06
30 de janeiro 18h38
As últimas vinte e quatro horas foram um desastre. Quando você pensa que nada mais pode acontecer, a realidade vai e ataca pelas costas com uma nova surpresa.
Como se eu já não tivesse problemas suficientes (e enormes!) com esse grupo de coisas esmurrando incansáveis minha porta há dois dias, agora se abrem novas frentes. Em primeiro lugar, e como consequência da falta de luz generalizada, a internet deixou de existir. Acabou. Meu blog está morto, como toda a rede. A tela branca do Explorer é a única coisa que vejo quando tento acessar a web. É lógico, imagino. Os servidores caíram e as empresas que possibilitam o acesso à rede há dias deixaram de prestar serviço. O fato de a minha ter aguentado até hoje parece um milagre. E incrível ver até que ponto dependemos da eletricidade para tudo. Voltamos ao século XIX com todas as suas consequências, e não sei se estou preparado para isso.
Vou continuar fazendo anotações neste diário. Preciso escrever o que vejo e o que sinto. Preciso expor meus pensamentos sobre uma superfície em branco, se não quiser enlouquecer em dois meses. Este diário é meu interlocutor, o único em quem confio plenamente neste momento. Se tudo for para o vinagre de verdade, pelo menos ficará o registro de como vivi nesses dias terríveis. Que merda de consolo, meu chapa.
Quando juntei coragem suficiente, saí novamente ao pequeno pátio da entrada. Abri a porta com todo o cuidado de que fui capaz e pus o nariz para fora. O cadáver do soldado continuava jogado onde o deixara, junto à parte interna do portão. Deste lado, o barulho produzido por essas coisas é ensurdecedor. Apoiei a mão na chapa de ferro e pude sentir a vibração gerada pelos golpes. Acho que, de alguma maneira, sabem que estou deste lado, e a impossibilidade de me pegar deve ser extremamente frustrante para eles.
Sentei-me em um dos degraus de entrada e acendi um cigarro enquanto contemplava o cadáver. Era a primeira vez que podia observar uma dessas coisas com atenção e de perto. Está começando a cheirar realmente mal. O processo de putrefação e o rigor mortis que todas as criaturas aí fora deveriam sofrer parecem estar em suspenso, mas, depois que morrem "de verdade", parecem avançar em ritmo normal. Um líquido pegajoso havia fluído do buraco na cabeça do soldado, por onde entrou o virote, e agora é um coágulo solidificado no piso de cerâmica. Acho que essa mancha nunca mais vai sair, mas isso não importa agora. A cor de sua pele é amarelada, cerúlea, e suas veias se desenham na pele como uma renda delicada. Somando tudo isso às terríveis feridas de seu rosto, o conjunto apresenta um aspecto impressionante.
Decidido, coloquei luvas de procedimento que encontrei no armário de medicamentos e peguei o coldre. Dentro havia uma pistola preta, engordurada e pesada. Na lateral está escrito Glock e um número de série de oito dígitos. Acho que está carregada, mas, infelizmente, é a primeira vez na vida que tenho uma coisa dessas nas mãos. Preciso estudada com mais cuidado, mas já me sinto muito melhor. Estou armado de verdade. Sei que é mais psicológico que outra coisa, mas a sensação de segurança é maravilhosa. Nos bolsos do cinto encontrei mais dois pentes que parecem corresponder à munição da pistola. Têm quinze balas cada um, de modo que, supondo que a pistola esteja carregada, tenho quarenta e cinco balas. Outra coisa é que eu seja capaz de atirar em algo sem atravessar meu próprio pé. Veremos.
