Capítulo 1
Parte 1: Em Gelo.
"A morte não diferencia os pecadores.
dos santos.
Ela só toma, toma e toma."
— Hamilton
1- Gurgun: Gurguns são criaturas parecidas com lobos, porém são maiores e mais fortes, quase como lobos gigantes. Alguns gurguns são capazes de até mesmo transportar pessoas e são controlados somente pelos Ivanski.
2- Kokôchnik: É uma tiara russa tradicional feita de tecido. Este antigo acessório russo tem a forma de crista (leque ou escudo redondo) e é um símbolo da moda russa.
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O verão em Lupirlan era quente. Dependendo da região, poderia até mesmo durar mais de um mês. Mas nada se comparava ao calor infernal do reino de Aljanub.
Zaya estava caminhando pelo Palácio, em direção ao quarto de sua mãe. Seu irmão gêmeo, Viktor, caminhava ao seu lado com os olhos fixos em um pequeno livro, o qual ele estava lendo atentamente. Haviam três guardas um pouco mais a leste, ela não precisou sequer olhar para o irmão para saber que ele estava imaginando formas rápidas e precisas de matá-los, caso fosse necessário.
Assim que viraram um corredor, Zaya recebeu o olhar atento de um guarda que vinha em sua direção. Um minúsculo sorriso viperiano surgiu em seus lábios e a espada embainhada e presa à seu caftan pareceu pesar. Ela contou as janelas (quinze), as saídas (duas) e os guardas posicionados do lado de fora da porta e das janelas (dez).
O Palácio inteiro parecia os observar com atenção, medindo seus passos, atentos a qualquer movimento que faziam. Alguns os olhavam com desprezo. Estrangeiros não eram bem vistos ali. E se a aparência de ambos não os delatassem, seus kaftans fariam o suficiente. E Zaya sabia que a única razão de ainda não ter sido atacada, era o símbolo de lobos costurado e a cor azul marinho de seu kaftan, que os indicavam como a realeza de Lupirlan. E talvez, as orelhas pontudas e os caninos levemente alongados que possuíam.
Não era segredo nenhum que os feéricos poderiam derrubar humanos facilmente. Aqueles soldados e guardas humanos não seriam capazes de os parar, nem se desejassem.
Aemon, o gurgun¹ negro de Zaya, rosnou para um dos guardas. Ele contrastava perfeitamente com Rhagnar, o gurgun branco de Viktor. Zaya gostava disso, de como até mesmo seus animais eram opostos e se completavam. Dois lados de uma mesma moeda, assim como os gêmeos.
— Tente não matar ninguém, enquanto estivermos aqui.
A voz fria e grossa de Viktor soou, fazendo Zaya revirar os olhos, sentindo o próprio sorriso desmanchar.
— Sabe como odeio ser vigiada.
Viktor fechou o próprio livro, o que acabou fazendo um baixo baque e encarou a irmã. Os olhos azuis brilhando com uma minúscula centelha de diversão.
— Estamos em outro reino. Um reino fechado a anos. É normal que estejam desconfiados… para dizer o mínimo.
Um pequeno sorriso de canto surgiu em seus lábios e ela apoiou os braços atrás das costas enquanto caminhavam.
— Não é por isso que estão nos vigiando.
Ela disse e o irmão lhe lançou um olhar irritado. Zaya continuou caminhando, quando a voz de seu irmão soou em sua mente.
"Pare de dar a eles ainda mais motivos."
Ela suspirou de forma irritada, chegando no corredor em que o quarto de sua mãe estava e encarou Viktor, que já havia voltado a ler. Seu irmão era alto, apesar de ainda possuírem dezessete anos. Apesar de parecer magro, Zaya sabia que por baixo do kaftan, Viktor possuía um corpo definido. Os cabelos escuros de seu irmão estavam maiores do que o usual e isso acabava fazendo com que uma pequena mecha deslizasse a todo momento por seu rosto anguloso e pálido. Em algum momento, Viktor simplesmente desistiu de ajeita-la.
