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Psicose

Peguei a cartela, com os olhos brilhando. Oh, céus. Eu não tinha uma viagem há dias. Olhei minha cama e o horário. Estava cedo e eu não tinha que, necessariamente, tomar café. Sorri. Caminhei até minha cama e retirei a minha blusa de frio. Joguei-a lá, sentindo-me mais leve. Bati a cartela sobre a palma da mão duas vezes, mordendo os lábios. Liguei o ar e deitei-me no colchão, sentindo a maciez vinda dele. Meu corpo ficou apoiado no meu cotovelo esquerdo e, olhando a cartela, retirei uma cápsula. Parti-a no meio.

Coloquei uma metade na boca e peguei uma garrafinha de água ao lado da cama, que serviu para introduzi-la ao meu organismo, que a abrigou com extremo prazer. Eu deitei-me no travesseiro e liguei a televisão. Peguei também o meu caderno de música e uma caneta. Escrevi algumas linhas, até me cansar. O barulho da televisão estava cada vez mais incômodo, então a desliguei. Troquei-a por meus fones de ouvidos e algumas canções agradáveis da Kings of Leon.

Meus olhos foram direcionados à TV, desligada, com extremo relaxamento. Um pequeno sorriso se formava. Até que nuvens coloridas começaram a surgir por meus olhos, manchas de cor que passavam pela televisão e logo, por todo o quarto.

Essas nuvens aumentavam cada vez mais, mudando de cor. Ficavam roxas, vermelhas, azuis, amarelas, pretas e brancas e por fim faziam um caleidoscópio que girava em meus olhos até golpear minha cabeça, onde tudo ficou escuro. Eu marejei. Sentia as lágrimas nos meus olhos. Quando os abri, eu estava no jardim do hotel, rodeado por muitas formigas, que subiam pelas minhas pernas, por minha boca, por meus olhos. Que entravam em minhas narinas e em meus ouvidos. Eu sentia a terra por todo lado e a sensação de milhares de pequenas pernas pinicando minha pele. Eu me protegi com as mãos, mas não adiantou. Sentia-me totalmente sufocada e a garganta recoberta por elas. Tentei gritar sem sucesso e, ao tentar com mais intensidade, fui teletransportada ao quarto de meu irmão.

Olhei para baixo, onde tudo já estava bem. Vi que eu vestia suas roupas e, ao chegar perto do espelho arregalei os olhos, assustada; eu também tinha a sua fisionomia. Usava o seu boné, tinha o seu piercing e estava mais forte do que eu. Toquei a longa t-shirt, ainda encabulada.

Alguém bateu na porta, e ela se abriu. Eu, ainda no corpo de meu irmão, observei a minha imagem obscura adentrando o quarto. Fiquei ainda mais assustada.

Via-me com lágrimas nos olhos e a face pálida totalmente vermelha.

“Tomii.” Eu dizia, chorosa.

Minha boca curvou-se. Eu ainda tocava a t-shirt enquanto sentia o cabelo louro descolorido, farpado, ao redor do meu rosto. Ergui o queixo, vendo-me ali, frágil, deprimida, desprotegida, carente... Chata.

Uma extrema repugnância brotou no meu corpo de Tom quanto a mim mesma, vendo-me chorar cada vez mais. A minha imagem ali, agarrou-me, espalhando as lágrimas pela t-shirt. Durante um tempo, nada fiz, mantinha minhas mãos estáticas. Depois o abracei, sentindo-me na obrigação de fazer aquilo, e não na caridade. Sentia raiva, a queria fora dali.

Uma dor apertou meu peito. Estava sentindo o que Tom sentia.

E, de novo, ao fechar os olhos eu não estava mais ali. Estava em cima do palco, cantando, mas minha voz não saia. E as pessoas começaram a me vaiar.

Eu comecei a chorar e, fugi para trás do palco, me escondendo. Ao chegar ao meu local de fuga, havia um bode. E um homem que lhe fazia uma limpeza intestinal enquanto ele parecia gostar. Suas fezes se espalhavam pela grama e tinham um cheiro forte. Havia sangue misturado, mas aquilo não parecia ser uma tortura para ele.

Eu saí dali correndo, onde tudo ainda eram grama e fezes. Agora havia em minha frente uma prostituta presa em um calabouço.

