♥ dois ♥
HELENA
— Não, eu apenas estava passando…
— Passando? Com o ouvido colado na porta? — Me olhou com a sobrancelha arqueada, mordi o lábio inferior.
— Papai está com problemas? — Questionei, ignorando minha falta de modos, algo no semblante de minha mãe mudou… ela parecia mais preocupada do que brava.
— Problemas? De onde tirou isso, menina? — Um riso nitidamente forçado esvaiu por entre seus lábios — Vá tomar seu café, precisamos ir a São Paulo um pouco antes do almoço para a sua consulta. — Apontou na direção em que eu seguia a poucos minutos, ponderei insistir no assunto, mas retrocedi na ideia, ela parecia tão cansada. Me senti culpada, pois sabia que isso era resultado de toda sua dedicação a mim, suspirei e me limitei a assentir. A vi bater na porta em que eu estava encostada, segundos depois ela adentrou, e eu, mesmo morta de curiosidade, segui em direção a copa.
♥♥♥
Mal toco a generosa fatia de bolo que Dona Zefa fez questão de cortar para mim, a conversa que escutei entre meu pai e o advogado martela em minha cabeça, que não vê lógica na quase falência de meu pai… embora não fossemos a maior fazenda de Recanto, ficávamos entre as melhores e mais procuradas na exportação de soja… eu não estava tão envolvida nos negócios da família para saber apresentar números que validava nossa pequena fortuna, mas sabia que tínhamos algo palpável, que poderia seguir de geração a geração, até agora… Algo havia acontecido, mas o quê?
— Lena… — A voz de dona Zefa me tirou de transe.
— O quê? — Arqueio a sobrancelha, confusa.
— O bolo, está ruim? — Franzo o cenho e nego.
— Quê? Não! — Maneio a cabeça novamente — Está maravilhoso — Forço um sorriso e dou uma garfada, ela ri maneando a cabeça em negação, então se vira para a pia, suspiro, abandonando meu garfo no prato, olho na direção que vim, ponderando voltar para a porta, mas antes que meus pensamentos se tornem ações, vejo Gael vir com uma expressão nada amigável — Gael… — O chamo, ele me olha confuso, até tentar disfarçar suas tensa expressão corporal em algo mais suave com um sorriso.
— Helena… — Vem em minha direção, eu me levanto para cumprimentá-lo com um abraço na força do hábito. Conhecemo-nos há muito tempo, mas precisamente desde que nossos pais começaram a trabalhar juntos, geralmente seu pai o trazia e o deixava brincar com meu irmão mais velho, Diogo e eu. Poderíamos nos considerar… amigos, o que fomos, até que misturamos as coisas e não restou muita coisa para contar história — Você parece bem… — Seu olhar me checa quando afastamos do rápido abraço um tanto que esquisito. Me sinto estranha, faço com que meus próprios braços me envolvam em algo semelhante a um auto abraço, então sorrio.
— E eu estou… — Suspiro, desvio o olhar por um segundo antes de voltar para ele — Você parece bem também… — Devolvo, ousando olhá-lo por alguns segundos. Desde sempre Gael tem beleza para dar e vender. Pele bronzeada, cabelos bem curtinhos, dono de par de olhos castanhos claros, alto, forte, e para completar o pacote, um cara bacana… ele era a cobiça de muitos.
— Vamos seguindo, né? — Ele força um riso, então suspira — Bom, tenho que ir.
— Não quer uma fatia do bolo de dona Zefa? Está divino… — Ofereço, para que ele fique por um pouco mais de tempo para saber mais do que ouvi mais cedo, mas ele nega.
— Preciso encontrar outro cliente no centro… mas, obrigado! — Ele sorri — Tchau, Dona Zefa… Helena.
— Vai com Deus, meu filho! — Dona Zefa acena, e me olha com um olhar sugestivo, reviro os olhos, voltando-me para Gael.
— Hum, me deixe te acompanhar até lá fora. — Me prontifico, e já abro caminho. Sigo em passos rápidos até a S10 estacionada em frente a minha casa, paro na porta do motorista, impedindo a entrada dele, ele me olha confuso.
— Helena… — Há algo em seu olhar, algo semelhante à expectativa, a qual prontamente corto.
— Meu pai está com problemas? — Questiono, ele me olha mais confuso, até algo em seu semblante brilhar em entendimento.
— Creio que é melhor você perguntar para ele…
— Mas estou perguntando a você… — Olho no fundo dos seus olhos, ele mantém nosso olhar — Por favor, Gael… — Levo minha mão em seu antebraço, ignorando os limites estabelecidos por mim mesma, Gael olha para minha mão, a mantenho lá, preciso de respostas, ele suspira.