Além da munição da pistola encontrei vários pentes do que parece munição de rifle de assalto. Dois deles estão vazios e ainda têm cheiro de pólvora. O pobre-diabo que jaz a meus pés teve tempo de esvaziar pelo menos dois pentes inteiros de sua arma regulamentar, da qual, a propósito, não há nem sinal. Imagino que, quando essas coisas o pegaram, simplesmente a tenha soltado. Quem sabe onde estará agora. A mochila resultou um tesouro. Dentro dela encontrei um saco de dormir, um casaco militar maravilhoso, com a camuflagem estampada do Exército de Terra espanhol, uma bússola, um mapa com diversas situações assinaladas (imagino que eram posições da linha defensiva que tentou controlar essas coisas durante a evacuação, agora abandonadas), cigarro, um estojo de primeiros socorros com três ampolas de morfina e, o melhor de tudo, várias rações de emergência do exército. São umas latas maravilhosas: têm um depósito com uma substância reativa na parte de baixo que, quando se acrescenta água, gera um intenso calor, permitindo que se coma comida quente sem precisar acender o fogo ou ter um fogão por perto. Imagino que virão a calhar quando eu tiver de sair daqui. Porque é cada vez mais evidente que, cedo ou tarde, terei de sair. Ficar aqui sozinho fará que essas coisas acabem entrando ou que eu morra de fome. O único problema é como sair. E para onde ir, evidentemente.
Revirando um dos bolsos inferiores encontrei uma carteira, e isso fodeu meu dia. É do rapaz. Chamava-se Vicente, tinha apenas 28 anos e era de um povoado a apenas trinta quilômetros daqui. Tinha fotos de uma garota (sua namorada?) e de um cachorro lindo. Esse rapaz teve a vida roubada. Enfiei três palmos de aço na cabeça dele para poder sobreviver. Caramba, fico doente só de pensar.
Com esforço e ânsia de vômito, retirei o virote da sua cabeça. Coloquei-o em água fervendo, dentro de uma assadeira, no fogão, e deixei-o lá durante umas seis horas. Custou-me meia linha de acumuladores de energia fazer a água ferver tanto tempo, mas acho que isso deve matar qualquer bactéria que o projétil pudesse ter. Depois, coloquei-o com os outros. Agora tenho quatro virotes. Posso ver os outros dois perfeitamente da minha janela, um abandonado ao lado do ursinho e o outro cravado na Bacia Quebrada. No que me concerne, poderiam estar tranquilamente na Lua. É impossível chegar até eles.
Não sei que, caralho, fazer com o cadáver. Não sei como jogá-lo por cima do muro sem que esses cornos me vejam. Por ora, enrolei-o em um plástico. Logo algo vai me ocorrer. Mais um problema.
Como se não bastasse, meu vizinho, Miguel, está em um estado de excitabilidade extremo. Desconfio que está bolando alguma coisa. Cometi o erro de lhe contar minha aventura com o soldado e agora ele acha que podemos ser capazes de abrir caminho a sangue e fogo pela cidade até o barco. Não sei como lhe explicar que a realidade é diferente.
Arrisquei a vida para avançar apenas metade da rua e pegar duas dessas coisas. Atravessar metade da cidade com MILHARES desses monstros soltos é uma tarefa diferente. Teríamos de planejar tudo com extremo cuidado, e não sair disparados, com um grama de coca na veia, sem saber o que podemos encontrar virando a esquina. Ele reparou em minha roupa de neoprene e agora anda com uma espécie de macacão de mecânico. Fica com uma aparência bastante idiota com isso. Desconfio que ele vai fazer alguma estupidez se não partirmos logo. Tenho de pensar. Rápido.
31 de janeiro 11h49
39º registro
Eu estava tranquilamente sentado na cozinha quando ouvi. Tiros. Parecia uma espingarda de caça. Foi bem ao lado. É meu vizinho, com certeza! Mas que, diabos, esse imbecil está fazendo? Por acaso pretende atrair tudo quanto é morto andante em um raio de dois quilômetros? Jesus, esses tiros devem ter sido ouvidos em toda a maldita cidade.