Ele não era apenas seu irmão gêmeo, ele era seu sūdus. Uma pessoa tão próxima de si que interligava a alma e a mente com a sua. Em outras palavras, eram almas gêmeas, portanto tinham esse pequeno dom de falar na mente um do outro, como qualquer outro sūdus.
"Você sabe que ela provavelmente quer saber por que o Sultão está nos prendendo no Palácio, não é?!"
Ela respondeu. O irmão não tirou os olhos dos livros, enquanto diminuiam os passos próximos ao quarto.
"Eu ficaria surpreso, se não fosse isso."
Viktor respondeu, com o minúsculo sorriso de canto. Zaya voltou a olhar para frente, caminhando e observando as paredes que pareciam ser feitas do próprio ouro.
Eles chegaram na enorme porta com detalhes em ouro e encararam a feérica que vigiava o corredor. Martha Svatozv. A melhor amiga e sūdus de sua mãe possuia duzentos e quarenta e cinco anos. Ela estava de frente para um guarda com a roupa carmesim de Aljanub.
Martha trocou um pequeno sorriso cúmplice com os gêmeos, o que pareceu fazer a marca avermelhada acima de sua sobrancelha se destacar, antes dos gêmeos adentrarem o cômodo.
— Mandou nos chamar, mãe?
Zaya perguntou em um tom entediado. Viktor fechou o próprio livro no mesmo momento em que Akilina Ivanski se virou em sua direção. O kokôchnik² vermelho completava as cores de seu vestido e fazia a tiara prateada parecer ainda mais destacada.
Dimitri, o marido de Akilina e padrasto de Zaya, sorriu para ambos.
— Vocês estão atrasados.
A Ivanski mais velha falou com sua frieza habitual, arqueando uma sobrancelha. A feérica possuía duzentos e quarenta e três anos, esbanjava uma verdadeira beleza. Com uma pele clara, cabelos escuros como ônix e uma marca vermelha na sobrancelha superior idêntica a de Martha, que faziam seus olhos azuis se destacarem ainda mais. Os olhos Ivanski.
Eles eram os olhos mais lindos que existiam, na humilde opinião de Zaya. Eram de lendas passadas. Conhecidos pelo mundo inteiro por serem únicos. Os olhos abençoados pela própria deusa Deika.
Qualquer membro da família Ivanski possuía aqueles olhos. Do mais claro azul, em um degradê até as bordas com um azul mais escuro. Olhos de safira. Olhos de gelo. Olhos do mar. Olhos Ivanski.
— Eles chegaram quinze segundos atrasados. Pare de ser tão exigente.
Dimitri falou e Akilina suspirou, revirando os olhos. O marido de sua mãe era um semi-feérico de duzentos e sessenta e três anos, loiro, com olhos acinzentados e uma pele levemente bronzeada. Ele deu um sorriso para Zaya, que retribuiu.
Dimitri não era seu pai de sangue, mas era de coração. Ele a ensinou tudo que um pai deveria ensinar, tanto para ela, quanto para seus irmãos. Ele a acalmava quando era mais nova e tinha pesadelos, lia histórias para ela e até mesmo a ajudava a escapar das broncas de Akilina, fêmea pela qual sempre foi apaixonado.
Mas Akilina era uma fêmea difícil. Chefe da maior guilda de assassinos de Veldrien, além de rainha de Lupirlan. Ela havia se casado com Tristan, um duque rico, pai biológico de Zaya e Viktor. Ambos se divorciaram quando Zaya tinha três anos e depois de cento e doze anos de sentimentos reprimidos, Dimitri e Akilina finalmente se assumiram. Apesar do título de vice-rei permanecer com Tristan.
— Você sempre os mimou demais.
A fêmea respondeu, embora não aparentasse estar realmente irritada. Não. Akilina Ivanski inspirava respeito por onde passava, ela não precisava se irritar para tal. O povo não sabia que ela era a dama de ferro, a líder dos assassinos. Eles a amavam e a respeitavam. E o submundo a temia o suficiente para não se arriscar sua fúria.
Dimitri deu um beijo na bochecha de Akilina e se aproximou dos dois recém chegados.
— Vocês estão bem?
