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3 de fevereiro 17h07 43º registro
Estou sentado em uma rede, no quintal de casa. Neste momento, os últimos raios do frio sol de inverno caem sobre este pequeno retângulo de grama, aquecendo um pouco meus ossos, enquanto Lúculo cochila calmamente em meu colo, sonhando com o que seja lá que os gatos sonhem. E o momento mais tranquilo que desfrutei nas últimas semanas, para ser sincero. Não fosse pelos uivos ocasionais dessas coisas aí fora e um ou outro golpe que dão no portão, eu poderia pensar que é uma agradável tarde de domingo. Quase me dá vontade de preparar uma xícara de chocolate e assistir a um filme. Infelizmente, não é uma tarde de domingo e todos os meus vizinhos estão mortos lá fora e querendo acabar comigo. Além disso, faz duas semanas que não tenho leite em casa. Que caralho.
Dormi a ressaca até quase meio-dia. Quando me levantei, preparei um ótimo café da manhã composto por duas xícaras de café bem forte e um pouco de feijão em lata misturado com maionese (a variedade do meu menu está diminuindo drasticamente há três ou quatro dias). Hoje, tive de enfrentar vários problemas. Em primeiro lugar, o cadáver do soldado na porta. Está se decompondo ali a semana inteira e já começa a cheirar mal de fato. Percebi que se não fizesse alguma coisa poderia adoecer por causa dele.
Após trancar Lúculo em meu quarto (só o que me faltava era que ele pulasse em cima do cadáver para inspecioná-lo e o lambesse), arrastei o corpo sobre o plástico em que estava enrolado até o quintal, controlando a ânsia de vômito. O aroma que ele deixou ao passar por meu vestíbulo, corredor e sala, até a varanda dos fundos, é inenarrável. Uma vez ali, pensei em jogar nele a gasolina do cortador de grama e pôr fogo, mas fiquei paralisado com uma ideia horrível. Não sei se essas coisas podem sentir cheiro ou, pior ainda, se enxergam. Se virem uma coluna de fumaça se elevando no meio do claro céu azul do meio-dia, virão em manadas atrás de mim. Desanimado, percebi que minha única alternativa era enterrá-lo no jardim.
Resignadamente, coloquei a mão na massa e cavei uma fossa não muito profunda no canto direito do jardim, ao lado da churrasqueira. O trabalho foi fácil, pois o solo é macio e terroso e só precisei de uma pequena enxada (por outro lado, a única ferramenta que tenho). Quando finalmente o empurrei para dentro do fosso e o cobri, sentei-me, sujo e suado, ao lado do túmulo. Enquanto acendia um cigarro, pensei na ironia da situação. Tenho um cadáver enterrado em meu quintal e, possivelmente, em sua humilde cova, ele teve o enterro mais luxuoso já celebrado nesta cidade nos últimos dias (se não o único).
Depois de jogar a bituca no chão, voltei para dentro. Lavei-me um pouco, tiritando por conta da água fria que saía da torneira, e a seguir preparei alguma coisa para comer, para o gato e para mim. Hoje, conservas. Estou de sardinha em lata até as orelhas, mas Lúculo parece gostar dessa dieta. Esse gato...
Depois me preparei para a prova mais difícil do dia. Vesti a roupa de neoprene e chequei meu arpão, com os três virotes que me restam (o quarto ainda estava cravado na cabeça de meu desafortunado vizinho, do outro lado do muro). O cabo de guardachuva ficou abandonado no asfalto em minha expedição prévia para acabar com o soldado, de modo que minha última linha de defesa era agora a pistola dele. A Glock parece enorme e perigosa em minha mão. Ainda não tenho certeza de saber usá-la, mas pelo menos já identifiquei cada parte (gatilho, trava, pente etc.) dela. Está carregada, mas, sempre que puder, evitarei usá-la. Os tiros prévios que ouvi esses dias vinham de muito longe, isso é certeza, e ainda assim os ouvi perfeitamente. Sei o que o barulho provoca nessas coisas. Se eu disparasse a arma, com certeza poderia eliminar alguns, mas o barulho faria que em questão de minutos dúzias deles aparecessem. De modo que é melhor guardá-la para outra ocasião.