Subi pela escada apoiada no muro e dei uma olhada no quintal dele. Ninguém. Apenas as tábuas de madeira ordenadamente empilhadas que ia usar em uma varanda que nunca será construída. Chamei-o suavemente. Ninguém responde. Miguel, cara, mas que, diabos, você fez, imbecil?
O barulho provocado pelas coisas que estão no lado da rua de Miguel é perfeitamente audível daqui. Ouvem-se batidas em uma porta de madeira. De alguma maneira, essas coisas conseguiram atravessar o portão de aço do meu vizinho e agora estão esmurrando diretamente a porta principal.
Quando eu estava pensando em como, diabos, descer em seu quintal, vi-o por uma das janelas dos fundos. Ele disse que está bem, que tentou chegar até o carro "para me pegar na porta e me fazer uma surpresa", mas que há dezenas dessas coisas do lado dele da rua e que foi impossível. Além disso, um deles entrou na frente da casa. Acertou dois, disse com um enorme sorriso. Grandessíssimo imbecil. Com o barulho que fez para matar esses dois, agora deve haver mais uma dúzia aí fora, pelo menos.
O macacão de mecânico está rasgado na gola e manchado de sangue. Perguntei o que aconteceu, e ele disse que uma dessas coisas tentou agarrá-lo pelo pescoço, mas que conseguiu se soltar sem problemas. Todo o sangue é "desses merdas", disse. Está muito pálido e, não sei porquê, tive a impressão de que está mentindo. Anos de prática nos tribunais me permitiram conhecer muito bem as misérias e as falhas da natureza humana e, principalmente, ser capaz de captar os pequenos sinais inconscientes que emitimos quando não estamos dizendo a verdade. Esse cara está escondendo alguma coisa, eu sei. Tem de haver mais.
Agora estou na cozinha, preparando uma sopa concentrada, com Lúculo confortavelmente recostado em minha cadeira, e pensando em tudo isso. E não me agrada. Nada.
1º de fevereiro 10h58 40º registro
Esta noite bebi muito de novo. Agora, enquanto escrevo isto, estou com uma ressaca terrível, justo preço por meus excessos, suponho. Nunca fui um grande bebedor, longe disso, mas, desde que todo esse inferno começou, ataquei de tal forma meu bar que está quase nas últimas. Deve ser melhor assim.
Há muitas noites não consigo dormir bem. A tensão, a ansiedade, o barulho monótono e cruel, constante, dessas coisas aí fora formam um coquetel muito forte para minha mente. Pensei em tomar algum tipo de comprimido para dormir, mas tenho medo do sono induzido quimicamente. Se essas coisas conseguissem entrar enquanto eu estivesse sob o efeito de dois comprimidos de Valium, nem ficaria sabendo. Seria um prato quentinho e adormecido servido em bandeja de prata para eles. De modo que Valium, não, obrigado.
Também pensei em pôr um pouco de música para não ouvir os golpes e gemidos, mas, se a colocar alta o bastante para encobrir seus ruídos, só conseguirei atrair dúzias, centenas deles até minha porta. Como um maldito flautista de Hamelin, mas com essas coisas. Não me parece uma boa ideia. Coloquei um pouco os fones do MP3, mas não aguentei ficar com eles nem cinco minutos. Toda hora me parecia sentir que o portão de ferro estava cedendo e que eles subiam as escadas atrás de mim. Arranquei os fones três ou quatro vezes enquanto me sentava na cama, tremendo, segurando uma pistola que nem sequer tenho certeza de saber usar. O álcool, a tensão e a falta de sono estão me deixando paranóico. Preciso decidir o que fazer se não quiser enlouquecer. Entre ontem e hoje aconteceram três coisas, uma boa, uma regular e uma ruim. A boa é que eu estava mexendo no rádio UHF, pulando de uma estação a outra, como venho fazendo há vários dias sem captar transmissão alguma, quando de repente peguei um sinal. E fraco, cheio de estática e com interferências, mas é uma voz humana, disso não tenho a menor dúvida. Quando a captei, dei um pulo de alegria e abracei Lúculo tão forte que ele passou o dia todo olhando para mim com um olhar acusador. Parece algum tipo de emissora militar, transmitindo informes breves de notícias e recomendações. Pelo visto, as ilhas Canárias ainda estão aguentando e o governo e a família real se refugiaram lá. Ouvi uma mensagem do rei, mas não entendi quase nada do que disse, por causa das interferências, mas era ele, não resta a menor dúvida. Em resumo, dizem que as Canárias estão lotadas de gente proveniente da península, que o combustível, os alimentos e a água estão começando a faltar nas ilhas, de modo que recomendam NÃO ir para lá. Unidades da Marinha desviarão qualquer navio ou aeronave que tente chegar. Que grandessíssimos filhos da puta. São como os sobreviventes do Titanic que estavam nos botes e batiam com os remos em quem tentasse entrar da água. Estão em seu precioso e seguro bote e têm medo de que vire e afunde se muitos entrarem. De modo que, resumidamente, nos mandam tomar no cu, educada, mas firmemente. Virem-se.
