Resumo
Sendo filha caçula dos Alpes Garcia, Helena desde o seu nascimento foi dada como aquela que deveria ser protegida por todos a sua volta, e quando ficou doente esse cuidado redobrou... o que eventualmente a deixou alheia a situação preocupante a respeito das finanças de sua família por um tempo... mas agora, ela tem o conhecimento, e fará algo a respeito, afinal, é o seu dever. Sol Nascente é a fazenda ao lado das terras Alpes Garcia, propriedade que por muito tempo foi deixada aos cuidados de antigos funcionários, isso é, até a chegada repentina e misteriosa de Noah, o herdeiro das terras. Mal-humorado, reservado, de presença e olhar intimidante, poucos ousam uma aproximação amigável do rapaz, o que para ele, não é nada ruim, na verdade, essa é sua intenção por trás dos seus trejeitos: manter-se longe de qualquer interação desnecessária. Mas muita coisa muda quando Helena aparece, desejando fazer-lhe uma proposta, a qual mesmo sendo puramente profissional, mudará as suas vidas para sempre. Ela via nele a chance de sua família reerguer-se… Ele via nela o que secretamente desejou mais possível do que nunca, e não soube se aquilo o satisfazia ou o assombrava, afinal, não era porque a desejava que significava poder tê-la… pois uma vida ceifada já bastava para sua carga de culpa… Ele era salvação dela. Ela, por sua vez, a provação do seu controle.
♥ um ♥
HELENA
Parada diante o espelho de meu guarda-roupa, me encarei através dele. Meus cabelos negros, médios e encaracolados estavam presos no topo da cabeça em um coque bem preso, já que havia acabado de sair do banho, um roupão em um tom amarelo pastel cobria parcialmente meus braços e ia até um pouco depois de meus joelhos.
Ainda me encarando, levei os dedos de ambas as mãos no nó que mantinha a peça felpuda fechada, cobrindo meu corpo já seco… desfiz os dois nós e gradativamente puxei os dois lados em direções opostas, revelando a frente de meu corpo.
Desde minha cirurgia sigo essa rotina, tomo meu banho, enxugo e hidrato meu corpo, visto o roupão, assim venho para frente do espelho e me olho através dele, mais precisamente às áreas cortadas, demudadas, parte irreconhecível de mim…
Eu tentava me enxergar da mesma maneira que antes, com a mesma segurança, amor, autoestima… mas como fazê-lo, quando eu me sentia tão estranha em meu próprio corpo? Não conseguia enxergar nada além das cicatrizes, o modo como meus seios parecem mais redondos e altos… segundo os médicos cirurgiões, haviam seguido o meu modelo natural arrisca, para que minha adaptação fosse fácil e talvez até tivessem, mas as cicatrizes e tudo relacionado a elas me faziam ver muitas coisas ali, menos os meus seios de antes, consequentemente menos eu.
Suspiro profundamente, arrasto gradativamente a ponta dos meus dedos, a princípio pelo roupão, eventualmente alcança a área baixa de minha barriga, arrepio levemente, pelo choque entre a pele quente de minha barriga com a gelada da ponta dos meus dedos, suspiro profundamente, arrastando-os mais, gradativamente, chegando na ponta de uma das cicatrizes, no vão da parte inferior de meus seios, pondero tocar, mas meu dedo trava onde está… desde que tirei os curativos tenho tentado tocar a cicatriz, mas algo sempre me detém, o medo, a insegurança, são assustadores… Após a chegada de meu diagnóstico, posteriormente a minha decisão em fazer a cirurgia, eu estava a par de todas as observações médicas, retirada e reconstrução dupla, perda parcial de sensibilidade… temerosa, os encarei, mas agora, tão diante deles é mais apavorante do que supus que seria, e mesmo que eu saiba que muita coisa mudou, que deixar meu dedo percorrer as cicatrizes não mudará nada que não já tenha mudado, postergo minhas ações, finjo que quando me permitir tocar-me, sentirei tudo que um dia senti…
— Lena — A voz de Dona Zefa ecoa junto a batidas contra a porta de madeira do meu quarto, abruptamente fecho o roupão. A porta está trancada, ainda assim, parece estranho ser chamada quando estou em um momento tão… meu, íntimo, vulnerável.
— Sim? — Resmungo seguindo para a porta, abrindo-a no instante em que parei diante dela.
— Desculpa o incômodo, querida, mas vim avisar que o café da manhã está servido. — Informou com um meio sorriso, balancei a cabeça em negação, seguidamente sorri para ela.
— A senhora nunca é um incômodo, Dona Zefa! — Minha mão encontrou a sua, assim a apertei carinhosamente, mantendo o olhar terno que me oferecia. Dona Zefa era uma senhora de pele mais retinta do que a minha, cabelos curtos parcialmente acinzentados, baixa, gordinha, de meia-idade, ela era adorável em sua aparência e presença, e ajudava minha mãe com a casa desde que me entendo por gente, ela era sem dúvida já parte da família Alpes Garcia.
— Se Lena disse, tá falado! — Seu sorriso ampliou, e sua mão afagou a minha. Suspirei ainda com um meio sorriso.