Após rezar tudo o que sei, subi pela escada de mão e desci no quintal de Miguel. Tudo continua tal como deixei ontem. O corpo, enrolado em plástico, permanecia no canto, como um pacote cinza e inútil. Com receio, aproximei-me dele e dei dois fortes puxões, arrancando o virote de sua cabeça. Dessa vez, não tive tanta ânsia de vômito. Talvez esteja ficando insensível. Que interessante. Se eu sobreviver tempo suficiente, posso acabar me transformando em um psicopata. Que perspectiva mais curiosa...
Deixei o virote em cima da grama, para pegá-lo mais tarde, e fui em direção à casa, com cautela. Continuava escura e silenciosa. Segurei a maçaneta da porta e tentei girá-la. Fechada. Devia imaginar. Não me restava mais remédio que entrar pela janela pela qual Miguel saiu anteontem. Com cuidado para não me cortar com os vidros sujos de sangue contaminado, deslizei para dentro da casa. O espetáculo era terrível. O maldito cão, ou o que restava dele, estava jogado em um canto, completamente despedaçado. Era um espetáculo atroz, como se houvesse sido atacado por uma matilha de lobos. Imaginei o pobre bicho, correndo preocupado para junto do dono agonizante e descobrindo que ele havia se transformado em um predador desapiedado que o estraçalharia em questão de segundos. Que merda!
Verifiquei rapidamente a casa. Dessa vez, havia me enganado. A casa estava vazia e segura. Nenhuma dessas bestas havia conseguido entrar, e a porta era blindada, de modo que podiam esmurrada durante séculos que não se abalaria. Fui para o andar de cima e dei uma breve olhada pela janela. Pude ver toda essa rua e dois carros estacionados em frente. Um é uma van com o emblema da companhia de distribuição de Miguel. O outro, uma Mercedes, também de Miguel, com a porta do motorista aberta. Há restos de sangue no banco e um corpo jogado no chão ao lado do carro.
Outro está não muito mais longe, no meio do caminho entre a porta e o veículo. Os dois que Miguel matou, imagino. Aqueles que lhe custaram a vida.
Depois de verificar a casa toda, respirei aliviado. O tamanho de meu território se duplicou: essa metade ainda precisa ser explorada, e, o mais importante, vi algumas possibilidades interessantes nessa rua. Talvez seja possível sair por ali.
Após pegar uma caixa de analgésicos bem poderosos que havia em cima de uma mesa, voltei para minha casa. Logo escureceria, e eu não havia levado lanterna. Não queria andar às escuras por uma casa estranha, com essas coisas aí fora. Vou voltar amanhã para saqueá-la. Assim, terei tempo de preparar meu plano.
6 de fevereiro 17h57 44º registro
Faz dois dias que não me sento para escrever neste diário. Na verdade, acho que estou começando a ficar emocionalmente exausto. A pressão lenta e distante, mas continuada, dessas coisas aí de fora com certeza não conseguirá derrubar as portas, mas está derrubando meus nervos. Estou planejando minha saída daqui. Ficar me garante segurança por um tempo, mas também me garante ficar sem víveres pouco a pouco e, principalmente, enlouquecer.
Acho que esse é o principal motivo para sair daqui. O homem é um ser social por natureza, que precisa se inter-relacionar, e, descontando meu malogrado vizinho, faz semanas que não falo com um ser humano nem vejo nenhum... vivo, evidentemente. Preciso me comunicar, preciso FALAR com alguém. Dedicar-me a este diário me serve de terapia para dar vazão à pressão acumulada ao longo do dia, mas não é suficiente. Tenho o inveterado costume de falar com Lúculo com regularidade, como se fosse uma pessoa, mas ultimamente as "conversas" que mantenho com ele são muito frequentes. E sinal de que preciso sair daqui.
