Pequena Rotina
Sentia o peso do cansaço caindo como um véu sobre minhas costas. A maquiagem tão bem feita havia borrado depois de uma longa soneca pós-show. Ainda era de noite. Mas novamente eu não havia completado uma noite inteira de sono.
Levantei-me, colocando meus chinelos e amarrando meu roupão. Passei a mão pelos cabelos algumas vezes e, sem me preocupar com os excessos de preto por todo meu rosto, abri a sacada, a fim de sentir um pouco de ar fresco invadir o quarto.
Fui até o apoio e lá deixei meus braços. Fechei os olhos, sentindo a sensação boa que aquele vento me causava. Subia por todo o corpo, tirava o calor. Era bem melhor do que qualquer ar condicionado de hotel. Podia sentir meus fios sobrevoarem pelos ombros e o rosto ficar relaxado. Um mero sorriso originou-se em meus lábios.
Saquei do bolso de meu roupão o meu maço de cigarros e o meu isqueiro. Tirei rapidamente um da caixa e levei à boca, acendendo depois. Traguei, deixando a fumaça adentrar os meus pulmões e contaminá-lo. Sentia o sufoco que aquilo me causava. Não era ruim. Depois repeti o processo, liberando agora toda a fumaça, deixando-a passar lentamente. Já sentia os meus olhos amolecerem, o corpo mais relaxado. Estava nas nuvens.
Bati o cigarro na sacada, retirando os excessos, quando ouvi o barulho da porta de meu quarto se abrir e em seguida se fechar. Não me virei, muito menos fiz questão de saber quem estava ali.
Longos braços me envolveram nos quadris com extrema leveza. Não apertavam nem davam a ideia de alguma malícia aparente e muito menos a sensação. Senti o perfume de meu irmão impregnar-se em meu nariz, tão forte e familiar a ponto de abafar qualquer fumaça de cigarro. Depois seus lábios. Estalaram-se em minha bochecha em um beijo doce e um tanto salivado. Podia sentir a bochecha úmida.
Uma ventania de fios louros passou para o meu lado da sacada e eu senti-me obrigado a olhá-lo. Minhas bochechas queimaram, exibindo um pigmento cor de rosa. Ele também estava me olhando, agora com um sorriso presunçoso exposto nos lábios.
“Você estava incrível hoje.” Comentou meu irmão, apoiando os seus braços na sacada também. Ele afofou a camiseta e franziu a testa. Ouvi-o ainda fungar o nariz e vi-o, pelo canto do olho, mexer os lábios, como se estivesse contendo um espirro.
“Você também, Tom.” Sorri acanhado enquanto puxei outro trago de meu cigarro, liberando a fumaça pela sacada a fora.
“E aí, vendo a cidade?” perguntou ele, abaixando-se no chão. Pegou de lá uma ice que, realmente, eu não havia reparado que estava lá o tempo todo.
Abriu-a e tomou um gole. Depois apoiou a bebida na sacada junto de seus pulsos cruzados.
“Hm...” murmurei. “Não dá pra ver muita cidade daqui.” Ergui uma sobrancelha.
“É verdade.” Ele riu. “Então por que não vai pra outra ponta da sacada? É possível ver os carros e os letreiros luminosos e... As pessoas festejando.”
“Essa parte da sacada é melhor.” Levei o cigarro à boca novamente, fumando mais um pouco de minha droga relaxante. “Eu não posso ser vista por ninguém.”
“Hm...” Murmurou ele, com indiferença.
“Eu acho.” Completei.
“Talvez algum paparazzo.” Contrapôs Tom, rodeando com o indicador a boca de sua garrafa. Observei-o por um instante. Meu cotovelo apoiou-se na sacada, deixando o cigarro perto de minha orelha. Ainda pairava uma réstia de fumaça no ar, que contornava entre nossos rostos. Deixei os meus olhos relaxados fixos a ele. Sentia, de algum jeito surreal, que as minhas pupilas brilhavam.
“É, talvez.” Concordei. Depois olhei pra frente e traguei mais uma vez, colocando o cigarro até o fim dos lábios, deixando apenas uma parte em branco, onde meus dedos estavam apoiados. Não era a intenção provocá-lo. Talvez fosse apenas se insinuar um pouco.
