Resumo
Em uma época bem distante, existia a tal lei do presente. Em gratidão a alguma benfeitoria, era possível ofertar o que você tinha de melhor, o seu mais valioso presente. Foi justamente isso que a mãe de Rosalie fez ao oferecer a própria filha ao rei de Valkandria, que tinha ajudado-a em seu parto, e acabou morrendo logo depois de ter entregue a garota. Rosalie cresceu isolada e com a certeza que assim que chegasse aos seus 21 anos seria levada ao castelo. Ela só não esperava que ao chegar lá iria ser atingida com a notícia de que seria muito mais que o presente de um rei, mas a rainha dele. Treinada para sustentar mentiras a fim de que não descubram sua origem e nem que é apenas um ato de gratidão ao rei, Rosalie se vê entre a realeza e acaba descobrindo toda verdade sobre seu destino no dia do baile oficial onde será escolhida como noiva do rei. Ou seria do futuro rei? Embarca comigo nesse romance de época cheio de reviravoltas e surpresas. Te garanto que do jeitinho que está sendo delicioso para mim narrar será deliciosamente igual para você que irá ler. Plágio é crime. Seja criativo (a)!
Capítulo 1
Valkandria, ano de 548
Rosalie
Se me perguntassem sobre minha descendência, de quem sou filha e quais lembranças tenho dos meus pais, com muita dor no coração eu responderia com a seguinte frase:
Eu sou apenas um presente.
Mas, depois que completei 21 anos, a minha resposta mudou. Hoje, com muita raiva e descontentamento, encheria a boca e diria:
Não te interessa. Vá à merda!
-- Rosalie! Rosalie! -- Ouço os gritos esgoelados da única figura materna que tenho, Madeline. -- Eles chegaram!
Fui criada como um animal preso e sem chance de escolher meu futuro. Muito se cogitavam se eu realmente existia, isso é o que Madie sempre me contou. Mas o rei me abandonou aqui para que minha existência não atrapalhasse sua boa fama.
Eu até entendo ele. Quem iria querer que soubessem que ganhou uma garota como presente quando essa lei já está extinta?
Está tudo muito confuso, não é? Para facilitar, vou explicar um pouco do que sei. Tenho certeza que ainda tenho muito o que saber sobre essa história.
Madeline me contou que há muito tempo atrás, mais especificamente 21 anos, o rei de Valkandria, Dimitri Bourbon, tinha se infiltrado no país de Arkandria, reinado por Narciso Monferrato, para coletar informações junto com alguns espiões. Madeline chama de missão suicida o que o rei fez, mas é justificável quando o cenário no tempo sugeria que Arkandria iria invadir Valkandria para uma tomada à força de poder.
Em um determinado período turbulento, quando Narciso descobriu que Dimitri estava em suas terras e autorizou uma caçada sangrenta em busca do espião, Dimitri se escondeu em um vilarejo não muito próximo do castelo do rei.
Madeline narrou que Dimitri invadiu a casa de um camponês e obrigou que todos ficassem quietos. Nessa casa estavam minha mãe e meu pai.
A lei do presente ainda era válida naquele tempo e ela consistia em oferecer o que você tem de maior valor em gratidão a algum benefício que lhe foi feito. E negar seria aceitar a fúria dos deuses.
Dimitri encontrou dentro daquela casa uma mulher aos prantos, prestes a dar à luz, e um homem totalmente amedrontado. Os oficiais começaram a querer arrombar a porta e o rei Dimitri se escondeu.
Depois que arrombaram a porta, os oficiais queriam matar a todos ali se não dissessem onde Dimitri estava. A mulher não falava, apenas gemia e fazia força. O homem, covarde, apenas disse que não tinham visto rei algum.
O oficial matou meu pai cortando sua garganta e iria matar a minha mãe, porém Dimitri surgiu e matou cada um deles.
Acho isso tão heroico. Queria muito poder elogiar a bravura do rei Dimitri por, sozinho, lutar com homens armados com espadas.
A mulher pariu na frente do rei, que ajudou-a a cortar o cordão umbilical. Mas aparentava não ter forças para segurar a criança.
Madeline diz que o rei segurou-me e, antes de morrer, minha mãe proferiu as palavras que validavam a lei do presente.
Em gratidão, ofereço-te o que possuo de maior valor. Aceite o meu melhor presente.
E morreu. O rei, sem coragem de me abandonar à própria sorte, temendo rejeitar-me e sofrer consequências do destino, fugiu daquele lugar comigo nos braços.
E cá estou eu, 21 anos sendo criada por Madeline e sabendo desde pequena o que represento.
Um presente para o rei. É o que sou.
-- Sabe que por mim eu não iria para longe de você. -- Aproximo-me dela. -- O que vai ser de mim agora?