O uso que estou dando às placas solares e aos acumuladores de eletricidade do porão não é o mais adequado e não tem nada a ver com o objetivo para o qual foram projetados. Sua finalidade original era me proporcionar corrente elétrica em caso de corte de abastecimento ou queda de tensão de algumas horas; não são projetados para fornecer um fluxo constante ao longo do dia inteiro. De modo que imagino que aconteceu o que tinha de acontecer. Sobrecarreguei o sistema. No sábado, na hora do almoço, liguei o micro-ondas ao mesmo tempo que um dos queimadores vitrocerâmicos do fogão e a luz da cozinha estavam ligados. Foi uma distração imperdoável, eu sei, mas não reparei a tempo.
Damos por certo que a eletricidade está SEMPRE aí e agimos em consequência disso. Eu simplesmente esqueci que estava utilizando as poucas reservas do porão. O nível das baterias estava muito baixo, pois eu as usara a noite toda, fervendo água da torneira e colocando-a em garrafões vazios. De modo que, ao ligar o micro-ondas, provoquei uma queda de tensão e queimei o maldito... e os motores dos freezers do porão. Agora, todas as minhas reservas de congelados foram diretamente para o caralho. Enterrei-as no quintal do vizinho, em uma fossa ao lado do cadáver, não sem antes ter uma indigestão comendo tudo o que pude salvar.
A situação assim é ainda mais preocupante. A despensa de meu vizinho se mostrou regular. Algumas latas de conservas, um pouco de macarrão e dois quilos de batatas mofadas são a melhor parte do butim. Além disso, dúzias e dúzias de envelopes de sopa em pó, cremes liofilizados e risotos para preparar em um minuto. Por um lado, é fantástico, porque posso levá-los em uma mochila sem muito peso, mas, por outro, seu valor nutritivo é mais que discutível, e eu preciso estar com minhas forças a pleno rendimento. Isso sem contar com o "delicioso" sabor...
Não encontrei muito mais coisas na casa. Não há armas além de uma espingarda de caça. É uma Zabala de dois canos superpostos, mas toda a munição que encontrei é de cartuchos de chumbo. Um tiro dessa munição não pode atravessar um crânio humano, a não ser à queima-roupa. Para isso é preciso estar muito perto do alvo, e esse "muito perto" é demais no que diz respeito a essas coisas. Miguel poderia dar fé disso, se não estivesse morto e enterrado no jardim. Além disso, é terrivelmente barulhenta. Ainda assim, levei-a comigo, com toda a munição, uns quinze cartuchos. Nunca se sabe. Fiquei maluco procurando as chaves do barco. Ainda não sei muito bem o que farei quando sair daqui (por ora, meu plano só abrange sair da casa; o que vier depois, veremos), mas sei que não devo descartar a opção do barco, por mais perigosa e remota que me pareça. Após revirar a casa toda procurando as malditas chaves, finalmente me toquei de onde podiam estar. No lugar mais lógico.
Com um suspiro, voltei ao jardim e comecei a desenterrar de novo o corpo de Miguel, que eu havia sepultado apenas vinte e quatro horas antes, pouco depois de enterrar o soldado. Nesse ritmo, vou me tornar um coveiro profissional.
Enterrar uma pessoa é duro, mas desenterrá-la é mais duro ainda. Você vê a pessoa ir aparecendo aos poucos, as mãos, o corpo... e sente o cheiro impressionante, e percebe que está mortinho da silva. Controlando a ânsia de vômito, revistei os bolsos do macacão. Efetivamente, lá estavam as chaves a carteira, e um saquinho com uns três gramas de um pó branco. Pobre-diabo. Era um babaca, mas não merecia acabar assim. Ninguém merece acabar assim.
Cobri-o de novo e entrei na casa. O melhor de tudo é que ele não usava gás encanado, e sim botijões de gás para aquecer a água. E ainda tinha um deles cheio! Depois de quase vinte dias sem gás, um banho me parecia um sonho fantástico. Enchi a banheira até a borda, peguei uma boa garrafa de vinho em minha casa e passei toda a tarde de domingo de molho, descansando em meio a uma enorme nuvem de vapor. Realizei-me. Além de tudo, tenho a sensação de que vai se passar muito tempo antes que eu possa desfrutar algo do tipo novamente. Acho que as próximas semanas vão ser muito intensas... se eu sobreviver o suficiente.