“Podemos trocar?” ele perguntou. Parecia sedento por fumo.
“Bem, tenho mais cigarros no meu bolso, caso queira.”
“Dá-me o seu que já está aceso.” Ele sussurrou.
Voltei a olhá-lo por um instante. Aquela frase, se bem analisada, poderia conter um belo duplo sentido. E foi o que eu analisei. Quanto a ele, apenas olhava-me. Normalmente, sonsamente.
Assoprei o cigarro, envergonhada pela quantidade de saliva ali posta, e entreguei a ele, trocando o meu fumo pela sua garrafa de álcool.
Ele deu uma intensa tragada e eu uma intensa golada. Coisa de irmãos, talvez. A dele, por sua vez, acabara com o cigarro. Não fora grande esforço, pois eu já havia fumado mais da metade. Ele jogou a bituca pela sacada.
Por um momento lembrei-me da Alemanha. Não fazíamos isso lá. Não sujávamos a rua. Nem mesmo com uma bituca de cigarro.
Ele abriu a boca para soltar a fumaça. E quando a soltou completamente, dirigiu-se a mim de novo. “É nosso último dia em Nova York, não quer se divertir?” propôs.
“Estou cansada.” Respondi com secura.
Eu realmente não estava a fim de assistir mais um dos espetáculos de meu irmão. Não mesmo.
“Ah, você vai, sim.” Afirmou ele, em tom autoritário. “Está rolando uma festa lá embaixo e você virá comigo.” Completou Tom, dando ênfase na palavra virá.
Ringi meus dentes e suspirei. Mal acabando de reagir, senti-o segurar um de meus braços magros e forçá-lo para trás, tirando-me do apoio da sacada.
“Me laaargaa. Imbecil.” Exigi.
“Não.” Respondeu ele, simplesmente.
Continuou a me puxar, até colocar-me pra dentro do apartamento. Com um pouco de esforço, torci meu braço e consegui sair de seu poder. Desde que começara a tocar guitarra, Tom adquirira bastante força nos braços. Isso era péssimo pra uma briga.
“Willa.” Miou Tom. “Por favor...” ele uniu as sobrancelhas. “Há quanto tempo não fazemos nada juntos, hein?”
“Acho que há umas duas horas.” Respondi, me referindo ao show.
“Não estou falando de apresentações!” Irritou-se ele, momentaneamente. Depois me olhou de novo, com a mesma estratégia falida de pedir-me com mimos.
“Não.” Finalizei.
“Willa!”
“Não, ugrh.”
“Tem um monte de garotos bonitos lá embaixo. E garotas lindas demais. Peitos grandes, decotes, belos traseiros.” Ele ergueu uma sobrancelha.
Como se garotos e garotas bonitas fossem me convencer a descer lá embaixo.
“Tanto faz.” Resmunguei.
“Vamos, Willa. Eles querem ficar com você. Vai deixar de ser virgem... Ahmnn...” ele tocou meu peito e desceu as mãos por minha barriga, mordendo os lábios.
Eu que sempre achei engraçado aquele tipo de brincadeira da parte de Tom, não ri pela primeira vez. Pelo contrário, fechei a cara.
Afastei-me e cruzei os braços. Olhei-o de cima a baixo e depois me fixei em seus olhos, cerrando os meus. Ficamos em silêncio. “Por que, hein, Tom? Por quê?”
“Por que o quê?” Disse ele, meio desacreditado. Um sorriso de canto habitava seus lábios enquanto falava, depois sumiu.
“Por que você nunca nota?”
“O que eu não noto?”
“O que acontece quand... Ah... Deixa pra lá.” Sentei-me na cama e peguei um algodão, a fim de limpar o borro que estava em meu rosto.
“Fala.” Insistiu. “Por favor.”
“Já falei pra deixar pra lá.” terminei de passar o algodão por meu rosto e acertei-o no cestinho de lixo.
“Não vou deixar pra lá.” Afirmou. “Diz-me o que é! Agooora!”