— Seu pai não irá gostar disso. — Destaca.
— Eles fizeram tanto por mim, sinto que preciso fazer algo, mesmo que seja apenas o mínimo.
— Sinceramente? Não acredito que tenha algo que possa fazer. — Diz, dou de ombros.
— Bom, não saberei se não souber de todas as informações… — Insisto, ele suspira.
— Tudo indica que houve alguns desvios de dinheiro da compra de material, de manutenção de máquinas… Não sabemos ao certo onde aconteceu essa falha contábil, mas aconteceu, e com as retiradas em alta das contas pessoais do seu pai, vocês estão no vermelho… — Explica, meu coração se aperta.
— É porque fiquei quase doente? — Minha voz falha, a culpa me envolve.
— Quê? Não, não pense nisso, Helena! — Exclama levando sua mão na minha, ainda em seu antebraço, um breve formigamento me ocorre — Estamos em apuração ainda, mas tudo me leva a crer que um dos funcionários de seu pai o roubou…
— Mas seja sincero, se eles não tivessem gastado tanto comigo, talvez…
— Não pense assim, seus pais a amam, e posso jurar que eles entregariam tudo isso em troca do seu bem-estar. — Engulo seco, desvio o olhar.
— Acha que é possível voltarmos ao que era antes? Sair do vermelho? — Questiono afastando minha mão da dele. Gael se recompõe, então assente.
— Com certeza! Mas seu pai terá que ceder…
— Ele tem essas terras há muito tempo, pedir para ele vender parte dela, é pior que pedir para arrancar o próprio braço. — Forço um riso, Gael ri.
— Se não fazer isso, ele não perderá apenas uma parte, Helena…
— Um empréstimo talvez? Ele sempre teve um ótimo nome… — Tento ponderar uma solução que não seja o impossível, Gael nega.
— Uma das contas em a ver do seu pai, é um empréstimo altíssimo, logo, nenhum banco confiará lhe dar outro empréstimo. — Informa, seguro a respiração por um segundo.
— Não há mais nenhuma alternativa que não seja vender uma parte das terras? — O olho esperançosa, mas Gael nega.
— Como disse ao seu pai, é isso, ou a próxima vez que vier aqui, não terei soluções, Helena, provavelmente será para anunciar o pior — Meu corpo se arrepia por completo — Tente falar com ele, ele sempre a levou em consideração… — Sugere, eu assinto — Bom, tenho que ir — Ele me oferece um sorriso, então deposita um beijo rápido em minha bochecha, meu corpo tensiona — Fique bem. — Forço um sorriso, saio da porta do seu carro, então o vejo partir.
— Resolveu finalmente dar outra chance para o rapaz… — A voz de minha mãe ecoa, sobressaltando-me, assustada.
— Mamãe! — A repreendo levando a mão em meu peito, sentindo meu coração bater freneticamente, ela ri.
— Eu vi o beijo. — Constou com malícia, se aproximando.
— Foi na bochecha! — Esclareço bufando, mas o sorriso sugestivo em seus lábios não se desfaz.
— Não pensou nem por um segundo como seria em outro lugar? — Arqueou a sobrancelha, a olho inconformada.
— Não! Céus, não veja coisa onde não tem, somos apenas amigos! — Bufo outra vez — Na verdade, nem isso… conhecidos nos definiria melhor. — Me corrijo, ela arqueia a sobrancelha.
— Antigamente costumavam ser mais que isso… muito mais. — Destaca, trazendo o passado a tona. Reviro os olhos, não é de hoje que ela vem criando expectativa sobre uma volta entre mim e Gael.
— Disse bem, antigamente… antes de ele terminar tudo e ir para a faculdade! — Bato os pés em passos rápidos para longe dela. Não que eu me ressinta de como as coisas com Gael, tenha terminado, na verdade, até tenho carinho por ele… e sendo sincera, por vezes me pego imaginando no que seríamos caso ele não tivesse terminado ou eu, simplesmente tivesse lhe dado uma chance de reaproximação… no fundo, sei que nada será como um dia poderia ter sido, além de que, por mais que houvesse os “e se” rondando a minha mente, meus sentimentos por Gael mudaram, eu o havia superado a tempos, e não seria idiota a ponto de pôr expectativas onde não tinha cabimento.
Minha mãe que lutasse com suas próprias expectativas!
Suspirando profundamente, o que realmente merece a minha atenção, volta a minha mente, a situação de minha família.