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Isadora
Eu sempre fui uma garota ativa, elétrica, que emanava agitação pelos poros. E é por causa desta mesma característica em particular, que muitas das vezes era impulsionada a fazer coisas que nem sempre eram bem aceitas pelas demais pessoas.
Porém, entra aí um fato crucial que sempre fora meu orgulho: nunca ser pega. Isso é.... até o dia em que fui pega em flagrante
Me lembro até hoje, do dia em que isso aconteceu. O dia em que ele me descobriu.
Eu tinha uns doze anos de idade e era a festa de aniversário de dezessete anos do meu irmão Kaile. Eu estava com algumas amigas minhas saltitando de um lado para o outro no salão em que ocorria o evento.
Um sorriso se forma instintivamente em meus lábios ao me lembrar daquele dia.
As luzes coloridas, as músicas ritmadas, os doces e as pessoas dançando. Ah, o cenário perfeito para a pequena arteira, como fui nomeada mais tarde, agir.
Até porque quem notaria uma garota alta, desengonçada, magrela, de aparelho ortodôntico e rabo de cavalo no alto da cabeça em uma festa cheia de adolescentes bem arrumados?
Se eu soubesse naquela época das coisas que hoje tenho ciência, não teria subestimado o poder de percepção de certos olhos verdes....
Mas como águas passadas não movem moinho, de nada adianta reclamar agora que já passou. Na verdade eu até creio que de alguma maneira aquilo tenha resultado em algo positivo.
Eu estava usando um vestido rosa claro que ia até a altura dos joelhos, já que eu tinha vergonha de exibir minhas pernas de vareta e não usava nada muito curto que chamasse a atenção para os varas de cutucar lua que eu chamava de pernas.
Boa parte da família já estava presente no local, mas Fernanda ainda não havia chegado. Eu estava morrendo de saudades dela e de Maurício que também era um grande amigo.
Há três anos atrás quando eles anunciaram que iriam se mudar para outra cidade para fazer faculdade, chorei muito. Me julguem, eu tinha apenas nove anos e não queria que eles fossem embora, que me deixassem para trás.
Eu até mesmo tentei me esconder no porta-malas do carro de Maurício, porém fui descoberta antes mesmo do motor do carro ligar. Quando ele foi colocar as malas fiz birra e me recusei a sair. Mamãe veio em minha direção desesperada e muito irritada pelo chá de sumiço que eu havia dado.
Foi muito engraçado. Eu sentia uma mistura de medo e raiva com uma pitada de rebeldia, que me fez continuar no mesmo lugar. Entretanto antes que ela se aproximasse o suficiente para me arrastar pelo braço para longe dali, ele interveio e pediu para falar comigo por um instante. Assim que minha mãe deixou o local, ele se virou para mim com os braços cruzados sobre o peito.
-O que há com você, boneca? Por que está aí? -ele perguntou com o semblante calmo.
-Eu não quero que você e a Nanda vá embora! -eu gritei irritada.
-É só por um tempo, boneca. Quando menos esperar vamos estar voltando. E além disso, sempre que pudermos iremos visita-la.
-Eu não quero! -rebati.
-Por que está agindo assim, boneca? Deixe disso, saia daí e venha me dar um abraço de até logo. -ele pediu com um meio sorriso.
-Não! -eu funguei limpando as lágrimas com as costas da mão.
-Princesa, me diz o motivo de todo esse choro. -ele se aproximou ainda mais de mim.
-Vocês dois vão me abandonar! E... e eu vou ficar sozinha. -um soluço irrompeu pela minha garganta.
Então ele acabou com a distância entre nós e me erguendo pelos braços me envolveu em um abraço apertado.
-Nunca, Izzi. Eu prometo. Eu nunca vou te deixar, e sua irmã também não. -ele sussurrou em meu ouvido enquanto eu me agarrava a ele naquele abraço reconfortante.
Mas voltando ao episódio do aniversário de Kaile...
Eu já estava ficando impaciente com a demora daqueles dois a chegar, e ficava em um vai e vem até o portão de entrada.
Como não conseguia mais me conter, resolvi que era melhor extravasar toda aquela adrenalina acumulada de uma maneira, digamos... divertida.
No início nenhuma das minhas amigas quiseram me apoiar, achavam que estava abusando da sorte e que dessa vez eu acabaria sendo pega. Eu ri achando aquilo um absurdo, eu nunca era pega.
Ah, se eu soubesse...
No fim elas acabaram aceitando mediante a muita persistência e uma boa dose de apelo emocional, a serem somente "vigias". Sara e Olívia eram muito medrosas
Estava tudo preparado. A lata era grande o suficiente e estava cheia em uma quantidade necessária para o que eu pretendia. Seria hilário, essa festa iria ficar para a história.