— Só vou me trocar, então desço para comer aqueles quitutes que apenas a senhora sabe fazer. — Pisquei em sua direção. Sem lidar bem com elogios, ela riu sem jeito, assim maneou a cabeça em negação.
— Deixe sua mãe a ouvir falando isso. — Resmungou se permitindo a rir, a acompanhei.
— Falando o quê? Eu disse alguma coisa? Não lembro! — Encenei uma expressão desentendida, a senhora gargalhou.
— O que faço com você menina? — Bufou em uma falsa repreensão, sorri, em seguida beijei sua bochecha.
— Continue me mimando com aquele seu bolo de coco dos deuses… — Bati os cílios freneticamente.
— O que acha que está te esperando lá embaixo? — Arqueou a sobrancelha, riu, então começou a se afastar em passos lentos, sorri, balançando a cabeça em negativo. Havia momentos que tudo parecia o mesmo, que eu era a mesma… eu tentava aproveitá-los, tentava encontrar-me neles.
♥♥♥
Optei em vestir-me com um dos meus inúmeros vestidos soltinhos, o que escolhi em questão era branco florido, possuía um discreto decote canoa, findava a uma palmo antes dos joelhos e suas mangas eram bem curtas, mal cobrindo os ombros. Gostava dele antes, e gostava um pouco mais agora… Era uma das poucas peças que me deixava mais confortável. Suspirei, sentei em minha cama, onde calcei meu par de botas de cano curto em tom bege escuro. Morando em uma instância rural como Recanto, usar um par de botas era praticamente uma lei, além de facilitar caminhadas longas pelas ruas de terra e espaços repletos de mato, era boa para qualquer eventualidade de aparecimento de bichos ou coisas semelhantes.
Apanho meu celular da mesa de cabeceira da cama, olho em sua tela, averiguando o horário, a mesma marca oito e dez da manhã, o que significa que dormi um pouco mais do que o costume. Desde que voltei para a fazenda tenho tentado mudar minha rotina ou pelo menos voltar ao que era antes de minha mudança… além da recomendação médica, não poderia agir como se estivesse na cidade grande, onde me permitia acordar quase onze, após passar madrugada a dendo com a cara enfiada nos livros da faculdade. Balanço a cabeça de um lado para o outro, empurrando qualquer pensamento que me leve ao passado não tão distante, tenho que focar no agora, tenho que focar no que farei daqui em diante, não do que foi interrompido abruptamente, do que escolhi deixar para trás…
Me recompondo ensaiando uma expressão neutra, assim, saio do meu quarto, seguindo o corredor extenso em passos lentos.
— Já disse que não venderei nem um terço dessas terras, das minhas terras! — A voz feroz de meu pai soa de repente, o que me faz parar abruptamente, só agora notando que passo em frente a porta fechada de seu escritório, meus lábios franzem, pondero adentrar o cômodo, perguntar o que está acontecendo, afinal, é raro ouvir meu pai usar um tom assim, além de naturalmente calmo, exaltar-se como se encontrava nesse momento, ia contra suas recomendações médicas após um mini infarto no mês passado… Elevo a mão sobre a madeira, mas não bato quando outra voz soa, ela é familiar.
— O senhor entende o que estou falando, seu Adalberto? Entende que essa é a única solução? — Identifico o dono da voz rouca, é Gael, o jovem advogado de papai. Engulo seco, constando que algo sério estava acontecendo.
Sei que é errado estar parada diante a porta assim, principalmente da porta do ambiente de trabalho de meu genitor, mas ao invés de me afastar, eu me aproximo mais, deixo meu ouvido colar na porta.
— Não me venha com essa mesma história, Gael! Se seu pai estivesse vivo, ele me traria uma solução que não fosse desfazer de algo tão precioso quanto as minhas terras! — O tom ríspido, totalmente desprovido de empatia de meu pai me faz arrepiar… O pai de Gael havia falecido há alguns meses, vítima de um trágico acidente, não querendo deixar qualquer um dos clientes do pai na mão, Gael assumiu uma boa parte dos trabalhos do pai, inclusive aconselhamento empresarial para o meu, o que os trazia nesse instante. Mas dentre todo o drama da situação, o que mais me deixa confusa é a possibilidade de vender uma parte da Alpes Garcia… o que está havendo? Por que Gael insiste nessa questão? Aperto um pouco mais meu ouvido ali.
— Passei noites em claro, fiz inúmeros estudos acerca da sua situação Adalberto, e a única solução que vi é essa, caso não o faça, terá que em breve declarar falência! — Exclamou em um tom tão altivo quanto o do meu pai. Falência? Pisquei algumas vezes. Estávamos falindo, era isso? — Não estou dizendo para vender tudo, talvez…
— Se insistir nessa ideia o demitirei, Gael, estou lhe avisando… nem o fato de ser filho de um grande amigo meu, me impedirá!
— Helena, o que está fazendo? — A voz repreensiva de minha mãe soou, me fazendo virar na direção dela com um meio sorriso, olhei para a bandeja que ela tinha em mãos, sobre ela havia xícaras e a garrafa de café — Após crescida terei que ensiná-la que não se ouve conversas atrás da porta? — Mordi o lábio inferior, envergonhada, então deixei nosso olhar se manter.
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