Viktor o encarou e até mesmo ele, seu frio irmão, pareceu ficar mais tranquilo na presença do mais velho.
— Fora o fato de estarem nos olhando estranho… sim.
Zaya sorriu para Dimitri.
— Estamos bem, pai.
O loiro sorriu, como sempre sorria quando qualquer um dos cinco o chamavam de pai e deixou um beijo na testa de Zaya.
— Sua mãe tem uma missão para vocês, mas se chegarem cedo, podemos jogar uma partida de xadrez.
Ambos os gêmeos sorriram, antes de Akilina se aproximar. O kokôchnik² vermelho contrastando com a tiara dourada em sua testa.
— Quero que saiam do Palácio. Quero saber por que estamos sendo mantidos presos aqui, o que o sultão está escondendo. Quero saber tudo e mais um pouco.
Um aceno em confirmação.
— Diana mandou uma mensagem. - Viktor falou, entregando o komunic, um aparelho pequeno e eletrônico inventado por Diana e por ele, afim de mandar cartas de forma mais rápida, entre outras coisas. - Ela conseguiu a planta do Palácio, porém é antiga.
Viktor apertou um botão e o holograma apareceu, mostrando o palácio. Akilina moveu a mão, ampliando uma parte, ao sul.
— Aqui. Estão vendo? Dimitri fez uma avaliação, os guardas daqui fazem turnos de duas horas apenas. É o melhor lugar para conseguirem sair.
A porta se abriu novamente e Dimitri entrou, estendendo o próprio aparelho.
— Mike, pra você.
Akilina o encarou, antes de suspirar, pegando o komunic e apertando um pequeno botão.
— Michael.
A voz da mãe saiu de forma seca. O irmão mais velho de Zaya apareceu, completamente arrumado, como sempre. Os cabelos castanhos penteados para trás e os olhos azuis brilhando com aquela bondade que somente ele demonstrava ter.
Michael possuia vinte e cinco anos e não era seu irmão de sangue. Nem ele, nem suas outras duas irmãs. Eles eram seus primos, filhos da irmã mais nova de Akilina. Ela e o marido morreram em um trágico acidente, deixando para trás os três filhos.
Mike tinha apenas seis anos na época, Allura possuía três e Diana, seis meses. Akilina os adotou e os tratou como filhos, dando a eles todos os direitos que seus filhos biológicos possuíam, apesar de Viktor e Zaya terem nascido dois anos depois que sua prima Diana.
— Olá mãe. Zaya, Viktor. Como estão ai?
A voz de Mike soou, grossa e suave como a meia noite. Zaya sorriu para o irmão mais velho e Viktor acenou para a imagem. Sua mãe suspirou novamente.
— Estamos ocupados, Michael. O que deseja?
Ele sorriu, um sorriso que Zaya sabia fazer derreter o coração de gelo de sua mãe. Não era nenhum segredo que Akilina possuía um certo favoritismo com Mike. Ela sempre fora mais maleável com ele. Todos os seus filhos faziam testes e provas durante a vida para ver quem herdaria o trono e já havia sido declarado que Mike seria o futuro rei. Zaya não ficava chateada por aquilo, e acreditava que nenhum de seus irmãos tivessem ficado também.
Michael certamente seria um rei incrível. Ele era justo e bondoso. Às vezes mais do que deveria. Zaya havia perdido a conta das vezes que o irmão se meteu em confusão por ajudar alguém.
— Zaza se meteu em confusão novamente?
Zaya o mostrou a língua, arrancando um baixo e divertido riso do irmão.
— Estamos planejando uma varredura pelo local.
Viktor falou e Michael acenou com a cabeça, deslizando as mãos para os bolsos.
— Certo. Precisam de algo?
— Diana já nos enviou a planta. Por que ligou?
Akilina perguntou com desconfiança. Mike deu de ombros levemente e Zaya podia jurar que a imagem levemente desgastada dele corou.
— Por nada. Apenas queria me certificar que estavam bem.
Sua mãe deu um minúsculo sorriso para o filho. Mike tinha esse dom, de fazer Akilina sorrir às vezes. Sua mãe raramente sorria, mas Mike conseguia fazê-la sorrir com facilidade. Já fizera ela gargalhar certa vez.