Tenho em mente um plano mais ou menos formado para sair daqui sem que me mastiguem vivo na porta. Ainda tem muitas pontas soltas, mas acho que são possíveis de amarrar. Tive quase três dias para relaxar, comer bem e acumular forças. Agora, preciso agir.
7 de fevereiro 11hl2 45º registro
É muito complicado decidir o que levar quando você sabe que possivelmente não vai voltar para casa em muito, muito tempo. E é ainda mais complicado quando se pensa que a vida pode depender do que levar. Então, coisas supérfluas, fora. Mas não é tão fácil. Para começar, fui acumulando no chão da sala todas aquelas coisas que considero imprescindíveis: meu kit básico de sobrevivência, por assim dizer. Tenho uma mochila Jack Wolfskin de grande capacidade, uns sessenta litros, que costumava usar antes de tudo isso para levar minhas coisas quando ia mergulhar, e que ainda tem um pouco de cheiro de mar. Não pude evitar uma pequena fisgada de nostalgia ao pegá-la, recordando todas as boas horas que passei com ela. Enfim...
Além da mochila, tenho um saco de dormir e um casaco para o mau tempo (herança do soldado morto). Também levo o notebook, o rádio UHF, algumas mudas de roupa, calçado reserva e toda a comida liofilizada que encontrei na casa de Miguel. Também levo o estojo de primeiros socorros com morfina, todos os antibióticos e analgésicos que pude encontrar e um garrafão com cinco litros de água doce. Uma pequena nécessaire, uma sacola com algumas fotos que não consegui abandonar e uma caderneta e algumas canetas, além de minha câmera fotográfica e todas as pilhas que encontrei na casa, o que fez a mochila ficar abarrotada. Tive de colocar uma sacola menor nas travas do peito da mochila. Nessa sacola coloquei duas lanternas (uma delas uma SeaScub de xenônio, que eu usava em mergulhos noturnos, e que devora baterias, mas é poderosa) e toda a munição da Glock e da Zabala. No conjunto, um monte de quilos. Uma barbaridade.
Tenho consciência de que todo esse peso vai fazer que eu me desloque à velocidade de uma lesma. Isso porque a chave de minha sobrevivência pode estar na agilidade, mas não consigo decidir de qual de todas essas coisas posso prescindir. Além de tudo, como se não bastasse, preciso levar a espingarda, a pistola e o arpão cruzados no peito e uma gaiola com um gato persa assustado dentro, o que indica que vou dispor de só uma mão livre. Vai ser complicado.
Evidentemente, só tenho de carregar tudo isso até chegar ao veículo que escolhi para minha fuga, mas preciso me assegurar de que o trajeto até ele esteja livre. Com todo esse peso e com o gato em uma mão, eu não poderia enfrentar um desses monstros, e muito menos um bando deles. É o que penso.
A rua de Miguel está saturada dessas coisas. Deve haver pelo menos duas ou três dúzias vagabundeando por ela, atraídos pelos tiros do outro dia. O espetáculo que se vê da janela dele é quase grotesco. Trinta cadáveres andantes, com diversos ferimentos, alguns deles realmente horríveis, e as roupas encharcadas em sangue já seco e endurecido, balançam e se deslocam aleatoriamente por toda a rua, enquanto um grupo deles esmurra, incansável, a porta da casa. Não me ocorre nenhuma maneira de desobstruir a rua para chegar até os carros de Miguel, estacionados em frente à casa. São muitos e estão muito dispersos para que a "estratégia do ursinho" funcione de novo. Não, definitivamente, não é por aí.