Sei que não são boas notícias, mas saber que não sou o último sobrevivente na face da Terra me enche de alívio. Além do mais, eles que se danem. Se as Canárias são seguras, isso significa que deve haver mais lugares seguros. Mais lugares com gente, comida, conversa agradável e água quente (Deus, eu mataria por um bom banho!).
As cinquenta e duas forças provinciais, reduzidas depois a quarenta, tiveram de ser agrupadas em quatro grandes unidades, com sua força extremamente diminuída. As baixas foram impressionantes (o pobre rapaz enrolado em plástico em minha varanda poderia dar boa fé disso) e as deserções e unidades "perdidas" são contadas por dúzias. Só estão capacitadas para defender algumas áreas seguras que, de algum modo, estão conseguindo sobreviver, embora não se saiba por quanto tempo (até que fiquem sem munição, imagino). O panorama é absolutamente desolador, mas já é alguma coisa, afinal.
A notícia regular é que hoje ouvi tiros de novo. Ouviram-se em direção sudoeste, na área entre o centro e a estrada de La Coruna. Foi perto do amanhecer. Uma série de tiros curtos, como de arma pequena, e depois uma série de soluços rápidos que eu poderia jurar que são de algum tipo de rifle de assalto. Ouviram-se por quase meia hora, e, de repente, pararam bruscamente. Ou não tinham mais em quem atirar... Ou não sobrou nenhum atirador. Que merda!
A notícia ruim é que faz quase vinte e quatro horas que não sei nada do imbecil do meu vizinho. Não atende aos meus chamados, por mais que eu grite por cima do muro. Seu cachorro é um mestiço feio e ruim como o diabo, que é inimigo juramentado de Lúculo desde que chegou e que sempre ronda perto do muro, imagino que esperando que meu gato escorregue e caia. Há apenas uma hora ouvi uns ganidos horríveis vindo de dentro da casa. Era como se alguém estivesse assassinando o pobre bichinho. Depois, parou. Agora há pouco, olhei por cima do muro de novo. Não vejo nada, nem o cão nem o dono. Ninguém me atende. Só os montes de tábuas, corretamente empilhadas no quintal de Miguel, são testemunhas do que esteja acontecendo. E receio que não vou gostar de saber.