Ela usava suas roupas de trabalho. Um sutiã vermelho e sujo, que deixava seus seios flácidos a mostra, e uma calcinha de mesma cor que fazia o mesmo com seu traseiro. Ela era morena, e tinha os cabelos lisos e boa parte dele estava recoberta de branco. Seu rosto era enrugado e seus dentes esverdeados. Ela tinha sujeira por todo o corpo e o seu odor era tão forte, que chegava ao meu nariz. Havia feridas em sua barriga, em suas pernas, nos seus lábios e olhos. Ela estava ali há muito tempo. Tinha um olhar triste, mas convidativo.

Ao ver que eu a observava, pediu-me para eu entrar no calabouço para fazer sexo com ela. Jogou-se na grade, fazendo uma dança erótica. Chamava meu nome.

Meus olhos reviraram-se assustados perante a visão. Ouvi uma frase baixa, que ia aumentando, aumentando, aumentando, até se tornar nítida. “Eu não preciso estudar. Eu serei cantor.” Ela se repetia e tinha a entonação de quando eu tinha doze anos. A segui, a fim de fugir da prostituta, que, ao ver que eu não lhe dava atenção, tornava-se violenta e golpeava a grade com cada vez mais sucesso.

A grade tremia e seu aspecto era de que poderia cair a qualquer momento.

Quando encontrei a voz, havia apenas um túnel escuro. Um rosto pálido, pintado de negro, veio à tona na escuridão. Havia ferimentos por toda parte, a boca estava arroxeada, parte dos olhos estava podre. Havia insetos ao redor dos lábios, do nariz e dos olhos, que comiam parte da pele. Esse rosto tentava sorrir, mas assim que abria os lábios um pouco, os insetos entravam e ele era obrigado a fechar o sorriso.

De repente clareia e uma forte luz branca bate em meu rosto, bloqueando minha visão. Ouço uma outra voz, totalmente familiar, mas irreconhecível, que diz pra mim que “Deus ainda me ama.” Olho pra baixo, e vejo que estou usando um crucifixo. Algumas lágrimas caem, e eu sinto uma dor enorme, como se o meu corpo tivesse sido atravessado por mil facas ao mesmo tempo. Eu caio no chão.

Sinto a boca dolorida e a sensação de faltar pedaços nela. A toco e sinto que há formigas sobre ela. Tento gritar, mas é impossível. Assusto-me ao ver que o rosto na escuridão, que estava me assustando, é o meu rosto.

E então o corpo também aparece por completo, e eu vejo em mim as tatuagens que eu queria fazer no futuro, lá, coladas em minha pele.

Sou novamente teletransportada dali, onde a dor cessa. Estou em uma festa ao lado de uma garota bonita. Ela é loira e usa um decote grande. Seu corpo todo é farto e o seu sorriso é encantador. Tem os olhos verdes.

No fundo da festa, uma música totalmente familiar, mas que eu não conseguia identificar. Ela tocava alta.

A garota me parabeniza. Ela diz estar feliz. Diz pra mim que eu saí na capa de uma revista importante. Repete mais de três vezes que eu sou Willa Krahm. Exalta-me. E, de repente, sinto suas mãos envolvendo meu pau com aptidão. Sinto-me estranha e olho as pessoas ao nosso redor.

A festa, que antes parecia formal, havia virado um espetáculo de pornografia. A música, tão familiar e irreconhecível agora era identificável. A voz predominante nela era a minha. Mas a música que tocava, eu ainda não conhecia.

Há alguns metros de mim, havia garotas amarradas e nuas. Estavam de quatro, enquanto recebiam torturas de vários caras. Eu via resíduos de urinas em suas caras, de esperma, de esterco. Elas eram penetradas de várias formas, jeitos. Seus cabelos eram bagunçados e, em algumas meninas, tochas deles ficavam perto de seus corpos. Eles haviam sido arrancados.

Meus olhos cerraram, chocada. Poderia ser eu. Ouço os rapazes chamando-me pra participar da tortura, mas eu não aceito. Percebo ainda que as meninas estão drogadas. Há carreiras de cocaína ao lado delas, à frente, atrás. Dentro delas.

Sinto nojo. E, para todo lugar da festa que eu olhava, havia coisas cada vez mais piores. O cheiro de álcool misturado à droga, suor, sangue e excretas faz-me sentir o vômito passar pela goela e descer de novo, deixando o ácido amargar a garganta e marejar meus olhos.

Afastei-me. Como se uma força quisesse que eu me afastasse. Já não estava mais ali.