Em minha rua, o espetáculo é um pouco diferente. De todas as criaturas que pululavam por ela, só restam quatro, pelo menos são os que eu posso ver de minha janela. Imagino que a maioria foi para a rua ao lado quando ouviu os tiros de Miguel outro dia. Que irônico! Talvez sua morte não tenha sido tão absurda, afinal de contas. Ele está me dando a possibilidade de sobreviver. Os quatro dessa rua estão concentrados em meu portão, por onde forçosamente terei de sair, de modo que preciso inventar um jeito de afastá-los dali. Acho que sei como fazer isso, mas só terei uma oportunidade. Se falhar, estarei realmente fodido.
Com tudo empacotado, apoiei a bagagem no saguão de entrada, bem ao lado do portão por onde terei de sair em poucos minutos. Lúculo está extremamente nervoso e me custou um bom bocado de persuasão, carícias atrás das orelhas e muitos sussurros para convencê-lo a entrar em sua gaiolinha. Ele nunca gostou dela (de fato, no carro ele sempre vai sentado no SEU banco, o do passageiro), mas não tenho alternativa. Não posso me arriscar a levar o gato no colo com essas coisas tentando nos pegar. Lamento por Lúculo, mas ele terá de ir na gaiola. Se esses bichos me pegarem, isso significará morte certa para meu pequeno amigo, que não terá possibilidade de fugir, mas acho que é um risco que devemos correr.
Vesti a roupa de neoprene e verifiquei minhas três armas: arpão, Glock e espingarda. Dei uma última volta pela casa, acariciando com o olhar todos os cantos que me são tão familiares. Não sei se um dia voltarei a ver isso tudo. Toda a minha vida está aqui, e agora tenho de sair com rumo desconhecido e sem ter a certeza de estar vivo daqui a meia hora. É de enlouquecer. Minha sala, minha cozinha, meu escritório, que nunca cheguei a pintar da cor que realmente queria, esse sofá com o estofado totalmente arranhado por meu pequeno companheiro. Subi ao sótão com lágrimas nos olhos e peguei uma velha blusa dela. Todas as coisas dela estão aqui desde que morreu, e agora vou abandoná-las para sempre...
Enxuguei as lágrimas e fui para o quintal, para começar a executar meu plano. Da próxima vez que escrever neste diário será para contar como foi. Se não escrever de novo... Bem, evidentemente, algo terá saído errado e um novo cadáver vestindo roupa de mergulho andará pela cidade. Mas não sem antes ter vendido sua pele bem caro. Estou aterrorizado. Estou nervoso. Mas também estou decidido. Vamos lá.
7 de fevereiro 21h01 46º registro
Estou vivo.
Esgotado, horrorizado e acho que em estado de choque, mas vivo. Lúculo também está bem, acho que até melhor que eu. Estamos em um refúgio bastante seguro, por ora, mas só poderemos ficar aqui umas horas até que as coisas esquentem muito novamente. Perdi parte de meu equipamento ao longo desse dia interminável, mas ainda estou em condições de batalhar. Santo Cristo, há MILHARES dessas coisas... Eu deveria registrar o dia de hoje, mas estou absolutamente esgotado e sem vontade de escrever. Amanhã, descansado e com mais calma, farei isso.
Hoje, pela primeira vez em minha vida, disparei uma arma de fogo. Acho que não será a última.
8 de fevereiro 14h39 47º registro
O sol de inverno é muito suave na Galícia, fraco, diriam muitos. Sua carícia não chega a aquecer nestas manhãs geladas, mas pelo menos dá para sentir os ossos amornando quando se mergulha na água quente. Menos que isso é nada. Estamos deitados, Lúculo e eu, no telhado desse pequeno refúgio provisório onde nos abrigamos a noite toda, esperando que haja luz suficiente para seguir caminho. Enquanto tomamos o café composto por uma das latas feijão que encontrei na mochila do soldado, imagens do terrível dia de ontem não param de assaltar minha mente.