-- Interceda para que eu vá para junto de você, Rosie -- Ela beija minha testa. -- E eu irei correndo.
-- Farei isso. Obrigada por tudo, Madie. Ou melhor, mãe. -- Sinto um nó na garganta. -- Por favor, cuide bem do Tomé e do Ciro.
Tomé e Ciro são dois galos que eu peguei para serem meus amigos. É solitário demais crescer isolada. Eu tive amigos imaginários até os 9 anos.
Ela assente e entrega para os guardas a minha mala. Eu sabia que esse dia chegaria. Madeline deixou claro que o rei mandaria me chamar aos 21 anos. Só não disse por qual motivo.
E, falando sério, eu não queria descobrir. Tenho medo de onde irei me meter. Tenho muito medo do que podem fazer comigo.
Uma moça que não tem pais, sobrenome ou família para protegê-la é simplesmente vista como uma qualquer. O que ele vai fazer comigo?
Um dos guardas me entrega um grande sobretudo com capuz e me pede para colocar por cima da roupa. Claramente uma tática para passar desapercebida entre as pessoas. Ou para não verem meu rosto mesmo.
Aceno com lágrimas nos olhos enquanto vejo a figura de Madie ficar cada vez menor. Agora eu estou definitivamente sozinha.
Nem Tomé, nem Ciro e nem Madeline. Quem sou eu sozinha?
Enquanto tentava não pensar tanto, observava a paisagem fora daquele pequeno sítio onde eu fiquei isolada por anos. Tudo era bonito demais. Só por ver uma árvore diferente eu já sorria.
-- Abaixa a cabeça, garota -- A voz grossa e impaciente de um dos guardas me fizeram ter um susto. Obedeci.
Nunca fiquei sozinha com homens. Não tenho ideia do que são capazes. Melhor manter minha língua afiada bem dentro da boca. Gosto muito da minha cabeça colada ao corpo.
Meus últimos dois anos foram com Madie me ensinando a vida fora do cercado. Ela também me trazia livros diferentes todas as vezes que era autorizada a sair.
Li sobre tudo. Política, saúde, matemática, astronomia, literatura... Eu amava ler. É um dos poucos momentos que não me sinto só.
A leitura acalenta minha alma, embala meu sono, me faz sonhar. Quando leio sinto que não sou mais daqui, que pertenço a uma terra distante ou que nem humana sou. É prazeroso.
Duvido que haja algo mais gostoso que ler no mundo, que te faça viajar sem sair do lugar. Impossível!
O balançar interminável da carruagem estava me deixando tonta e enjoada. Pedi delicadamente e morrendo de medo que parassem para que eu vomitasse duas vezes.
De volta ao caminho, eu já via de longe o grande Castelo Bourbon. Era magnífico e gigantesco. Igual vi nos livros, porém mais emocionante e colorido.
-- Garota, deite no chão da carruagem. Ninguém pode vê-la.
Obedeci já chateada de tanto mistério. Não sou nenhuma ladra, nem devo nada a lei. Por que me esconder tanto?
Um bom tempo, e coloca bom nisso, se passou. Minhas costas queimavam como o inferno. Estou ficando velha, é o fim.
O guarda finalmente pediu que eu me erguesse, mas eu estava entrevada. E agora?
-- Poderia dar uma ajudinha? Fiquei muito tempo nessa posição.
Sem cuidado nenhum, seguram nos meus braços e me levantam. Soltei um gemido de dor ao ouvir três estalos na minha coluna. Agradeci a ajuda enquanto tirava o capuz da cabeça e a poeira das roupas.
Olhei em volta e com certeza eu estava dentro dos muros do castelo, porém não sei me localizar. Uma mulher, um pouco mais jovem que Madie e bem uniformizada, se aproxima.
-- Deve ser Rosalie -- Assinto e faço uma pequena reverência. -- Não é necessário curvar-se perante mim. Apenas siga-me com sua mala.
Os saltos do sapato da mulher faziam um barulho curioso. Ecoavam por onde ela andava, mas ninguém virava o rosto para vê-la. Parecia um barulho normal para todos. Porém, pra mim era chamativo. Irritante, talvez?
-- Sente fome?
-- Sim, senhora.
Andamos tanto que eu começava a pensar se estávamos em um labirinto buscando a saída. Que lugar enorme!
Entramos em um corredor um pouco mais estreito, com paredes gastas e pouca iluminação. Ela abre uma das portas e faz sinal para que eu entre primeiro.
-- Esse é o seu quarto temporário, Rosalie.
O quarto tinha uma cama de solteiro, um guarda-roupa pequeno, uma mesinha de cabeceira e uma mesa maior para estudos ou leitura. Era um bom quarto. Coloco minha mala no chão e abro a janela. Aqui precisa de uma boa corrente de ar. Acabo espirrando.