Estava em um lugar tranqüilo. Era uma rua alemã, de duas pistas que eram separadas por uma elevação de gramas verdes. Eu estava sentado em um banco e atrás de mim havia um zoológico fechado, pois estava fora do horário de funcionamento.

Eu usava roupas pretas, maquiagem forte e todo o meu traje casual. Estava com a minha idade normal. Em minhas mãos havia o meu diário.

Não o abri ou o movi. Estava sentindo a sensação boa da brisa fria de verão alemão bater em meu rosto com um sorriso nos lábios que se expandia cada vez mais.

Eu abri os olhos e avistei uma Mercedes azul conversível vindo em alta velocidade. Dentro desse carro tocava uma música alta de hip-hop alemão. Ele estava ocupado por meu irmão, com treze anos e Andreas ao seu lado. No banco de trás, estava Georg.

Meus lábios entreabriram. Eu conhecia essa cena. Foi no dia do acidente de carro. Eu estava tendo um flashback. Estava assistindo de novo o dia mais horrível de minha vida.

Desejei voltar ao normal, ter consciência de novo e sair dos efeitos do LSD. Balancei minha cabeça, vendo o carro azul ir à direção de uma árvore. Ao notarem que o carro se amassaria, os três meninos pularam, rolando pelo asfalto.

Tom teve um ferimento no joelho e o segurava com um pouco de dor. Os três olharam o carro se amassando e ficaram desesperados. Era o carro novo do Gordon, que havia custado anos de economias. Era o sonho de nosso padrasto ter aquela Mercedes e eles a haviam destruído.

A fumaça começou a subir pelo carro. Vejo o meu irmão fazendo uma ligação.

“Will, me ajude, por favor.” Ele dizia, nervoso.

“Preciso que venha até aqui, na Rua Spartar.” Continuava o meu irmão.

Não demorou muito. A minha figura de treze anos estava ali. Eu gritei a mim mesmo, mas o garoto não ouvia. Eu sabia que daqui a uns minutos ele iria se foder, mas parecia que aquilo seria inevitável.

A franja jogada nos olhos, o cabelo espetado, as calças rasgadas e a maquiagem. O olhar aflito ao ver o carro amassado, ao ver o irmão machucado e as consequências daquilo.

“Droga!” eu gritei. Depois procurei por meu irmão. Ele não estava mais ali, havia fugido. Mas a polícia estava, haviam acabado de chegar.

Os oficiais me olharam e me perguntaram o que tinha acontecido. Respondi que houve um acidente. E então houve todo o interrogatório, até chegarem à conclusão de que quem estava naquele carro era eu.

Não dedurei Tom. Ele iria pra um colégio militar caso aprontasse outra, então decidi não fazer isso sem o seu consentimento, sem que pensássemos em uma fuga antes, pois éramos ótimos nisso.

Os policiais me levaram até em casa e contaram tudo ao meu padrasto. Ele estava com tanta raiva, que em vez de me bater, chorou, comovendo minha mãe.

Logo depois, convocou Tom para a sala, onde fomos “jogados contra a parede”.

Foi com lágrimas descendo nos meus olhos, que Gordon perguntou a nós dois quem havia feito aquilo.

Os lábios de Tom tremeram. Não queria ter que estudar com os militares.

“Quem?” insistiu nosso padrasto, nervoso.

Eu olhei para o lado, vendo a tristeza nos olhos de Tom. Ele estava tremendo, pedindo socorro em silêncio. Já havíamos ouvido vários contos de coisas horríveis que eram feitas com novatos em colégios federais. Fora que, ele só poderia ver a família de seis em seis meses. Eu não queria ficar longe dele.

“Fui eu.” Disse, sussurrando.

“Foi você, Will?” disse meu padrasto, surpreso. Eu não fazia esse tipo de coisa, nem por diversão. Os olhos dele cerraram, com uma decepção que me deixava mal. Eu não merecia estar recebendo aquilo.

“Você vai ficar um mês sem frequentar a escola de música.” Disse minha mãe, abaixando a cabeça.

“Mãe.” Exaltei-me.

“Você está maluca? Ele precisa de algo mais severo!” gritou meu padrasto, entre dentes. Sua respiração tornou-se maior e, após alguns segundos, ele retirava o cinto dos moldes da calça.

Eu agarrei o braço de Tom, escondendo o ato por trás de nossas costas. Nunca havia apanhado antes. Eu estava com medo daquela ameaça.

“Pára, Gordon. Bater não adianta!” Disse minha mãe, segurando o braço dele.

