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Maurício
As semanas se passaram como um borrão por meus olhos. As horas, os minutos e segundos escorreram por entre meus dedos sem que eu percebesse e quando havia me dado conta o mês já tinha ido embora.
O clima mudara drasticamente de uma hora para outra com nuvens escuras emoldurando o céu na maior parte do tempo mantendo os dias nublados e de certa forma tristes. As folhas secas das árvores mal tratadas pela falta da chuva espalham-se pelas calçadas e jardins das casas na avenida principal na qual estou dirigindo em direção ao trabalho, e isso me faz lembrar como as coisas no escritório tem andado em um ritmo frenético diferentemente da calmaria que há do lado de fora do veículo.
Estaciono o carro em minha vaga especial na Ferraz e Salazar advocacia, ativo o alarme ao retirar minha maleta do banco do passageiro e caminho rumo ao elevador ajeitando a lapela do terno. Suspiro assim que as portas metálicas se fecham e me encontro sozinho. Me permito fechar os olhos por um momento e reflito como minha vida tem se tornado uma loucura sem fim nos últimos tempos.
O processo de Isadora tem sido o que mais me toma tempo e exige muito mais de minha capacidade que um simples caso desses que caem em minha mesa todo dia. Na verdade, os outros casos até parecem brincadeira de criança perto do que minha boneca está enfrentando e sequer tem consciência disso. Ela se meteu em uma encrenca sem tamanho, ou seja, está muito ferrada. Isadora se colocou sobre a mira de uma das máfias mais perigosas do país, a Tríade Chinesa para ser mais exato.
A polícia brasileira está a séculos atrás dos integrantes dessa organização criminosa e de suas ações ilícitas no Brasil. Porém nunca encontraram provas concretas contra os mesmos, por isso, há algum tempo uma operação secreta foi esquematizada em sigilo completo, onde um agente especial da polícia teria conseguido se infiltrar na organização e estava coletando e registrando todas as provas que incriminariam o grupo e os seus integrantes desde o baixo até o alto escalão. Porém o tal agente fora descoberto em sua missão e sido riscado como traidor perante todos na Tríade. Foi questão de pouquíssimo tempo até o chefe da máfia ir atrás dele, encontra-lo e executa-lo a sangue frio deixando sua assinatura de sempre para trás.
Ninguém, fora o agente morto semanas atrás, nunca conseguira identificar o chefe da Tríade Chinesa no Brasil, até aquela fatídica noite. Isadora, mesmo estando no lugar e hora totalmente errados, conseguira realizar a proeza de tal ato. Ela identificou o chefe da organização como sendo uma mulher e, forneceu outros tantos detalhes a mais os quais se lembrava, em um depoimento detalhado ao investigador responsável pelo caso, da polícia.
Resumindo, Isadora é uma ameaça para a máfia, isto é, até seu depoimento oficial no dia do julgamento. Até lá muita coisa ainda poderia rolar, desde a perseguição até a prisão dos envolvidos no caso, Isadora seria uma testemunha a solta na rua com um enorme alvo invisível pregado nas costas. E o meu maior e mais real medo era de que algo pudesse acontecer a ela.
E eu sabia que isso poderia acontecer a qualquer momento.
***
-Manda um beijo para as minhas sobrinhas, Itan. -dei um tapinha em seu braço.
-Elas são minhas sobrinhas, não suas, mas eu mando sim. -ele alfinetou com um sorriso debochado no rosto.
-Ata. Continue mentindo para si mesmo, quem sabe assim um dia você não acredita? Por isso elas preferem a mim como tio do que a você. -retribuí a alfinetada. -E porque sou o mais bonito também, é claro.
Itan pegou seu porta canetas em formato de gato com olhos puxadinhos e o laçou em minha direção. Me desviei gargalhando bem a tempo de não ser atingido. Eu estava precisando disso, de jogar conversa fora com meu amigo para descontrair dos momentos tensos do dia a dia.
-Você já não estava de saída? O que ainda faz aqui. -ele resmungou irritado.
-Calma amorzinho, não precisa demonstrar toda essa afeição escancarada não. -eu disse sarcástico ao que Itan bufou revirando os olhos.
-Achei que você tinha algo melhor para fazer do que ficar enchendo o meu saco, Maurício.
-Ain. Essa doeu. -eu ri.
-Vai para...
-Calma ae, garotão. Que tpm é essa? Sua namoradinha não tem dado conta do recado não? -eu gargalhei ao perceber Itan apertando as mãos em punho fechado.
-Ela não é minha namorada. -ele repetiu pela centésima vez a mesma mentira.
-Não, porque ela não quer ou porque você não está se esforçando o suficiente. -Me inclinei um pouco mais sobre sua mesa.
-Cara, eu só não te meto um soco nessa cara de sonso porque eu não quero ser processado, mesmo que você esteja fazendo por merecer. E quem é você para me falar dessas coisas? Não vejo o senhor mexendo esse rabinho para fazer um nada em relação a Isa, e olha que ela é... ó-ele fez um sinal unindo o indicador e o polegar para enfatizar a fala. -Uma tremenda gata. Se bobear eu posso acabar...
-Cala boca, seu idiota. -eu rosnei trincando o maxilar exalando raiva pelos poros.
-Ué, não quer papear mais um pouquinho, amigo?
-Não. -eu respondi me levantando da cadeira que estava de frente para a sua.
-Hum... tá sentindo esse cheirinho? -ele perguntou de maneira irônica, porém não entendi o que quis dizer.
-Que? Que cheiro, Itan? Tá ficando louco? -indaguei confuso.
-É o odor do ciúmes, meu caro Maurício.