— Iremos para casa logo, não se preocupe. - Ela falou, um segundo antes do som de uma explosão alta soar pelo aparelho. Mike virou o rosto com rapidez. - O que aconteceu?!
Akilina perguntou de forma preocupada e Mike gaguejou levemente.
— Nada! É… - Outro som e ele fechou os olhos pesadamente, encarando a mãe. Zaya sorriu cruzando os braços, já sabendo o que havia acontecido. - Allura inventou de tentar fazer um bolo.
Ele murmurou baixo. Viktor coçou o nariz, escondendo a vontade de rir e Zaya pressionou os lábios.
— Por que deixaram Allura entrar na cozinha?
Akilina perguntou com certa irritação e Mike voltou o olhar para a mãe.
— Ela estava chateada! O que queria que eu fizesse?! - A mãe suspirou pesadamente e abriu a boca para falar algo, quando outro som soou e Mike fez uma careta. - Preciso ir, mãe. - Ele encarou os gêmeos. - Amo vocês e tomem cuidado.
A imagem de Mike desapareceu e Akilina encarou os outros dois filhos, antes de negar com a cabeça e apontar para komunic de Viktor.
— Vamos voltar a falar disso.
***
Zaya e Viktor terminavam de se arrumar. Ambos usavam um traje preto feito de um material diferente, um tecido grosso, como uma armadura de couro, porém mais leve e colado ao corpo. O traje ia do pescoço até os pés. Zaya podia sentir o peso das armas onde estavam escondidas, tão perfeitamente que, mesmo se a apalpassem para revistá-la, não conseguiriam sentir as armas. Pensariam que eram apenas parte da costura.
A gola no pescoço escondia a recente marca de tiav, que ambos os gêmeos possuíam. Uma pequena tatuagem de duas setas cruzadas que representava guerreiros ou assassinos completos.
Pessoas que conseguem essa marca são raras, precisam passar por algum evento que prove resistência e força. Mas eram mais raras ainda pessoas que conseguissem a marca com apenas quinze anos, como Zaya e Viktor conseguiram.
Viktor terminou de colocar as botas, que haviam sido projetadas para escalar, enquanto Zaya verificava a janela destrancada.
Seria uma queda de dois andares. Ela avaliou o pátio da frente. As pedras escorregadias com orvalho reluziam à luz da lua, e as sentinelas no grande portão de ferro pareciam concentradas na rua. Bom.
Ela fez um sinal com a cabeça para Viktor, antes de pular para o parapeito. Seus dedos encontraram apoio nas grandes pedras de marfim, e com um olho nos guardas no portão distante, Zaya desceu pela lateral do palácio.
Ninguém reparou nela, ninguém olhou em sua direção. O Palácio estava silencioso e sua queda foi suave, como um sussurro do vento. Viktor caiu ao seu lado em seguida. Os guardas sequer repararam quando eles saltaram pela cerca perto dos estábulos nos fundos.
Esgueirar-se pelo exterior do palácio foi tão simples quanto sair do quarto, em poucos minutos, Viktor e Zaya já estavam na parte externa do palácio. E ela nunca havia visto uma cidade tão… viva.
O que não era surpresa, considerando que Alluh era um dos países mais ricos que existiam. Ao monitorar o beco e as casas adjacentes, a jovem concentrou sua atenção em um entalhe tosco na parede de tijolo cor de terra. Um dragão repousando de asas fechadas, os enormes olhos estavam abertos e sem piscar pela eternidade. Zaya passou a mão sobre o entalhe, acompanhando as linhas gravadas na lateral da construção e observando os detalhes.
Os dragões de Aljanub. Estavam por toda parte naquela cidade, um tributo à deusa adorada, talvez mais que qualquer outra naquele continente. Nenhum deus governava Aljanub como Lig, a deusa protetora, que iluminava, aquecia e punia por meio de seu fogo.
