♥ três ♥
HELENA
Voltar para São Paulo ainda é estranho, me traz uma mistura de sentimentos, entre perda e desconforto… Minha mente viaja entre o dia em que vim para cá com expectativas, afobação pela “vida nova” que me aguardava… ao dia em que estar aqui, se limitava a estar por prazer, por que eu estudaria em uma das melhores faculdades do estado, compartilharia um apartamento com meu irmão idiota e faria novas amizades, quais uma cidade tão pacata e familiar quanto Recanto não pode oferecer… Não a necessidade, porque na cidade grande havia vastas opções em médicos das especialidades que eu precisaria dos meses, talvez anos adiante.
É estranho como se mesmo que todas as decisões relacionadas aos meus médicos, tratamento e recuperação, até mesmo o fato de eu não estar mais estudando ali, tenham partido de mim, e eu me sinta… perdida, alheia… é como se tivessem me jogado em um campo desconhecido, e me forçado a trilhá-lo, não… minhas escolhas, a jornada que escolhi trilhar. Acho que no fundo, mesmo tendo a noção do quão difícil isso tudo seria, eu não imaginava que seria tanto… talvez embora eu tentasse me manter com os dois pés no chão, eu tivesse flutuado um pouco, imaginava que o “feliz para sempre” viria mais rápido.
Me remexi sobre o assento de passageiro do carro, puxei desconfortavelmente o cinto que parecia me sufocar um pouco mais a cada pensamento.
— Você está bem agora, querida, é apenas um acompanhamento. — Ternamente, minha mãe tentou me apaziguar, reconhecendo minha expressão corporal. Ela estava no banco de motorista me olhando brevemente antes de voltar-se para a estrada que cada quilômetro percorrido aumentava mais o seu fluxo de carro. Suspirei outra vez, trabalhando minha animosidade interna, então averiguei o perfil de minha genitora… ela era poucos centímetros mais baixa do que eu, seus cabelos eram um pouco mais curtos e encaracolados do que os meus, e sua pele era bem semelhante a de Dona Zefa. Ela era jovem, tinha apenas quarenta e cinco anos, e embora a vida lhe exigisse tanto, era vaidosa o suficiente para se cuidar, fazendo com que sua aparência lhe desse um poucos menos de idade. Nossa relação era leve, eu definitivamente a tinha como uma amiga, mesmo que conversar certos assuntos fosse… inquietante, principalmente quando aos seus olhos, eu tenha me tornado mais frágil do que antes devido todas as circunstâncias que nos cercava.
— Eu sei, só é… estranho estar aqui. — Suspirei desviando minha atenção para as intermináveis árvores ao longo da costeira da estrada.
— Por que estranho? — Questionou, permanecendo-se focada no trânsito, encolhi os ombros.
— Não sei, só é… — Resmunguei encostando a cabeça no vidro da janela, mesmo que não fosse nada sensato a fazer, já que com a movimentação do carro, minha cabeça vez e outra batesse — Vamos encontrar Diogo? — Questiono, não querendo falar o que quer que fosse relacionado as minhas inquietações com minha mãe, ela sempre tinha uma frase motivacional para proferir diante qualquer situação, e sendo sincera comigo, sempre comigo, nunca com ela… essas frases perderam o efeito sobre mim, pois pareciam fantasiosas demais com o tempo.
— Sim, se tudo correr bem, vamos almoçar juntos e passar algumas horinhas com ele antes de voltar para a fazenda — Me olhou por um segundo, demonstrando animação, o que não era de menos, afinal, embora Recanto não ficasse mais de duas horas de distância de São Paulo, meu irmão não nos visitava com frequência, talvez um final de semana a cada quinze dias, então qualquer oportunidade de mamãe ver seu primogênito, era uma festa, mesmo que nos meses dos meus tratamentos tenhamos nos acomodado por um longo tempo no extenso apartamento dele, o qual ocupei por dois semestres da faculdade antes de eu encontrar um nódulo em meu seio esquerdo — Mal posso acreditar que tenho dois filhos adultos! — Comentou com certa melancolia, eu sorri, afaguei seu ombro.
— Sua adulta aqui precisa comer muito arroz e feijão para ser adulta de fato. — Gracejo, mas há um fundo de verdade em minhas palavras. Não sei se é pelo fato de ainda depender tanto dos meus pais, mas sei que me sinto muita coisa, menos adulta… No tempo em que estive aqui teoricamente sozinha, talvez eu tenha me sentido mais independente, mas estar de volta a Recanto, sobre os cuidados dela e de papai, muda muita coisa, inclusive minha visão de independência.
— Bom, adultos ou não, sempre serão meus filhotinhos. — Piscou para mim, mordi meu lábio inferior.
— Assim soa como se fossemos animais…
— Bom, somos a raça humana não? — Seu tom zombeteiro me faz rir pela primeira vez desde adentramos o carro.
— Mamãe! — A repreendi, fazendo-a rir, me fazendo apreciar seu momento mais leve, menos cansado. Gosto disso, gosto muito… e isso atenua a sensação esmagadora de eu me sentir um fardo para ela.
♥♥♥
Mesmo tendo despertado minha ansiedade, a consulta correu como de costume, regada de perguntas, verificações e principalmente recomendações. Agora, seis meses após minha cirurgia, Diana — Minha médica, informou que nossos encontros seriam mais espaçados, mas que estaria sempre a disposição para dúvidas ou eventualidades — Penso que a eventualidade seria achar algum outro nódulo, afinal, embora as chances de ter um câncer tenha diminuído significativamente, ainda existia uma pequena porcentagem a seu favor.