“Droga.” Sussurrou ele diante de meu silêncio.
“Que diferença faz?” enruguei minha testa.
“Você tem estado estranha. Quero saber o motivo.” Ele sentou-se na cama, de frente pra mim.
“Não há motivos.”
“Foi alguma pessoa, algum rolo?” insistiu.
“NÃO.”
“O que foi, Willa? Poxa.”
“Não gosto dessas festas.” Respondi, me afastando.
“Mas nós não fazemos nada juntos há um tempão.”
“Quer mesmo fazer algo comigo?”
“Quero.”
“Então fique aqui, ora.” Simplifiquei.
“Mas e a festa?”
“Ok, Thomas.”
Ele resmungou um pouco, pelo Thomas, fazendo-me sorrir. Depois girou o corpo para o lado, desviando os olhos de mim e levou a mão até a boca. “Willa...” ele murmurou.
“Sim.”
“Quero ficar aqui.”
Senti os meus lábios formularem um longo sorriso, de ponta a ponta, involuntariamente. Consegui conter que meus dentes fossem mostrados, mas ainda assim era visível a minha alegria. Ele sorriu também, contagiado.
“Teremos uma longa noite então, irmãzinho dependente.” Disse ele, alisando uma de minhas bochechas.
“O que você sugere?” disse eu, enquanto fechava o sorriso aos poucos.
“Hm... Videogame, sanduíche, filmes... Competição de cuspe.”
“Poderíamos fazer uma música nova?”
“Ué... Se você estiver inspirada eu pego o violão.”
“Pega.” Assenti.
Ele foi até seu quarto de hotel, que era vizinho do meu, no mesmo andar. Em cerca de três minutos voltou com seu violão.
“Hey, Willa. Vou fazer dois sanduíches antes de começarmos, pode ser?”
“Pode.” Respondi, tirando o controle de debaixo do sofá e ligando a televisão.
Tom largou o violão no sofá e foi até a pequena cozinha. Fiquei observando-o, enquanto ele abria e fechava a geladeira consecutivamente, pegando alfaces, tomates, colocando a carne para fritar. Em quinze minutos estava de volta, com nosso lanche posto em uma bandeja e duas garrafas de coca-cola 500 ml. Sentou-se ao meu lado, observando o programa que eu assistia.
“Top Models?” perguntou ele, um pouco sarcástico.
“Elas agradam-me.” Sorri.
Tinha que assumir que sanduíches era a especialidade do Tom. Apesar de simples, eram sempre deliciosos, muitas vezes melhores do que um sanduíche de lanchonete. Mas também, meu pequeno irmão não sabia fazer mais nada.
Até o fim da noite, fizemos muitas coisas. Depois que comemos nos colocamos na sacada, onde atiramos várias coisas lá embaixo, nos escondendo depois. Cuspimos no ar várias vezes, competindo qual meleca se atirava mais longe. Por vezes a dele saía verde demais... E ele ria por isso.
Ao sairmos da sacada, comemos alguns doces e consumimos bebidas alcoólicas e mais alguns cigarros. Colocamo-nos a ouvir algumas músicas, falar de revistas, escrever canções. Algumas bem úteis.
Por fim jogamos videogame e quando nos cansamos, colocamos um filme pra rodar. Uma mistura de romance e suspense.
Após mais da metade do filme, eu poderia ter a certeza de que já era mais de cinco horas da manhã. O início de sol iluminava o ambiente de forma muito fosca, mas notável. Havia uma pipoca no colo de Tom, que estávamos dividindo com animação logo que o cd fora colocado no DVD.
Senti um frio entorpecente e até pensei em ligar o aquecedor, mas o que estava à minha frente parecia mais atrativo. Enrolei o cobertor sobre o meu braço, puxando-o um pouco de Tom e abaixei o volume da TV.
Em seguida, o olhei, a fim de perguntar se ele já queria dormir. Seus olhos estavam fechados. E deviam estar assim por muito mais tempo sem eu ter percebido, pois fiz muitos comentários sobre o filme que só receberam como resposta um resmungo inconsciente.