1º de fevereiro 21h00 41º registro
A Lei de Murphy diz que, quando as coisas podem dar errado, dão mesmo. O maldito autor dessa tese deve estar exultante neste momento, se continuar vivo. Francamente, acho que agora mesmo esse detalhe não importa um caralho a ninguém. Cada um deve cuidar do próprio rabo neste novo mundo de "não vivos" em que nos metemos. Depois de passar metade da manhã pendurado no muro tentando chamar a atenção desse cretino do Miguel sem fazer muito barulho, finalmente desisti. Voltei para casa com um profundo desânimo. E se aconteceu alguma coisa com ele? Começou a desfilar por minha cabeça uma série de possíveis acidentes domésticos que aquele idiota poderia ter sofrido, desde cair pela escada até escorregar saindo da banheira (contando com que queira tomar banho de água fria em pleno mês de fevereiro. Na Galícia). Não pude parar de pensar no assunto enquanto preparava uma xícara de café instantâneo na cozinha. A possibilidade de que alguma dessas coisas o houvesse mordido em seu insensato passeio externo me passou pela cabeça, mas a descartei rapidamente. Se isso houvesse acontecido, ele teria me contado, não? Continuo pensando que ontem, quando o vi coberto de sangue, estava escondendo alguma coisa, mas ele não pode ser tão estúpido a ponto de mentir sobre algo tão importante. Pelo menos, é o que quero acreditar.
É um babaca, e sua falta de cabeça vai trazer uma dúzia de problemas por dia, pelo menos, mas ele é a única pessoa viva que me resta por perto, que eu saiba. Além disso, ele me cedeu desinteressadamente os pontaletes de madeira quando lhe pedi. Devo-lhe um favor, mas nunca pensei que teria de pagá-lo andando com ele por uma cidade desolada pela morte e pelo caos até um barco que nem sequer sabemos se está lá. E uma verdadeira estupidez de plano, mas ele está obcecado com isso, e, se eu não o acompanhar, tentará sozinho e vai dar merda antes de ele virar a esquina. Além do mais, não quero ficar sozinho. Sinto pânico dessa situação.
Pensei que um dos possíveis motivos de seu silêncio é que esteja absolutamente chapado. Esses dias andou cheirando cocaína, disso não resta dúvida. Pode ser que tenha cheirado uma carreira além da conta ou que a merda que lhe venderam estivesse adulterada. Quem sabe. Pode ser que eu esteja me deixando levar por excesso de imaginação, mas não consigo parar de pensar nele, deitado no chão da cozinha, usando seu estúpido macacão de listras vermelhas, com um fio de sangue saindo do nariz, morrendo a menos de vinte metros de mim, enquanto eu estou coçando o saco. Apoiei violentamente a xícara na pia da cozinha e fui para o quintal.
No quartinho do cortador de grama tenho uma corda com nós. Normalmente a uso em mergulhos, quando passo muito tempo em grande profundidade e preciso fazer descompressão. Para evitar a nar-cose de nitrogênio, preciso subir lentamente à superfície, e a corda tem uma série de nós grossos a cada meio metro que me ajudam a calcular a profundidade.
Agora essa corda me serviria para descer até o quintal dele. Amarrando uma ponta na chaminé da minha pouco usada churrasqueira, no canto esquerdo do quintal, deixei que a corda se desenrolasse até o chão do quintal vizinho. O frio era atroz, intenso. Uma suave camada de sereno cobria toda a superfície de grama do quintal, só interrompida pelos ocasionais montes de tábuas de madeira, apoiadas onde os marceneiros as deixaram um dia. Não fosse pelas batidas constantes dessas coisas no portão de minha casa e os gemidos aterradores que soltam, o silêncio seria absoluto. Do meu lado do muro, subi despreocupadamente pela escada de mão, passei as pernas por cima da borda e comecei a deslizar até o chão do quintal vizinho segurando a corda. Só quando cheguei ao quintal de Miguel é que percebi que estava usando uma blusa grossa e uma calça jeans gasta e que a única arma que tinha era um canivete no bolso direito da frente. Sim, senhor. Muito precavido. Muito profissional. Vá se foder. Já estava dando meia-volta para me equipar corretamente quando ouvi um ruído dentro da casa. Além de tudo, pensei no papel ridículo que faria se aparecesse com o arpão em riste e a roupa de mergulho e o encontrasse deitado no sofá ouvindo música com fone de ouvido enquanto bebia cerveja. Não, melhor correr o risco; afinal, o homem tem seu orgulho. Maldito orgulho.