Luana Sicarini, do terceiro ano do ensino médio, iria aprender uma boa lição. E então eu fiz: quando a garota mais metida e malvada de todo o colégio passou pelos portões do local e adentrou pelas portas do salão de festas, eu que estava escondida atrás de uma grande coluna grega no segundo andar, virei todo o conteúdo da lata sobre a cabeça ruiva daquela patricinha idiota.
Estava bem escuro, apenas com luzes coloridas que piscavam aleatoriamente e eu não pude ver sua reação, mas pude ouvir o seu grito de pavor ao sentir o refrigerante super gelado escorrer por seu corpo. E olha que não foi pouca coisa, devia ter uns dez a quinze litros naquela lata.
Saí correndo de onde estava para fugir do local do crime. Mesmo com o barulho da música alta, evitei fazer qualquer barulho que me delatasse.
Devo dizer que fiquei surpresa e extremamente chateada com o desaparecimento das minhas amigas que deveriam estar fazendo a "guarda" nas escadas.
Segui pelo corredor oposto e abri a porta dos fundos usada pelos funcionários, que dava para o estacionamento utilizado para carga e descarga dos caminhões de entregas.
Minhas pernas quase falharam quando fechei a porta atrás de mim e ao me virar dei de cara com alguém sentado sobre o capô de um carro, com as mãos nos bolsos da calça jeans que usava, e uma carranca séria que me encarava fixamente.
-Ah, olá Maurício. -eu o cumprimentei enquanto me afastava com cautela.
-Aonde pensa que vai, boneca? -seu tom de voz me fez retesar. -Não vai dar um abraço em mim? -arqueou a sobrancelha esquerda.
Retrocedendo alguns passos, girei o corpo e segui em sua direção. Maurício me envolveu com seus grandes braços, e eu muito constrangida, tentei me afastar do abraço, mas ele me manteve presa ainda ao seu corpo.
-Maurício... -eu comecei a protestar.
-Eu sei o que você fez. -ele disse em meu ouvido.
-O q-que. -gaguejei me soltando dele.
-Eu sei o que você fez lá dentro, Isadora. -ele apontou para o salão.
-Não sei do que você está falando. -me fiz de desentendida.
-Ah você sabe sim, pequena arteira. -ele me desafiou com um sorriso debochado nos lábios.
-Você está louco? Só pode. -desdenhei.
-É mesmo? Então eu acho que devo perguntar para a sua irmã que também está te procurando, como é que uma grande quantidade de refrigerante sumiu misteriosamente no depósito da cozinha. -disse com uma ameaça clara na voz.
Estreitei os olhos em sua direção
-Ah, olha ela ali. -ele indicou com a cabeça. -Fernanda! -ele gritou chamando-a.
Fernanda girou a cabeça ao ouvir seu nome sendo chamado e assim que nos avistou, veio em nossa direção. Me virei para Maurício me rendendo finalmente, com os olhos suplicantes fiz um pedido silencioso. Ele por outro lado, mantinha no rosto uma expressão marota de superioridade.
Cretino.
-Achei vocês. Quando chegamos eu não te vi Isa, estava te procurando até agora, aonde se enfiou? -Fernanda perguntou ao me envolver em um abraço. -Estava com com saudades.
Maurício aproveitando que minha irmã estava de costas para ele, me dedicou um sorriso zombeteiro.
-Você chegou há quanto tempo? -indaguei desviando o assunto enquanto retirava meus braços do seu redor.
-Umas meia hora, mais ou menos. Mas aonde se meteu, mocinha? Você acabou perdendo o maior escândalo lá dentro. -ela riu da última parte e eu congelei.
Contudo antes que pudesse responde-la, Maurício tomou a frente, ele sabia que eu era uma péssima mentirosa.
-Ela estava aqui comigo jogando conversa fora. -ele puxou meu rabo de cavalo para irritar, o imbecil sabia que eu detestava que fizessem isso.
-Tudo bem, não importa. Vou lá para dentro ver o que deu daquela confusão. -disse se retirando e nos deixando sozinhos mais uma vez.
Maurício pigarreou forçadamente para chamar minha atenção.
-Que é? -perguntei mal humorada.
-Então é assim que você retribui quem acabou de salvar sua pele? Sua pequena ingrata. -ele fez cara de falsa decepção.
Eu não sabia, mas aquela se tornou a maior verdade da minha vida. A partir daquele dia, ele passou a salvar a minha pele diariamente por muitos anos a fio.
E apesar do que tenha acontecido entre nós ultimamente, ele ainda é o meu melhor amigo e mais uma vez estava aqui por mim, salvando a minha pele de novo.