-- Será feita uma limpeza mais caprichada depois. Não se preocupe. -- Ela sorri, sem graça. -- Sou Lia, serei sua tutora por algum tempo.
-- Tutora?
-- Sim. Mas não se preocupe, explicarei depois do jantar. Organize suas coisas que eu mandarei chamá-la. Ah, e mandarei um lanchinho também.
-- Obrigada, senhora Lia.
Ela assente e sai fechando a porta. Respiro fundo analisando minuciosamente o lugar. As paredes aparentam não ver tinta desde que foram construídas. Uma pequena portinha à direita é a entrada para o banheiro. Minúsculo, porém atende às minhas necessidades.
Abro minha mala e, pacientemente, coloco minhas roupas no guarda-roupa. Espirrei mais duas vezes.
Alguém bate na porta e meu coração acelera. Ainda estou apreensiva sobre meu futuro nesse lugar. Levanto cautelosamente e abro a porta.
-- Lia mandou pra você. Toma.
Ela me empurrou a bandeja e saiu pisando duro. Ótimo, já arrumei inimigas sem ter dito um A.
Depositei a bandeja na mesa maior e sentei para comer. Um copo de suco, um pedaço de bolo e algumas rosquinhas. Noto que embaixo do copo tem um bilhetinho.
Esteja pronta às 19:30 para o jantar. Alguém virá buscá-la.
...
Minhas mãos trêmulas denunciavam todo meu nervosismo. Uma coisa que eu percebi que eu sou é medrosa. Muito medrosa, por sinal.
Vivi apenas 21 anos, mas já estou sentindo medo por quatrocentas vidas. Creio eu que isso deve ser normal né?
A mesma garota veio me chamar e pediu para segui-la. Corredor vem, corredor vai e damos de cara a uma enorme cozinha. Pessoas passando, mexendo panelas, conversando numa mesa imensa de madeira...
Nunca vi tanta gente reunida em um só lugar. Dei um passo para trás quando me vi ofegando. Não entendo minha reação.
-- Rosalie? -- Lia surge na minha frente. -- Sente-se conosco.
Assinto e procuro um lugar no banco de madeira para sentar. Mantenho minha cabeça baixa, pois não estou confortável. Sinto minhas mãos úmidas.
-- Pessoal, essa é a Rosalie. Ela ficará entre nós por um curto tempo. -- Ouso erguer a cabeça e me arrependo. Todos me olham como se eu fosse um ser anormal. -- Tratem-a com respeito, por favor.
-- Não sabe falar, Rosália? -- A garota que me levou a bandeja diz com um sorriso debochado nos lábios.
-- Meu nome é Rosalie. -- Rebato. -- Boa noite, pessoal.
Todos me cumprimentam em coro. Quantas pessoas! Lia me serve ao mesmo tempo que me ensina como é a rotina da cozinha. Ali cada um é por si e se perder os horários das refeições acaba ficando sem comida.
As outras pessoas conversavam entre si enquanto eu ouvia Lia me passando informações valiosas sobre tudo. Após concluir o jantar, ela me convida para passear.
A noite estava bem fria e eu tive que abraçar meu corpo para suportar o clima. Aqui chega a ser mais frio do que o sítio onde eu estava.
-- Rosalie, você passará um tempo aqui comigo. Nada muito longo. Eu tenho uma missão com você.
-- Qual será essa missão? -- Olho para o céu e eu tenho a leve impressão que estou mais perto dele. Talvez seja porque o castelo está localizado no alto.
-- Preciso te preparar para se tornares uma verdadeira dama de Valkandria. -- Meus olhos caem pesados em Lia. Ela para de caminhar e se vira para me olhar de frente. -- Sei que você já sabe ler e conhece um pouco sobre tudo através dos livros. Mas não sabe como é a vida na corte. Preciso prepará-la.
-- E por que eu teria que ser preparada? Não entendo, senhora Lia.
-- Porque em breve você casará com o rei de Valkandria, Rosalie.
Aquelas palavras mais pareceram um forte soco na minha barriga. Senti minha respiração falhar e uma tontura ameaçar meu estado de consciência. Lia tocou no meu braço, talvez supondo que iria desmaiar, e chamou-me algumas vezes.
-- O que você disse? Casar? -- Minha garganta estava extremamente seca. Eu não queria casar. Ainda mais com um velho. Ele é velho?
-- Sim, é toda informação que eu sei. Desculpe. -- Seu olhar penoso me leva a crer que isso será a pior loucura que eu irei me meter. -- Hora de se recolher, Rosalie. Amanhã começaremos cedo.