Suspirei. Não importava se perdi a sua atenção nesses últimos minutos. Sentia-me feliz como não me sentia há tempos. Estávamos juntos de novo. Ríamos juntos de novo. Podíamos ter diversão juntos de novo. Isso não acontecia há muito tempo e, se ele dormiu antes de mim nos últimos momentos, talvez fosse apenas sono e não tédio.
Meu rosto formulou um sorriso vago e meu corpo aproximou-se um pouco mais dele. Essa cena, onde nós dois adormecíamos cansados no sofá já havia se repetido antes. Mas quando tínhamos seis, sete anos. O doce fresco da sensação boa de tê-lo realmente por perto, aflorava em minha barriga de novo.
Pousei meus dedos sobre sua bochecha, e acariciei-a lentamente. Dei-lhe um beijo, próximo ao canto dos lábios, sentindo a respiração pegar carona junto e soprar a pele de meu irmão.
Depois me afastei e pousei a cabeça em seu ombro, pronta para dormir. Puxei a coberta mais uma vez e, sem querer, fiz com que a pipoca que estava em seu colo rumasse barulhenta para o chão. Tom despertou-se de seu cochilo com um pequeno susto, que fizera seus ombros se elevarem pra cima e descerem rapidamente.
Assim que o senti, fechei os olhos imediatamente e não fiz nenhum movimento, fingindo estar dormindo.
Logo senti o ar de sua respiração sobre o meu couro cabeludo, juntamente de seu olhar. Sua mão deslizou por meu braço algumas vezes, em um gesto de carinho. Ele deu-me um beijo insosso sobre a cabeça, como se houvesse orgulho em faze-lo. Tom, possivelmente, entregou-se ao sono depois.
Ainda fingindo que dormia, refleti no quanto ele foi carinhoso hoje. Um pingo de culpa. Eu não estava sendo injusta em meu julgamento? Veríamos amanhã, caso Tom voltasse a ser o mesmo estúpido de sempre.
***
“Tooooomm...” disse eu. Fui até ele, que estava no celular, com a intenção de abraçá-lo, mas fui impedida.
Meus olhos pretos tomaram proporções odiosas ao sentir a mão de meu irmão travando-me no peito, impedindo-me de me aproximar. Ele postava-se de perfil, com o celular ao ouvido e parou de falar alemão, passando a conversar em inglês. Ria do papo.
Imbecil. Pensava que eu não entendia inglês ou o quê?
Sorri largamente e rasguei o papel que se encontrava em minhas mãos. Era uma nova letra.
Olhando os pedaços de papel espalhados por meus dedos, Tom parou de falar. Deslizou o celular da orelha, ignorando a outra pessoa sem ao menos dizer “um momento”.
“O que estava escrito aí?” perguntou ele, com uma entonação odiosa.
“Nada que pelo visto foi, é ou pudesse ser importante pra você.” Respondi em mesmo tom.
“Porra!” exclamou ele, desligando o celular e jogando-o no sofá. Depois tomou os pedaços rasgados de minha mão e tentou colar um ao outro de forma manual, enquanto olhava com pena para a letra perdida.
“Poderia ser algo útil, Willa.” Concluiu ele, com a ponta das sobrancelhas juntadas e uma voz penosa.
“Poderia.” Concordei.
Ele olhou-me com fúria e em seguida, em menos de dois segundos, se acalmou. Como se brigar comigo não valesse a pena.
Saiu de perto de mim, virando as costas e deixando-me sozinha. Olhei ao redor. Não havia mais ninguém. Nem Jeorge, nem Gustavo. Nem Natalie, nem produtores, nem David, muito menos serviçais. Ninguém.
E como eu odiava dar o meu show sem uma plateia. Não valeria a pena chorar, nem espernear. Não havia ninguém assistindo. Tom pegara no meu ponto fraco.
A metade melhor de mim como sempre pegara no meu ponto fraco. O mais queridinho por nossos pais, o mais engraçadinho. O mais popular. O mais talentoso. Como sempre, torrando o meu saco. E eu, Willa, onde fico na preferência, onde sou melhor? Em lugar nenhum.