Foi incrível. E terrível. Mas agora eu me sinto mais vivo que em todos os dias das últimas três semanas. Quando cruzei o muro que separava o quintal de minha casa da do vizinho, não tinha certeza de como o plano sairia. Quanto mais avançava, menos seguro eu me sentia do resultado, mas não podia mais dar marcha a ré. Atravessei rapidamente o quintal de Miguel e entrei na casa, ainda mergulhada em penumbra. Podia ouvir perfeitamente as batidas raivosas que essas coisas davam na porta. Estavam muito excitados. Acho que podiam me sentir do outro lado. Dois deles, inclusive, batiam nas janelas reforçadas do andar inferior, depois de atravessarem o portão. O barulho era impressionante. Com cuidado, subi as escadas até o andar superior e abri a janela do quarto, sem medo de que essas coisas me vissem. Isso fazia parte do plano. Lá estava, tranquilamente estacionada, uma van da empresa médica de Miguel. Em mais de uma ocasião, ele havia se queixado de que algum drogado tentara forçar as portas em busca de sedativos ou anfetami-nas, apesar de que ele não distribuía esse tipo de medicamento. E eu também sabia que por isso ele havia instalado um poderoso sistema de alarme (que, inclusive, havia me acordado mais de uma vez à noite ao disparar acidentalmente). Vamos ver o que essas coisas vão achar de umas buzinadas.
Peguei a Zabala com força e introduzi dois cartuchos nos canos superpostos. A seguir, apontei com calma para a van, enquanto a multidão de criaturas embaixo da janela continuava esmurrando a porta, ignorando ainda minha presença. Atirei. O estampido seco da espingarda soou como um tiro de canhão no silêncio da manhã, misturando-se com o som de vidros quebrados da janela direita da van, que explodiu em um milhão de cacos ao ser atravessada pelo chumbo.
O alarme do veículo disparou imediatamente. Uma série de fortes toques de buzina e brilhos intermitentes de luz acompanhava uma sirene estridente, constante. O efeito na multidão de baixo foi eletrizante. A maioria foi para a van e, cercando-a, começou a chacoalhá-la, enquanto uns poucos, ao ouvir o tiro, me localizavam na janela e se amontoavam agora embaixo da porta, esticando os braços para mim, enquanto se podiam ver faíscas de ódio em seus olhos embaçados.
Satisfeito, corri para o quintal. Não tinha muito tempo. Com o tiro e o alarme, todas as criaturas que estivessem em um raio de dois quilômetros estariam se aproximando em poucos minutos. Aquilo ia se transformar em uma área muito quente. Subi a corda do quintal como um macaco e desci as escadas pelo outro lado. Quando apoiei no tornozelo machucado, um choque de dor subiu por minha perna até os olhos. Por um instante, vi tudo branco e quase desmaiei. Precisava me apressar. Entrei em minha casa e subi até o quarto superior para dar uma breve olhada.
Com um suspiro de alívio, verifiquei que o plano estava dando resultado. Três das criaturas da minha rua se dirigiam, balançando e cambaleando, para a boca da rua principal, de onde poderiam chegar à paralela, onde a van não parava de apitar, atraindo todos esses bichos como a luz a uma mariposa. O que restou decidira, de alguma maneira, que conseguiria chegar antes atravessando o terreno do fundo da rua. Imagino que acabaria caindo, mas, para mim, isso não tinha a menor importância. Ele estava longe o suficiente, de modo que eu podia tentar chegar ao carro com segurança.
Sem fôlego, alcancei o saguão de entrada e coloquei a mochila nas costas. Cruzei a espingarda e o arpão no peito, juntamente com a bolsa pequena, e, a seguir, com dois golpes, tirei os pontaletes de madeira que reforçavam o portão. Com cautela, botei a cabeça para fora. Campo livre. Pela segunda vez em um mês, mais ou menos, eu me aventurava a sair, só que dessa vez era para fazer uma viagem à qual não sabia se conseguiria sobreviver.