Ele parou. Mas não estava satisfeito.

A discussão acabou; deixando o clima tenso o dia todo. Até que mamãe saiu pra trabalhar e o meu padrasto voltou.

Tinha as ventas abertas e a pele vermelha. Desligou a televisão que eu e Tom assistíamos e puxou-me pelo braço, até deixar-me perto da escada. Tom grunhiu assustado e nos seguiu.

Assim que tentou tirar-me da mão de Gordon, ele deu-lhe uma correiada forte na canela.

“Sobe pro seu quarto agora!” exigiu Gordon enquanto seus dedos enfiaram-se dentre meus cabelos de forma dolorosa.

Olhei a marca de a correia fixar-se na canela de meu irmão e o início de lágrimas invadir seus olhos. Ao contrário do que esperei, Tom subiu o mais depressa que pôde. Mas não completamente.

Em vez de entrar pro quarto e fechar a porta, ele escondeu-se na beirada da escada e pôs-se a assistir.

Gordon lançou a correia na lateral de minha perna, arrancando um grunhido de dor de minha parte e algumas lágrimas.

“Isso.” Ele ringiu os dentes e deu-me outra correiada no traseiro, “É.” seguida de uma na perna, “Pra.” na barriga, “Você.” no braço “Aprender.” e uma que acertou meus lábios, fazendo-os sangrar.

“A não destruir as coisas dos outros.” Dizia ele, agora sem pausas. Durante toda sua fala, deu-me quatro correiadas seguidas na cintura e largou a correia no chão.

Ainda segurando-me nos cabelos acertou-me um dos olhos com a mão. Eu comecei a soluçar de forma desesperada, tentando afastá-lo. As lágrimas desciam sem exaltação, enquanto ele punha-se cada vez mais descontrolado.

Ele soltou minha cabeça, deixando-a bater na parede e chutou minhas coxas. Depois pegou a sua correia de volta e dobrou-a ao meio, pronto para bater em mim de novo.

“Pára.” Eu implorei. “Pára, Gordon. Pára.”

Ele acertou minha nuca, dando o golpe mais forte de todos. “Desgraçado. Some da minha frente, desgraçado. Some daqui.” Resmungava ele, ainda segurando a correia. Eu corri pelas escadas, sentindo-me tonto, enquanto ele batia a correia no chão, a fim de fazer-me subir mais depressa.

“E não me deixa pegar você no quarto do Tom, seu moleque veado e sem vergonha do caralho.” Eu fiz exatamente o que ele não queria. Subi até o quarto de meu irmão.

Abri a porta e olhei-o deitado em sua cama, com uma expressão aflita e angustiada. Tinha fones nos ouvidos. A razão deles era porque não queria ouvir meus gritos lá de baixo. Certamente o incomodava e contribuía para que sentisse culpa por sua covardia.

Sentia os meus olhos estrábicos e um deles inchado. Em algumas partes de meu corpo, onde os golpes haviam sido mais fortes, eu sangrava. Minha garganta estava congestionada devido ao choro e eu respirava com dificuldade.

Olhei para o meu irmão e, segurando na porta, sorri derrotado.

“Você não vai mais precisar ir pro colégio militar, Tom.”

Após dizer, vi ainda o embaço de sua camiseta preta cuja estampa era “Slipknot.” Senti minha mão escorrendo pela parede e depois o meu corpo caiu no chão, desmaiado. Novamente, estava tudo escuro.

Depois desse flash, várias outras cenas com Tom vieram. Cenas de horror, sangue, dor. O abandono de nosso pai, as brigas, a morte de nossos avôs, as humilhações que eu sofria no colégio.

Até que senti minha boca borbulhando uma espuma branca e os meus olhos revirando.

Eu segurei o lençol, notando que era o fim da viagem. Eu estava na cama de novo e havia uma caneta ao meu lado, juntamente de meu caderno. Meus olhos voltaram ao normal pouco a pouco e eu passei a língua dentre a espuma. Respirei fundo, notando que aquele era o último sinal de minha viagem.

Peguei a garrafinha de água ao lado da cama e a bebi completamente. Estava sentindo muita sede. Levantei-me da cama, colocando meus sapatos.

Por fim, dei um intenso grito. Havia uma aranha enorme entrando debaixo de minha cama. Senti uma tristeza gigante no peito e um medo de ficar louca para sempre. Eu ainda estava alucinando? Ou havia mesmo uma aranha lá embaixo?