No momento, a minha vontade era esmagá-lo como uma formiga e livrar-me dele por ter me deixado falando sozinha. Mas, por sorte, Tom só voltara depois, com sua guitarra nas mãos. Largou-se como um porco no sofá, espalhando suas pernas por toda a região e pôs-se a afiná-la.
Sentei-me na cabeceira do sofá, ereta e de frente, com as mãos caídas pelas genitálias e os olhos direcionados aos meus pés. Podia ouvir as notas vazando pela guitarra e ficando cada vez melhores. Levei o canto dos olhos até ele.
Primeiro tivemos uma noite em que eu senti que tínhamos voltado a sermos amigos. E hoje, no dia seguinte, entramos em contradição com o marketing de David. Não o fizemos, sabe-se lá por qual motivo, Tom não fez. Depois o telefone. O maldito telefone que piorara as coisas.
Pra mim, o que mais me instigava era o marketing. Tinha orgulho de assumir, mas eu passei a gostar de nossas brincadeiras com o tempo, mesmo que pareça horrível e mesmo que eu tenha sido resistente no começo.
Quantas vezes não senti o coração acelerar quando Tom se aproximava para sussurrar algo em meu ouvido e, de proveito, apertava meu braço pra falar. Quantas vezes eu não estremeci ao sentir o vento de seu corpo passar por trás de mim depressa, bem perto. E tinha também as suas veias do maxilar, que pulsavam excitadas sempre que algum repórter falava sobre nós, sobre mim. E as vezes em que ele se empolgava; em que era visível a sua diversão. Ele costumava lamber os lábios enquanto olhava pra mim, sempre como quem não está fazendo nada, assim como o combinado. Muitas vezes mexia o piercing, tocava nas próprias calças, dizia coisas de duplo sentido que, muitas, muitas vezes eram realmente excitantes.
Eu poderia dizer que Tom fazia tanta propaganda de si mesmo e tantas insinuações convidativas ao seu respeito que por vezes pairava em mim uma vontade de não ser sua irmã. De nunca ter sido o seu irmão. Pois assim poderia comprovar se ele era mesmo tudo aquilo. Se não era só conversa fiada.
“Por que nós não jogamos hoje?” arrisquei-me a perguntar, virando a minha cabeça na sua direção. Ele olhou em meus olhos e após segundos razoavelmente demorados deu-me uma resposta.
“Fingir cansa.” Disse ele, suspirando depois e voltando a atenção para sua guitarra.
Fiquei em silêncio, pensando em tudo que já nos ocorrera em relação a contatos desde quando éramos pequenos até agora. Foi sempre o Tom quem tomou a iniciativa quando éramos menores. Já tínhamos nos beijado e certa vez tínhamos intenção de chegar ao sexo.
E, atualmente, já tive várias situações em que Tom realmente era convincente. Essas situações eram em público, mas Tom não parecia estar fingindo.
Havia também as vezes em que estávamos a sós e parecíamos ter continuado a jogar. Essas vezes costumavam ser mais raras e em nenhuma delas era possível afirmar que realmente tinha sido uma insinuação ou cantada. Tudo tinha o seu lado duplo. Tom era esperto.
“Tem razão, fingir cansa.” Concordei, orgulhosa.
Ele não disse mais nada, ficando indiferente à minha concordância.
Gostávamos de jogar, não era? Pois então jogaríamos.
“Eu às vezes pude até acreditar em você...” sussurrei com diversão.
Tom pareceu se interessar um pouco, com vontade de se inteirar se eu pronunciava aquilo chateada, ou simplesmente gozando de sua cara.
“Acreditou em quê?” perguntou ele, voltando sua atenção pra mim.
“Nos seus roçares, nos seus olhares...” respondi com um intenso som de sarcasmo.
“Eu também acreditei nos seus suspiros.” Contrapôs Tom, jogando o mesmo jogo e, desta vez, deixando-me sem graça.
Mas eu não poderia ficar e nem ficaria por baixo.
“Acreditou?”
“Sim, acreditei.” Disse ele, erguendo uma sobrancelha.