Zaya encarou uma cadeia montanhosa, mais especificamente uma estrela vermelha em um pico tão distante que ela mal conseguia ver. As montanhas de Tunin Alnaar, lar dos dragões. Era um local tão remoto que era acessível apenas por aquelas criaturas e os tolos que tentassem ir até lá, não voltavam. A prova viva de que Lig reinava incontestável ali.
— Talvez o sultão estivesse com medo de algo…
Viktor murmurou. Zaya ficou em silêncio, observando ao redor. As casas, os cidadãos que perambulavam pelo local.
— Não faz sentido. Aljanub é um continente rico e governado pelo Sultão. Alluh é o país mais desenvolvido do continente… por que ele teria medo de meia dúzia de estrangeiros?
Viktor ficou em silêncio por algum tempo, enquanto caminhavam pelas sombras dos becos.
— Vai ver ele não queria que víssemos como Aljanub é rico… ou nos envolvessemos com o povo.
Rico e orgulhoso. Como um dos quatro continentes, Aljanub recebia o nome de um dos antigos imperadores, assim como Veldrien, Artilin e Ygnar. Os heróis e heroínas que destruíram e dizimaram os merbs. Monstros que escravizaram os humanos por milênios. Ou pelo menos, eram o que as lendas diziam. De qualquer forma, Aljanub era repleto de tesouros e o povo era extremamente orgulhosos.
Zaya olhou ao redor. Estavam em um centro comercial noturno do submundo, passando em meio a portas e tendas, barracas e negociantes.
Enquanto caminhavam, Zaya viu um homem que chamou sua atenção. Não pelo porte, ou pelo fato de dormir na calçada daquele beco escuro, mas pela cor avermelhada que manchava a parte superior esquerda de seu rosto. Um Cavum.
O peito de Zaya se apertou e ela segurou a mão de Viktor. A marca vermelha na parte superior de sua sobrancelha esquerda pareceu queimar.
O ritual só era indicado para depois dos dezessete anos e os sūdus poderiam realizar tal ritual somente até os vinte. Isso porque o ritual era extremamente difícil e doloroso, algumas pessoas poderiam até mesmo enlouquecer, caso não sejam compatíveis. É algo raro de se encontrar e quando o ritual termina, uma marca vermelha surge na parte superior da sobrancelha esquerda da pessoa. Uma marca única, que somente sua outra metade possuía.
A de Zaya e Viktor eram como pequenos ramos que subiam em direção ao centro da testa e se enrolavam na ponta. Eles dois haviam feito o ritual no início do verão, logo após fazerem dezessete anos, devido a experiência de quase morte que sofreram em uma missão.
Mas o rapaz que dormia ao chão, o rapaz que possuía a mancha vermelha… quando um sūdus morria e deixava sua alma gêmea, a marca se desintegrava deixando uma mancha no rosto.
Essas pessoas eram chamadas de cavum, que significa oco. São pessoas que tem uma parte de si faltando eternamente. Algumas pessoas não aguentam a perda e enlouquecem completamente.
Viktor percebeu para onde Zaya olhava, e deu um beijo na mão da irmã. Ela engoliu em seco, voltando a observar ao redor e fazendo uma prece para Deika, a deusa do inverno, a personificação da força, coragem e resistência e eterna rival de Lig. Mas Zaya pediu mesmo assim, para que Deika ajudasse o rapaz a ter forças para enfrentar tamanha dor. A dor do luto é uma das piores dores para se enfrentar, é preciso ter muita força para conseguir seguir com a vida.
Os gêmeos viraram uma esquina e um minúsculo sorriso de canto surgiu nos lábios de Zaya quando ela viu uma tenda específica.
— Aposto que ali sabem o que queremos descobrir...
Ela comentou baixo. Viktor a encarou pelo canto dos olhos e Zaya sabia o que o irmão iria dizer, antes mesmo das palavras saírem de sua boca.
— Você só quer ir para lá porque está com vontade de jogar.
A jovem sorriu para o Viktor, antes de pegar uma túnica azul de um varal, vestir, e entrar na grande tenda.
— Eu jamais faria algo assim, irmão.