De repente havia a sensação de que ninguém me amaria louca. Que a banda iria acabar e que eu iria parar num manicômio. Procurei por algo que pudesse me causar dor. Alguma faca, tesoura. Algo que pudesse me cortar, mas não achei. Uma voz dizia pra eu me matar.

Sai do quarto depressa, procurando por Natalie, ao notar que aquela sensação era familiar. Peguei o elevador e acabei por encontrá-la no hall. Respirei fundo de novo. Não sabia se ela estava mesmo ali.

Sentei-me ao seu lado.

“Nat.”

“O quê?”

“Você é real?”

Ela riu largamente. “Não, sou de mentira.”

“Estou falando sério.”

Ela olhou-me, preocupada. “Você tomou LSD de novo?” questionou.

“Só metade da cápsula, eu precisava relaxar, mas tive uma bad trip.” Justifiquei, confuso.

“Você já está bem? Ainda está chapada?” perguntou ela, olhando em meus olhos.

“Eu não sei. Acho que já estou normal. Foi meia cápsula, então só dura uma hora e meia.” Respondi.

“Muito bem. Nas últimas três vezes que você tomou a sua balinha, só teve bad trips, então a senhora pode, por favor, parar com ela?”

“Mas eu precisava relaxar... E eu não tenho só bad trips, já tive muitas viagens boas.”

“Relaxar, Willa? Os cinqüenta maços de cigarro por dia não fazem mais efeito relaxante, é isso?” perguntou Natalie, dando-me uma bronca.

“Ok. Eu não queria relaxar. É porque toda vez que uso eu posso entrar no meu passado, presente e... Certas vezes, eu acredito que no meu futuro.”

“No futuro, Willa?”

“Você não sabe como é, mas eu sei.”

“Certo. Então usa de novo, bonitona! Vai saber o que vai te acontecer na próxima, não é não? Eu lavo minhas mãos.” Ela bateu os quatro dedos na palma da mão e depois noutra, fazendo careta com os lábios.

“Merda, eu estou precisando de você, Natalie!” a segurei pelos dois braços, quase chorando.

“Hunf.” Murmurou ela e me abraçou forte. “Tenho um recadinho pra você...” ela sussurrou.

“Sim?”

“Sim. David e os garotos estão tomando café, já era hora de você estar lá também.”

“Mas eu não to com fome.”

“Numa boa, Willa?”

“Fala.”

“Come. Você tá precisando comer e eu estou falando sério.”

“Até você?”

“Bom, se você não quer comer, eu estou indo encher o bucho. Fica aí, você e a recepcionista, a recepcionista e você. Vai que rola um sentimento. Ela é fã de Chinatown.” Ela ergueu as sobrancelhas, sarcástica.

“Natalie... Eu... Eu estou mal.”

“Venha comer.”

***

De volta a Los Angeles.

A fumaça eclodiu de meu café. Mexi-o adicionando o adoçante, e olhando a figura à minha frente.

Camiseta cavada larga, piercing brilhante. Olhos sedutores... O mesmo de sempre.

Estava de dia e de manhã. Hospedados em um hotel cinco estrelas, folheávamos um jornal, a fim de procurar uma casa nova pra comprarmos aqui nos Estados Unidos. A ideia, claro, foi minha.

Los Angeles era o cenário perfeito. Menos paparazzi que em Hollywood sem deixar de ser uma grande cidade com uma boa aglomeração de artistas. Havia também as praias, sem contar a beleza local.

“E então, achou algum apartamento?” perguntou Tom.

“Achei... Mas talvez não te agrade.”

“Por quê?”

“Porque é uma casa...”

“Mas ela tem o estúdio?” perguntou Tom.   

“Tem. Ela foi do Thom Yorke, dá pra acreditar?” sorri.

“O cara depressivo do Radiohead?” questionou Tom, franzindo as sobrancelhas.

“Exatamente, haha.”

“Bom, então se tem o estúdio, não temos mais o que conversar.” Disse ele, de forma amigável. “Vou pegar uma coca-cola, ok?”

“Ok.” Respondi, um tanto desiludida.

Olhei ao redor. Havia outros hóspedes na piscina, alguns famosos. Engraçado como eles não se socializavam conosco. Pareciam todos arrogantes e presos em seus mundos de interesses. No mais, eu era igual a eles. Não sentia vontade de me aproximar de nenhum e talvez eles também sentissem isso quanto a mim.