“E você costuma errar?” também ergui a minha sobrancelha, cercando-o. Minha mão deslizou pelo alto do sofá, até que a unha do meu dedo do meio pudesse tocar o seu pescoço. “Eu não costumo errar.” Concluí, falando rapidamente e voltei minha mão para o lugar no mesmo ritmo, deixando-a cair dentre minhas pernas junto da outra. Meus olhos foram direcionados ao teto e meus lábios formaram um bico.
“Ou seja, está dizendo que...”
“Talvez.” O interrompi. “Nós somos irmãos gêmeos, Tom.” Complementei, baixando os olhos.
“E no que isso influi?” perguntou ele.
“Já ouviu falar em pessoas que se masturbam na frente do espelho?”
Ele riu. “Já.”
“Sabe por que elas fazem isso?” eu ergui a sobrancelha e vi-o esperar pela resposta. “Porque se gostam tanto que se fantasiam com elas mesmas.”
Observei as bochechas de meu irmão ficar cor-de-rosa. Ele era uma dessas pessoas que se gostavam tanto. Talvez a carapuça servisse pra ele.
“E você já fez isso?” ele me perguntou.
“Que pergunta, Tom...” sorri, libertando um espasmo de gargalhada.
“Temos ou não temos segredos?” chantageou o meu irmão, interessado.
“Hm, ok... Eu já fiz isso. Acho que ainda tenho algum amor-próprio.” Olhei-o dentro dos olhos.
“Amor próprio?” perguntou Tom, mal-intencionado.
“Sim. Aposto que quando você se masturba desse jeito também é por amor próprio. Ou será que você...” parei a minha frase intencionalmente.
Em vez de cortar-me, dizer que não, Tom passou a olhar-me nos olhos de maneira penetrante. Podia ver a minha imagem em suas pupilas como um foco de tiro ao alvo. Minha pele respondeu em forma de arrepio.
“Claro que é por amor próprio.” Concluiu Tom. “Além do mais, fazer isso pensando em você seria errado.” Afirmou. “Mais que errado.”
“Olha, não estou dizendo que eu quero... Mas se um dia...” gargalhei, descontraído. “Se um dia... Essa catástrofe acontecer... Nós somos ateus e problemas religiosos não seria uma desculpa.”
“Minha Willa, Willa... E meu Willie, Willie. Se fossem apenas problemas religiosos.” Ele suspirou. “Se esqueceu das pessoas? As pessoas pensam mal...” concluiu. “E, aliás, o que levou a gente a falar disso?” ele riu, levantando a cabeça. Aquele mesmo riso, que, apesar de sedutor, demonstrava muito constrangimento.
“Ora. O nosso combinado com o David.” Respondi. “E... O meu gosto por esse combinado.” Pisquei duas vezes lentamente e levei o meu dedo até a boca, pronunciando a frase de forma delicada.
“Sentiu falta?” Veado, maldito. Estava se divertindo de novo.
“Senti.” Pronunciei com uma inconfundível voz de garota. “Senti muita falta! Oh, Deus, que saudades do tesão que isso causa...”
“Vai pro inferno, Willa!” ele deu uma gargalhada gostosa.
Se a gargalhada foi disfarce ou não, seria mais um dos mistérios de meu irmão.
***
Havíamos viajado novamente e desta vez estávamos na Itália. Seria mais uma longa apresentação rotineira.
Eu estava dormindo, quando ouvi ruídos em meu quarto. Esfreguei os meus olhos um pouco, ainda muito sonolentos. O segundo som que ouvi naquele dia foi David gritar para descermos em até uma hora, tomarmos café e nos arrumarmos para a primeira sessão de autógrafos do dia.
Esfreguei a pálpebra mais algumas vezes e pisquei pela primeira vez, abrindo os olhos. Notei que estava no sofá do camarim e não em meu quarto. O gosto do calmante ainda estava em minha boca, misturado ao bafo de cigarro.
Olhando pra frente lá estava o meu irmão. Com uma garota, para variar. Ela usava uma saia e uma de suas coxas estava posta em formato de gancho envolta da cintura de Tom. Sua calcinha estava friccionando a calça dele e as mãos de meu irmão acariciavam os seios dela sem muito pudor, pois não havia mais ninguém naquele cômodo, já que, anteriormente, eu estava dormindo.