Atravessei o quintal com precaução, apoiando os pés na varanda inacabada. O cheiro de serragem e de verniz era muito intenso. Por todo lado havia latas vazias de tinta e ferramentas de carpinteiro abandonadas. O interior da casa estava escuro, lúgubre. Bati na porta dos fundos suavemente com os nós dos dedos, enquanto chamava Miguel. Nada. Quando estendi a mão para abrir a porta, o portão do inferno se abriu.
A janela situada à minha esquerda explodiu para fora. Por ela saíram dois braços e a cabeça dessa coisa. Oh, aquilo NÃO era Miguel. Pobre imbecil. Ao querer me "fazer uma surpresa", havia conseguido que essas coisas o mordessem.
Agora ele estava fodido, e o pior é que ia tentar me foder também. Saí correndo para o muro como um possesso. Devo ter tropeçado em um dos montes de tábuas, porque agora meu tornozelo está do tamanho de uma bola de tênis. Ao chegar ao muro, olhei para trás e vi Miguel tentando se livrar da esquadria da janela. Deve ter se cortado, porque um fio de sangue terrivelmente escuro, contaminado, corria por seu braço esquerdo, encharcando a roupa. Fiquei como um imbecil, hipnotizado, olhando fixamente para ele. Só reagi quando ele saiu da casa e começou a andar para mim. Oh, que lentos parecem e que rápidos são!
Comecei a subir pela corda. Não é fácil, e menos quando você sabe que, se escorregar, vai encontrar a morte, ou algo pior. Não tenho certeza, mas acho que ele chegou a tocar minha bota com as mãos. Foi por pouco. Olhei para ele do alto do muro. Estava furioso, agressivo, encharcado do próprio sangue. É um deles.
Entrei em casa e peguei a câmera fotográfica. E um modelo um pouco antigo, uma HP 735 digital, mas tem uma lente Pentax fantástica e me acompanhou em um monte de histórias. Tirei duas fotos dessa coisa uivante aí de baixo para poder observar com atenção um deles mais tarde, sem precisar me expor muito.
Agora estou na cozinha, contemplando as fotos no notebook enquanto o ouço arranhar e bater no muro. Sei que devo fazer alguma coisa com ele, mas ainda não pensei em nada. Preciso tomar uma decisão. Amanhã.
2 de fevereiro 19h54 42º registro
A decisão foi complicada. Passei o dia todo pensando no que fazer com a coisa que arranhava o muro do quintal, e a solução, de tão óbvia, tornava-se cada vez mais difícil de adotar. O mais normal seria acabar com ele, com seu sofrimento, se é que está sofrendo. Nem sequer sei se tem ciência da própria existência, se percebe a realidade como eu ou se a percebe de outra maneira, de modo que não posso saber se está sofrendo ou não. A verdade é que sei tão poucas coisas deles...
Eles pensam? Sentem? Resta ainda algo do antigo eu dentro deles, ou seu espírito fica absolutamente aniquilado no tempo entre a morte e o renascer? Eles se lembram da vida anterior? Dormem? Sonham? Diabos, não sei absolutamente nada sobre meus predadores. Só sei que querem me caçar. E que eu, como o resto dos humanos, sou sua presa.
Mesmo sabendo disso, foi muito difícil tomar uma decisão sobre Miguel. Apesar de saber que agora ele é um deles, esse cara é um conhecido. E meu vizinho, pelo amor de Deus. Embora sempre tenha sido um completo cretino, enfiar três palmos de aço na cabeça dele me parece inconcebível. Não sou um assassino. Não posso fazer isso. Custou-me três horas do meu tempo e minha última meia garrafa de genebra reunir a coragem suficiente para acabar com ele. O que inclinou definitivamente a balança é que os gritos que profere estão me enlouquecendo. Posso ouvi-lo de todos os cantos da casa, sua voz entrando em meus ouvidos cada minuto, cada segundo, pedindo meu sangue, incansável. Na verdade, estou histérico.