Sai da sala com a rotineira mistura de sentimentos, alívio atrelado a insegurança, mamãe por sua vez estava exultante, oferecendo sorrisos para quem quer que fosse, eu me permiti sentir um pouco de sua animação, pois embora estivesse tudo diferente… seguíamos para um caminho promissor.
— Impressão minha ou você diminuiu desde a última vez que nos vimos, Leninha? — Foi a maneira que meu irmão me saldou assim que nos encontramos em uma das mesas do restaurante que ele nos aguardava, revirei os olhos mesmo que meu coração se aquiescesse com sua provocação. Diogo e eu tínhamos uma diferença de quase três anos, enquanto completei meus vinte e dois alguns meses atrás, ele em breve completaria vinte e cinco, ainda assim, ele insistia que eu era uma pirralha e claro, zombava meu tamanho, que a meu ver, um e sessenta e cinco, era proporcional, não seus quase dois metros de altura!
— Impressão minha ou você está mais idiota? — Entrei em sua provocação, deixando-me ser envolvida por seus braços fortes, apertados, sufocante, mas familiar… abraços, ainda era estranho… como alertado, havia perdido uma porcentagem da sensibilidade a minha frente, a abraços, não era como se não existissem mais, mas… a diferença estava ali, engoli seco, forcei um sorriso, preciso focar no bom, preciso parar de deixar minha mente me trair — Como está sendo viver sem mim? — Questiono, mesmo que falar sobre minha partida daqui não seja bem o assunto que eu queira entrar.
— Ótimo! Agora não preciso ter cuidado com minhas aventuras… ai. — Bradou antes de concluir suas palavras sem vergonhas, nossa mãe silenciosa lhe deu um beliscão.
— Respeite-nos, garoto, não precisamos saber de suas indecências. — Ela ralhou como uma boa pessoa recatada, é claro que ri, e ainda zombei dele, jogando mais lenha na fogueira.
— Sendo sincera, nem quando eu estava lá ele havia cuidado. — Menti, embora meu irmão não esforçasse em manter uma reputação de bom moço, foram raras às vezes que o vi levar alguém para o seu apartamento enquanto estive lá.
— O quê? — Ela ralhou novamente e em seguida lhe deu um novo beliscão.
— Mãe, por Deus, isso dói! Puta que pariu, Lena! — Ralhou, me fazendo rir mais.
— Se fosse para fazer cócegas, acredite, não lhe beliscaria — Nossa mãe revirou os olhos, então suspirou — Agora me dê um abraço, estava com saudades. — Sua expressão repreensiva transformou-se em algo mais dócil, maternal, eu me afastei brevemente, lhes dando espaço.
— A senhora nem merece… ai, mãe! — Ri, maneando a cabeça em negação, vendo-os por fim abraçarem-se, céus, como os amava.
♥♥♥
— Então, como estão as coisas? — Questionou Diogo segundos após uma das atendentes do restaurante anotar nosso pedido. “As coisas” em seu vocabulário se tratava da minha saúde, de certa forma, o assunto em questão parecia tão desconfortável para ele quanto para mim… creio que no fim, mesmos nos provocando, brigando constantemente quando perto, éramos próximos, e a suposição de que um de nós não estarmos bem, era inquietante, e existia o fato de sua super proteção, ele tentava me proteger de tudo e todos, talvez conseguisse me proteger das investidas de seus amigos emocionados, mas a vida e suas contingências? Eram custosas a refrear.
— As coisas, sinônimos de mim… — Me indiquei com um meio sorriso — Estamos ótimos! — Pisquei para ele, tentando lhe passar tranquilidade. Diogo ainda tinha mais um ano de faculdade pela frente, quaisquer indícios sobre problemas, o faria querer ir para casa, assim como aconteceu há alguns meses… fazer com que ele retrocedesse aquela ideia foi difícil. Mamãe compartilhou os mesmos pensamentos que eu.
— Na fazenda também, seu pai está ajeitando algumas coisas, por isso não veio, mas disse que em breve voltaremos, para ter um dia em família. — Ela sorriu teatralmente, a olhei por um segundo… é, não era só de mim que ela e papai estava escondendo os problemas da fazenda ou… talvez ambos estivessem em complô para me manter alheia a tudo, arqueei a sobrancelha, os estudei.
— Deveria aparecer mais vezes na fazenda, aquilo é grande demais sem você para me irritar. — Comentei, meu irmão riu. Não era segredo que preferia a cidade, eu particularmente não trocaria Recanto por nada nesse mundo, mas meu irmão tinha minhas dúvidas… ele nos amava o suficiente para não desaparecer, porém apreciava a cidade, assim, aproveitava o máximo que poderia ali antes de assumir qualquer coisa que nosso pai almeja nos negócios da família para ele.
— Deixe as semanas de provas passarem, então estarei por lá, para te fazer desejar que eu suma — Prometeu em um riso fácil — Sabe que se precisarem de mim, estarei lá nas próximas horas, certo? — Questionou pegando a minha mão e a de mamãe, nós duas assentimos.
— Claro, filho. Mas reitero, tudo segue seu curso, dessa forma, foque em seus estudos, nada além! — Orientou mamãe. Meu irmão me olhou como se esperasse que eu lhe desse uma resposta diferente do que a dela, mas eu sorri e concordei.
— Estamos bem, Di, caso aconteça algo, seria a primeira a telefonar. — Garanti, mesmo que talvez eu não fizesse.
O garçom finalmente trouxe nossos pedidos, nos empenhamos em aproveitar nossos pratos enquanto mamãe resumia nossas peraltices de anos não tão distantes ao atual.