A mão dele subiu pela parte interna da coxa da mulher e os lábios se tocaram com ansiedade, fazendo estalos salivados. Era possível ouvir os gemidos baixos que saiam dos lábios inchados daquela morena, mesmo os dois nem estando em uma foda. Vi ainda a pele do pescoço de Tom. Totalmente roxa, babada, nojenta.
Qual é? Esse imbecil e essa puta esqueceram o caminho do quarto?
Ao notar que apenas ela podia me ver, levantei-me do sofá e fiz a melhor cara de merda que eu poderia fazer. Ela bateu nas costas dele por várias vezes, a fim de afastá-lo, mas Tom era teimoso. Mesmo assim, após a insistência, conseguiu retirá-lo.
Deu um beijo molhado nos lábios dele, enquanto ainda se esfregavam insistentes. Ela desceu sua perna e sussurrou algo em seu ouvido, depois lhe chupou os lábios de novo.
“Tchau.” Disse ela, em som médio.
“Tchau.” Respondeu Tom, conformado. Enquanto ela saía do local, tratava de secá-la, observando o seu andar, desejando-a.
Bati a cabeça de volta na cabeceira do sofá, fazendo, sem querer, barulho. Ele virou-se pra trás. “Então foi você, pentelha?”
“Shit.” Sussurrei.
“Willa.” Disse meu irmão, com raiva. “Levanta.”
“Pra quê?”
“Levanta!” insistiu de forma extremamente imperativa.
Deste jeito, acabei por levantar-me.
Ele pressionou as mãos em meus braços e depois pôs força, a ponto de me deixar imóvel. Aquilo estava doendo.
Tom puxou-me e pressionou nossos quadris, obrigando minha calça a lutar com o espaço que a dele ocupava. Sua ereção, adquirida minutos antes com a garota, foi pressionada por trás de minhas genitálias, fazendo-me sentir humilhada. “Você gosta disso, não gosta?” perguntou ele, de forma rude.
Pude sentir a tristeza encher meus olhos e as lágrimas travarem teimosas na região da esclera. Não deram o ar da graça.
Ergui os meus olhos aos dele, sentindo o ódio debater-se como um espelho, pois nos olhos dele também havia a repugnância.
Cerrei os meus dentes e sussurrei: “Me larga, Krahm.”
“Você quer que eu largue? Você não quer que eu largue!” contrapôs.
Olhei novamente pra baixo, onde as mãos dele punham-se firmes em meus braços. Levantei a cabeça lentamente, com um olhar sarcástico e, em questão de milésimos, cuspi em sua cara. Ele largou-me para limpar, desvencilhando nossos corpos. Passou a mão por onde minha saliva escorria; completamente enojado.
Fugi como uma covarde para o meu quarto de estrela, ouvindo-o sussurrar que eu era um porco. Não pude deixar de gritar alto que o achava um imbecil e, em seguida, chorar.
Odiava quando ele se referia a mim como homem, sem demonstrar nenhum carinho ou respeito. Odiava quando o fazia com a intenção de insultar ou humilhar. Era muito doloroso. Pois eu sempre me senti uma mulher, ou no mínimo alguém de gênero fluído.
Chorei de vergonha, nojo e raiva. Chorei de ódio e de tristeza. De frustração. Novamente eu estava chorando sangue, como retratado em meu diário. Novamente as coisas continuavam iguais, mas não seria por muito tempo. Eu não ficaria chorando assim por ele por tanto tempo. Um dia ele choraria e sentiria dor por mim. Eu sei que esse dia vai chegar.
Olhei para os lados, procurando algum cigarro. Naquele momento, eu precisava de um mais do que todo o ar que eu já havia respirado na vida. Abri uma gaveta, não encontrando nada. Chequei meus bolsos e notei que ali também não havia nenhum cigarro. Droga. Minhas mãos se apoiaram na estante.
Senti uma lágrima de raiva descer até o móvel e, ainda com as mãos apoiadas, notei uma cartela de comprimidos, cuja embalagem desprovia de dois deles, deixando mais dois ainda na cartela.