, fomos servidos com um banquete. Nem sabia que tínhamos algo em especial para ser comemorado.

–– Não há motivos especiais, apenas quero agradar meus filhos de vez em quando. –– Justifica meu pai, com um sorriso feliz no rosto. –– Comam! Aproveitem.

O clima foi muito tranquilo. Linna contava piadas super sem graça enquanto que meu pai morria de rir delas. Acho que ele está rindo do esforço de Linna em ser engraçada.

Minha mãe tocou e cantou para nós um pouco. Era bom ouvi-la cantar. Liz entrou na onda e também cantou um pouco. Depois recitou poesia.

Nem parecia que meu pai estava doente e que todos estávamos preocupados com ele. Era uma noite diferente. Parecia que meu pai tinha encontrado um motivo a mais para continuar se mantendo vivo. Gostaria muito de saber qual.

Já estava quase amanhecendo quando cada um se recolheu para seus aposentos. Só faltou o Erick entre nós. Espero que ele não saiba que aconteceu algo assim na sua ausência. Erick tem complexos de que não o amamos ou que ele não é tão importante para nós.

Aquele cabeça dura...

Tomo um banho demorado, visto algo leve e me dirijo até a pequena varanda do meu quarto com uma garrafa de vinho pela metade nas mãos. Estou na mesma todos os dias. Beber e olhar para o céu. Faça chuva ou noite estrelada.

Não sei que sensação é essa que oprime meu peito e que me faz querer beber para afugentar isso. A quem eu quero enganar? Eu sei exatamente o que é isso.

Eu não estou pronto para ser rei e não estou pronto para casar. Também não estou pronto para perder o meu pai. Será que estou pronto para alguma coisa nessa vida? Cada vez que paro aqui para beber e refletir sinto que a cada dia que passa eu me sinto cada vez mais incapaz.

Será que serei incapaz de amar a minha esposa também?

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