-Você é muito infantil. -me dirigi até a porta para dar o fora dali. -Eu só não gostei do modo que você falou dela. Não é ciúmes. -eu protestei ainda de costas para ele e saí batendo a porta atrás de mim ao que escutei Itan dando uma sonora gargalhada.
Voltei para minha sala para recolher meus pertences quando meu celular começou a tocar.
-Alô? -eu disse sem prestar muita atenção enquanto organizava os papéis sobre minha mesa.
-O que? -perguntei sobressaltado ao ouvir a voz do outro lado da linha.
Muitas informações desconexas eram ditas de forma aleatória e desesperada, e eu me forcei a prestar mais atenção para captar algo coerente nas frases ditas, até que entendi o principal: alguém a estava perseguindo.
Eles a tinham achado.
-Aonde você está? -perguntei. -Na faculdade? Chego aí em poucos minutos. Não fale com ninguém, ouviu? Entre no seu carro e se esconda deitada no carpete. Eu vou ligar para a polícia, porém também estou a caminho. Fique comigo no telefone, quero saber o que está acontecendo, ok?
Eu praticamente voei com até a garagem e me enfiei no carro dirigindo loucamente para a saída da cidade. A faculdade que Isadora estudava ficava em uma cidade vizinha não muito longe de Balneário, gastava no mínimo uns trinta a quarenta minutos de carro. Contudo, hoje o caminho parecia ter triplicado os quilômetros a minha frente. Disquei o número do meu pai em um celular que eu havia perdido a tempos no console do carro, enquanto no outro ouvia a respiração pesada de Isadora. Quando ele atendeu no segundo toque tentei lhe explicar a situação em poucos segundos, meu pai afirmou que ele e seus homens já estavam a caminho do local.
Todavia poderia ser tarde de mais quando eles chegassem lá. Eu só pedia a Deus que pelos menos eu conseguisse chegar a tempo.
Se normalmente eu gastaria trinta minutos fazendo esse trajeto, dessa vez fiz em quinze. Não que eu esteja orgulhoso de quebras um par de leis do trânsito e afins. Mas o momento pedia por isso. Saltei do carro em pulo e corri pelo estacionamento principal, o que ficava na entrada do campus, em busca do veículo de Isadora. Estava bem escuro, até porque já era noite nesse horário, mas isso não dificultou muito na tarefa de achar o que eu procurava. Atravessei o mar de estudantes que chegavam e saíam da universidade e me aproximei batendo na janela do carro.
-Sou eu, Maurício. -eu chamei rápido, olhando ao meu redor a todo instante para conferir se mais alguém me via.
Logo ouvi o clique da porta sendo destravada, boa garota, coloquei a mão na maçaneta e entrei em seguida. Sua cabeça ainda estava na penumbra e eu não conseguia enxerga-la muito bem. Isadora se sentou no banco do motorista sem me encarar, com os cabelos longos jogados sobre rosto privando-me de ver como estava. Ao ligar o veículo ela rapidamente deixou a vaga que ocupava e entrou na estrada principal que nos levava de volta para a cidade. Observei os nós de seus dedos brancos por tamanha a força com que apertava o volante e um ligeiro tremor na região da barriga. Então de repente, ela jogou o carro para o acostamento parando-o com uma freada brusca.
-Eu... -sua voz vacilou no início. -Eu os vi. Eles estavam lá. Em todas as aulas, em todos os lugares que eu ia, eles estavam lá. Os mesmos homens daquela noite. Eu ouvi a voz de um deles quando passou por mim.
Algo dentro de mim se quebrou mais um pouco ao escuta-la dizer aquelas coisas. O pânico em sua voz era a coisa mais terrível e clara de ser percebida. Finalmente após alguns segundos de silêncio no carro, sem que eu soubesse o que fazer exatamente, Isadora se virou para mim e eu pude ver.
Seus olhos grandes olhos azuis estavam arregalados cheios de medo e de lágrimas não derramas. Suas mãos tremiam incessantemente e ela parecia estar fora de órbita, olhando tudo ao seu redor sem se focar em algo concreto. Totalmente perdida. Então fiz a primeira coisa que me passou pela mente. Costumava funcionar na maioria das vezes quando ela era pequena e se sentia insegura: com a voz um tanto rouca, porém firme, comecei a cantar uma música.
"Não vou deixar, o lobo te pegar
Vou te buscar, aonde estiver
Vou te amparar, e vou te aquecer nos braços meus"
"Não vou deixar, o lobo te pegar
Vou te buscar, aonde estiver
Vou te amparar, e vou te aquecer nos braços meus"
Continuei a cantarolar baixinho em seu ouvido apertando-a contra meu peito enquanto suas unhas eram cravadas em meu tórax e costelas. Não me importei se no dia seguinte estaria com várias marcas em minha pele, o mais importante naquele momento era que Isadora se sentisse segura.
Mesmo sabendo que ela ainda não estava muito bem, a urgência do momento me fazia ter consciência de que deveríamos sair dali o mais rápido possível e ir para um local seguro. A delegacia teria que servir por hora. Mas eu sabia que não por muito tempo. Em breve teria que encontrar outro lugar mais seguro para Isadora se esconder, um lugar onde não pudesse ser encontrada.
-Temos que ir, Isa. -eu disse me afastando o suficiente para encara-la demonstrando a seriedade da situação. -Agora. -enfatizei.
Isadora secou os vestígios de lágrimas restantes do rosto com certa pressa e antes mesmo que conseguisse girar a chave na ignição, um veículo surgiu muito próximo a nós e em poucos segundos atingiu a lateral do nosso carro jogando-nos para fora da pista em baque estridente e violento.