Haviam mesas de madeira espalhadas sob tapeçarias coloridas e pessoas circulando por todos os lados. Uma tenda de jogos ilegais. Zaya sorriu seguindo até o bar com confiança, sem se importar com os olhares desconfiados em sua direção.
— O que tem para beber aqui?
Ela perguntou na língua comum. O local fedia a suor, cerveja velha e corpos sujos. O homem que limpava o balcão a encarou com desprezo, antes de falar rudemente:
— Estrangeiros pagam mais caro.
Zaya sorriu, retirando uma moeda de ouro de seu bolso e colocando sob o balcão, o que acabou atraindo olhares em sua direção. Viktor havia sumido de vista e ela sabia que o irmão estava procurando pistas e verificando o estabelecimento.
O homem verificou a moeda, antes de colocar uma caneca grande de cerveja em sua frente. A jovem tomou um longo gole da bebida, que quase cuspiu. Nojenta. Tão barata quanto era possível, tal qual o resto daquele lugar. Mas ela se forçou a engolir o líquido amargo e aguado. Não estava ali para aquilo, afinal.
Depois de dois goles distraídos, ela se levantou, carregando a enorme caneca de cerveja consigo, enquanto caminhava até uma mesa com um grupo de homens apostando cartas.
— Boa noite, cavalheiros. - Ela falou em aljïnes, a língua local do continente, com um sorriso de canto, observando a mesa. - Quanto é a entrada para jogar?
Os homens se encararam por um tempo, antes de encará-la de novo.
— Cinco moedas de ouro.
Zaya não se importou com o preço, sabia que no fim da noite teria o dobro, talvez o triplo. Então, deu as cinco moedas e se sentou em uma cadeira livre.
Ela ouviu as conversas, sua mãe havia se certificado que todos os cinco aprendessem as línguas dos quatro continentes, apesar de o aljïnes de Zaya estar um tanto quanto arrastado.
— Céus… eu não sei jogar muito bem. - Falou sorrindo de forma inocente e bebendo mais um gole de sua cerveja, enquanto as cartas eram distribuídas. - A carta que tem o nove e um coração vermelho é importante?
Perguntou e ouviu algumas risadinhas desdenhosas.
— Você não pode falar suas cartas, gracinha.
Falou um homem que tinha dentes prateados e uma enorme cicatriz na lateral do rosto, arrancando mais gargalhadas. Zaya deu um risinho, encolhendo os ombros e os observando jogar.
A partida levou alguns minutos, antes dela perder miseravelmente e sorrir animada.
— Acho que entendi! Quero jogar mais uma partida!
Falou entregando as cinco moedas. Os homens se encararam com risos vitoriosos, antes de o meseiro entregar as cartas.
Ela observou as cartas por alguns segundos, não tinha um bom conjunto em mãos, mas havia os observado por tempo o suficiente para saber que ninguém ali contava cartas. Ela sorriu, enquanto fazia os cálculos. Tudo o que precisava para ganhar, era um full house.
Ela esperou alguns segundos, e em um movimento rápido, trocou suas cartas fingindo um espirro. O movimento foi tão rápido, que para os olhos alheios, não passou de um espirro, mas em suas mãos agora, estavam um às de copas, um às de ouro, um às de espadas, um sete de paus e um sete de ouro. Um perfeito full house.
Zaya sorriu, aumentando a aposta e quando o jogo terminou, ela ria enquanto um homem xingava alto por ter perdido grande parte do dinheiro. Viktor estava ao seu lado, observando a partida.
O meseiro estreitou os olhos, pegando as cinco moedas novamente e distribuindo as cartas. Zaya mal ergueu seu conjunto, antes de ter o pulso segurado com força.
— Roube de quem tem dinheiro de sobra, trapaceirazinha.
O rapaz falou na língua comum, com irritação. O sotaque era leve, alguns diriam até mesmo que era charmoso. Ele deu uma batida leve nas cartas que a jovem segurava, as derrubando.
Foi quando seus olhos encontraram os dele. E talvez, apenas talvez, o mundo tivesse parado durante alguns segundos, talvez até mesmo os deuses tivessem parado para os observar, quando os olhos verdes do rapaz chegaram aos azuis dos dela com tanta intensidade.