Segurando com uma mão a gaiola de Lúculo e com a outra a pistola, atravessei a calçada a passo lento, dirigindo-me ao meu carro. As chaves estavam penduradas no punho direito. Fazendo um estranho gesto, consegui pegá-las com dois dedos e apertar o botão de abertura. Primeiro erro. Com um audível "pi-pi" e com o pisca-pisca acionado, meu carro se abriu, mas chamou a atenção das coisas dos dois lados. Haviam se voltado e agora avançavam para mim. Merda! O tempo estava se esgotando e eu tinha de ser rápido. Abri a porta do motorista e joguei a mochila no banco de trás. Em um ato reflexo, dei a volta no carro para abrir a porta do passageiro e colocar Lúculo em seu banco, como de costume.
Segundo erro. Ao dar a volta no carro vi essa besta. Era um deles, um homem de uns vinte e tantos anos, de cabelos compridos e cavanhaque. Usava uma camiseta preta, horrivelmente suja e rasgada, e não tinha as duas pernas abaixo dos joelhos. Nem imagino como pôde tê-las perdido. Estava jogado no chão, bem atrás do carro. Não sei quando havia chegado até ali se arrastando nem há quanto tempo estava esperando, mas dei de cara com ele. Assustado, dei um passo para trás, mas não pude evitar que pegasse um dos meus tornozelos (o bom, graças a Deus) e cravasse os dentes nele.
Foi tudo muito rápido. Como eu estava movimentando a perna para trás, ele não conseguiu morder o tornozelo; além disso, o neoprene é uma substância grossa e flexível demais para que possa ser atravessado por uma mordida apressada. Ele deixou a marca dos dentes perfeitamente visível no forro que o cobre. Com um nojo supremo misturado com terror em estado puro, joguei a gaiola de Lúculo no chão e peguei a pistola com as duas mãos. Apontando diretamente para a cabeça dele, a menos de um metro, atirei.
Não sou um grande atirador (de fato, era a primeira vez que abria fogo com uma arma curta), mas não podia errar a essa distância. Com o nervosismo, atirei várias vezes na cabeça dele. Que espetáculo! Ainda tremo de nojo ao recordar. Não é como nos filmes. Não se abre um pequeno furinho; ao contrário, o impacto da bala abre um buraco ENORME em uma cabeça e sangue, restos de cérebro e pedaços de osso voam para todos os lados.
Tremendo por conta da impressão, apoiei-me no carro, tentando recuperar o ritmo da respiração, mas o descanso devia ser forçosamente breve. As outras coisas estavam a menos de trinta metros de distância e se aproximavam muito, muito rápido. Peguei a gaiola de Lúculo do chão e joguei-a dentro do carro sem maiores cuidados. O pobrezinho miava desconsoladamente, assustado com a situação. Antes de sentar no banco do motorista, apontei para as coisas que vinham da entrada da rua e atirei com a pistola. Terceiro erro. Não tenho técnica para atirar, e menos a mais de trinta metros de distância. A única coisa que consegui foi esvaziar o pente e fazer ainda mais barulho. Bem, isso era o de menos. Com a confusão que já havia armado, devia estar sendo ouvido até em Vigo.
Joguei a pistola vazia no chão do carro e entrei a toda velocidade. Com um giro da chave de contato, o motor do Astra deu duas tossidas que me gelaram o sangue. Estava parado havia muitos dias e por um momento achei que ia me deixar na mão, realmente fodido. Felizmente, a maquinaria Opel é dura. Tosca, mas dura. Engatei a primeira e comecei a avançar para a boca da rua. Com dois giros de bêbado, evitei as três coisas que cruzavam meu caminho (conduzi alguns processos por atropelamento e sei o que um corpo humano pode fazer ao pára-brisa e ao chassi de um carro com o impacto) e cheguei à rua principal. A visão era de arrepiar. Uma verdadeira maré não humana; centenas dessas coisas vinham do centro da cidade avançando pela calçada, atraídas pelo barulho.
Pelo outro lado também vinham dúzias dessas coisas, desejosas de presas. Só me restava uma saída: uma pequena estrada vicinal que se abria a uns vinte metros. Com uma acelerada, entrei por ela e...
Estou ouvindo um barulho aqui embaixo. Vou ver o que é. Depois continuo escrevendo.