Febril e bêbado, peguei o arpão e coloquei um virote nele, enquanto puxava o elástico até sua posição mais tensa. Precisei fazer três tentativas para conseguir, mas finalmente o armei. Tropeçando, subi a escada de mão apoiada no muro e olhei. Assim que me viu, redobrou os gritos e começou a esticar os braços para o alto do muro, tentando me pegar. Estava a menos de dois metros de mim. Era um tiro que nem um sujeito completamente bêbado poderia errar. Ao apertar o gatilho, o virote saiu com um assovio seco. Entrou bem em cima do olho direito, com um leve "crack". Um ricto de surpresa (ou de alívio?) surgiu em seu rosto um momento antes de ele desabar como um saco de areia no chão do jardim, em cima da grama.
Pronto. Um riso histérico me atacou, incontrolável, enquanto umas lágrimas enormes e redondas corriam por minhas faces. Um pouco depois, eu estava chorando como um bebê, apoiado no muro, segurando nas mãos o arpão descarregado. Assassinei meu vizinho do alto do muro que nos separa. Acabo de enfiar um pedaço de ferro na cabeça dele. Há um dia, apenas, eu fazia planos com ele, suportando suas terríveis piadas, e agora o matei. Isso tudo é uma merda. Sinto-me muito sozinho. Vou enlouquecer se continuar muito tempo assim.
Desci pela corda de nós até o quintal dele, ao lado do cadáver. Ao apoiar o pé que bati ontem, uma chicotada de dor sacudiu meu tornozelo direito. Segurei um grito. Deus, dói demais. Espero que seja só uma torção e que não tenha quebrado nada. Mancando, fui até uma pilha de madeiras coberta por um grosso plástico e peguei a cobertura. Com o plástico na mão, arrastei o cadáver por uma perna da calça até um canto do quintal e o enrolei nele. Precisava enterrá-lo. Precisava rezar algo por ele. Nem sequer sei qual era sua religião. Caramba! Vou pensar em alguma coisa.
Voltei-me para a casa e contemplei-a, pensativo, durante alguns instantes. A porta dos fundos ainda estava fechada e a janela por onde Miguel saiu estava completamente destruída. Uma constelação de vidros quebrados cobria o chão junto a manchas de sangue já coagulado. Uma cortina com uns feios traços de sangue estava para fora. A casa estava escura e silenciosa. Não parecia haver ninguém dentro.
Tenho de entrar. Sei que devo entrar. Em primeiro lugar, devo me certificar de que não há mais dessas coisas dentro da casa e que a porta de madeira está convenientemente defendida. A última coisa que necessito é uma ou duas dúzias desses monstros no quintal de casa. Além disso, lembro que Miguel tinha uma empresa de distribuição de produtos farmacêuticos. Ele deve ter uma tonelada de amostras de mercadoria em algum lugar, e eu estou precisando de calmantes. E, principalmente, o mais importante, a casa dele tem vista para a outra rua. Pode ser que haja uma saída por ali ou que me ocorra alguma ideia, não sei.
Mas, naquele momento, eu não podia entrar. Já anoitecia e a escuridão cobria tudo. A casa de Miguel não tinha eletricidade. Eu não ia entrar na boca do lobo no escuro sem minha roupa de neoprene e bêbado como um gambá. Não, senhor. Melhor deixar para o dia seguinte.
Subi pela corda como pude e voltei para casa. Estou deitado no sofá da sala, no escuro, enquanto ouço os monótonos golpes dessas coisas em meu portão. Já estou mais sóbrio, e o surdo retumbar da ressaca parece estar se aproximando. Vou tentar dormir um pouco. Amanhã vou entrar nessa casa. E vou começar a planejar alguma coisa. Preciso sair daqui.