VI - A noite - Parte 1
A noite agora ficou mais escura.
Tão escura quanto meu coração.
Havia um grande espelho naquele enorme quarto onde Louise podia ver-se de corpo todo. Ficara por um bom tempo encarando seu próprio reflexo. Sentia-se estranha. Aparentemente era a mesma de antes, mas sabia que por trás daquela imagem havia outra pessoa. Seria capaz de lidar com as coisas dali em diante? Queria se lembrar das coisas antes daquele momento, mas tudo que lhe vinha à mente eram pessoas com as faces nubladas por borrões e lugares envoltos por uma densa névoa. Não se lembrava de haver pedido por nada daquilo, como havia chegado aquele ponto era outro mistério para si mesma.
A noite na cidade de San Dimas costumava ser fria em qualquer estação do ano. Louise optara por vestir jeans, complementando com uma cacharréu de cor creme e jaqueta de couro marrom. Calçara uma bota escura de cano longo que ia até quase os joelhos. Encontrara uma gargantilha com ornamentos em pérolas e brincos de argola grandes e dourados. Aquele quarto era um paraíso criado para mulheres, mas ela não vira nenhuma outra mulher por ali nas poucas horas em que ficara no local. Se perguntava se haviam outras como ela ou se Stanley pagaria para alguém manter aquilo tudo organizado. Por fim soltara os cabelos e se maquiara. Talvez fosse apenas delírio, mas seus olhos pareciam brilhar mais. Sorrira e admirara sua boca, aqueles lábios carnudos vermelhos por natureza. Era hora de ver a noite por uma nova perspectiva.
Quando saíra do quarto encontrara Ken naquela mesma sala de jantar de antes. O rapaz agora vestia calças jeans, sapatos marrons e camiseta branca embaixo de uma jaqueta da Hard Rock Café. Segurava uma daquelas taças de cristal cheia de uma bebida de cor vermelha. O mesmo oferecera e ela aceitara. Sorvera de um gole, o sabor era bom. Sentira algo queimando dentro de si, uma onda de calor que subia por suas costas e a preenchia por completo.
—O que é isso? – perguntou de forma casual.
Ken virou a face olhando para o lado, para qualquer ponto no vazio e em seguida voltou-se para ela novamente. Suspirou.
—Sendo sincero, não se impressione. É uma mistura de um bom vinho e sangue humano. Apenas beba, não fique teorizando. Terá de se acostumar com isso.
Louise parou por um instante e então encarou a taça em suas mãos.
—Eu perguntaria de onde veio o sangue, mas isso é irrelevante, certo? – ficou encarando o reflexo no brilho do cristal por alguns segundos – O gosto é bom, deve ser o vinho, pensei que sentiria mais nojo, mas não me sinto tão mal com isso e não sei se isso é bom ou ruim, admito. Se tenho de aprender a viver nesse mundo, que seja – concluiu virando o restante.
—Saiba que não estou lhe oferecendo isso por gentileza. Entenda que lá fora, entre outras pessoas, seus instintos se ativarão. Quero dizer, seus instintos de predador. Aprenda a pensar como um predador, não mais como uma humana – disse o rapaz – Se você sentir fome, seus instintos lhe dirão para se alimentar, precisa aprender a controlar isso, a se controlar. Entre os seres humanos você é como um leão cercado de cervos na savana, entende o que aconteceria se perdesse o controle? Essa dose lhe manterá saciada por algum tempo. Vamos dar uma volta e vou lhe mostrar algumas peculiaridades do mundo que você não conhecia antes. Só há uma regra nessa noite: não se afaste de mim. Se eu disser que é hora de voltarmos ou sairmos de algum lugar me siga sem questionar. Se eu disser para correr me siga no ritmo que eu estiver. Não se preocupe, você consegue me acompanhar sem problemas. Entenda uma coisa acima de todas as outras: O mundo que você conhecia não existe mais. O novo mundo em que vive agora não pode ser sob qualquer hipótese subestimado.
O grande letreiro em neon azul e vermelho dizia Black Night Hip Hop Clube.
Ken parou por alguns instantes com as mãos nos bolsos da calça encarando a fachada diante de si. Ao seu lado a mulher esboçava um sorriso nos lábios carnudos cobertos pelo batom vermelho. Louise fechara os olhos e mordera o lábio inferior enquanto balançava a cabeça ao ritmo da música. Suspirara sentindo o ar gelado e úmido daquela noite. Agora sabia que ainda respirava. E isso era bom, muito bom.
—Estou morta? – perguntara pouco antes de saírem.
—Como assim morta? – respondera Ken com outra pergunta.
—Bom, como dizem por aí, vampiros são mortos-vivos ou algo assim…
O garoto rira de forma debochada por alguns segundos, como sempre se divertindo diante da curiosidade da mulher diante das coisas acerca do mundo das sombras.
—Nenhum “morto” realmente caminha, pensa, conversa. Essas são características de seres vivos. Bom, ao menos de alguns. Mesmo os zumbis eu diria que não são mortos-vivos como vemos na TV e no cinema. Eles estão mais para meio-vivos, quero dizer, estavam mortos, mas de alguma forma foram trazidos de volta à vida, logo não estão mais mortos, entende? Você, por outro lado, está mais viva do que nunca. Você respira, se alimenta, pensa, conversa, você tem muitos sintomas de alguém vivo para pensar que está morta. Entende?
—Zumbis existem? – perguntou a mulata captando apenas uma pequena parte do que ele dissera de imediato. Então algo mais se destacou naquelas palavras para ela – Bom, mas pelo que eu sei eu também estava morta, certo? Morrer foi uma das condições para eu voltar nessa nova vida e nessa nova realidade…
—Exatamente. Está certa em suas deduções. Porém, zumbis não podem pensar, possuem apenas vestígios de memórias e nada mais. Você possui muito mais talentos agora que quando era humana, logo aprenderá a controlá-los e entenderá os benefícios.
—Ainda não me lembro de nada – comentou a mulher.
—Suas memórias irão voltar e você entenderá tudo, posso lhe garantir.