Olhei para o meu irmão, de costas no balcão. Quantos apartamentos não havia naquele jornal? Sou uma boa mentirosa.

Tom finalmente teria a lição. Iria valorar um pouco mais a vida, as coisas, a luz do sol. E, esta linda casa nova, do depressivo Thom Yorke, me ajudaria na missão. Além de um estúdio, ela também tem um lindo porão.

Desviei os meus olhos de Tom e os direcionei ao David, na mesa ao lado. Almoçava tranquilo uma pratada generosa. Diante de tanto arroz, carne, feijão e strogonoff, percebi que já fazia alguns dias que as únicas substâncias que eu consumia eram chocolates, cafés e refrigerantes e, mesmo assim, eu não estava com fome.

Levantei-me e puxei uma cadeira em sua mesa, sentando-me em seguida. Levei os braços até a nuca e relaxei o corpo no apoio da cadeira.

“E então, Davi, o que temos pros próximos dias?” perguntei.

Ele partia a carne com as mãos, deixando o óleo engordurar seus dedos. Aparentava estar com muita fome e mastigava consecutivamente.

“O Tom não avisou que vocês estão livres por três dias?” respondeu, surpreso.

“Não, ele não avisou...”

“Não teremos eventos até segunda que vem.”

“Hm... Ótimo!” sorri.

“Ótimo? Por que, está pensando em fazer algo fora do hotel?”

“Sim, vou poder, não vou?”

“Claro que sim. Mas não se esqueça de levar um segurança, e não se esqueça também que são apenas três dias e que esse hotel é uma maravilha, uma verdadeira colônia de férias!” Eu pude ver um pedaço de carne grande cravado e mastigado entre seus dentes que parecia dizer-me olá. Eu realmente desejei sair do hotel.

“Sim, mas... Eu vou olhar uma casa nova para banda, então não vou poder curtir os três dias de férias no hotel. Talvez eu vá à praia, ou ao cinema também.”

“Sei. Mas pra banda? E a de Berlim?”

“É que eu achei necessário ter uma aqui nos Estados Unidos também, já que vamos gravar o próximo álbum aqui.” Respondi.

“Realmente. Perfeito, Willa.”

“Bem, na verdade, não é pra banda. É pra mim e pro Tom.”

“Uh! Melhor ainda. Vai causar um bom impacto em quem estiver de fora. Já pensou? “Os gêmeos Krahm morando juntos e... Sozinhos.” O que você acha?”

“Acho que...”

“Ssh... Já que estamos no assunto. Willa, eu li o seu diário faz uns dias...”

“Oh, foi você qu...”

“Desculpe.” Ele me interrompeu. “Mas eu não resisti.” Afirmou. “Podíamos publicar aquilo, sabia? Você ia lucrar milhões, fora as discussões e o ibope que ia gerar! Suas historinhas de adolescente apaixonado pelo irmão são fantásticas!”

“David.” Pausei. “Essas “historinhas” não são de um adolescente apaixonado pelo irmão.” Eu fechei os olhos, suspirando.

Qual era a de David? Já me disseram que os produtores não prestam e que só querem saber de dinheiro, mas David, literalmente, não está me respeitando.

“De qualquer forma, obrigado pela folga. Eu preciso ir.” Levantei-me, sem esperar mais uma amolação ou um pedido do tipo “Calma, cara, senta aí e almoça.”

Ele saudou-me e eu entrei no hotel, pegando o meu cartão e subindo até o sétimo andar, onde era o meu quarto.

Passei-o na porta e entrei. Rapidamente fui até os papéis que eu havia rabiscado ontem. A simplicidade e graça daqueles desenhos fizeram-me sorrir.

Havia o Tom, desenhado de forma fofa e preso em um lugar escuro. Eu também estava lá, com os cabelos espetados e uma expressão igualmente delicada. Aquilo era tão maligno e sarcástico, que me fazia confundir as sensações e os sentimentos.

Observei cada detalhe do pequeno “plano”. O papel já não era mais útil, pois eu já tinha tudo em mente.

Retirei o isqueiro de meu bolso e o acendi. Levei o fogo até a folha e deixei que ele fizesse o trabalho de exterminá-la. Depois, fui até o banheiro e joguei as réstias no vaso sanitário, onde evacuei.

Bati uma mão à outra e sai do quarto, indo até lá embaixo. Não existia mais nenhuma prova e já estava tudo minuciosamente planejado.

Amanhã seria um grande dia. Pra mim... E, com certeza, para o Tom.

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