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25 de janeiro 2h36 32º registro
Já estão aqui.
Merda. Posso vê-los da janela. São dezenas, centenas, milhares deles. Estão por todos os lados. Que Deus me ajude. Cristo bendito, é impossível! Acho que vou vomitar.
25 de janeiro 18h38 33º registro
Já estou mais tranquilo. Esta noite foi um verdadeiro pesadelo. Mais tarde, à luz do dia, a situação, embora menos aterradora, mostrou toda sua angustiante realidade. Mas agora a noite cai outra vez. Em poucas horas tudo ficará completamente escuro de novo (nem preciso dizer que a iluminação pública não está funcionando) e eu não poderei ver essas coisas. Mas sei que estão aí fora. E acho que, de alguma maneira, eles sabem que há vivos aqui por perto, em algum lugar.
Tudo começou à uma da manhã, mais ou menos. Eu acabava de voltar do muro do jardim, onde conversava com Miguel, o vizinho da casa de trás, o único ser humano que resta aqui. Imagino que poderíamos ter conversado por telefone, e assim evitaríamos o terrível frio destas noites, mas a necessidade de ver um rosto humano é enorme. Ao voltar para casa, transferi meu quartel-general para o quarto da frente, no andar superior. Não consigo mais dormir neste quarto há dois anos. Agora, não me resta outro remédio, pois é o único cuja janela dá para a frente e fica acima do muro. Daqui, posso ver toda minha rua até o cruzamento com a principal e um pequeno trecho desta. Trouxe para cá o rádio, o notebook, uma pequena tevê de catorze polegadas e o arpão de pesca submarina, colocando tudo ao lado de uma poltrona que aproximei da janela. Sentei--me nela e fiquei esperando.
No início, eu não conseguia distinguir muito bem o que estava acontecendo. O som veio primeiro. No silêncio sepulcral da noite, comecei a ouvir um barulho estranho, como algo sendo arrastado no asfalto, salpicado com algum ocasional gemido. Fiquei com os pelos dos braços literalmente em pé. Um instante depois, vi o primeiro. Era um homem, roupa normal, de uns 35 anos. Usava camisa xadrez azul e branca e calça jeans. Estava sem sapatos. Tinha uma ferida horrível no rosto e toda a roupa estava encharcada de sangue, que já começava a endurecer. Atrás dele foram aparecendo mais, homens, mulheres (até crianças, pelo amor de Deus!). Todos tinham algum tipo de ferida, e alguns, até mesmo amputações severas. A cor da pele deles é cerúlea, com o sistema de vasos marcado em tons escuros sobre essa pele pálida, como se fosse uma delicada tatuagem. A córnea é amarelada. Os movimentos são lentos, mas não muito, e parecem ter algum pequeno problema de coordenação. Em certa medida, no modo de andar lembram alguém meio bêbado, depois de uma noite de farra, a caminho de casa. Nada mal, tendo em conta que estão mortos. Fodidos e totalmente mortos. Porque disso não resta a menor dúvida. Vi algumas dessas criaturas com ferimentos que necessariamente têm de ser mortais, mas passaram por baixo de minha janela, andando como se nada fosse. Isso é pavoroso. As dezenas do início logo se transformaram em centenas, talvez milhares, não sei. Por um momento, a rua parecia uma manifestação ou a saída de um concerto, só que mergulhada em um silêncio sepulcral, quebrado apenas pelo arrastar de pés no asfalto e alguns ocasionais gemidos. E uma puta multidão e se encaminha diretamente para o centro, para a área segura. Incansável. Imutável. Incontrolável.
O motivo é mais que evidente. Não sei quantas pessoas podem estar amontoadas no centro, mas toda multidão faz barulho, muito barulho. No silêncio absoluto dessa noite cheia de cadáveres andantes, posso ouvidos a distância, a mais de dois quilômetros. Som de alto-falantes, barulho de geradores elétricos para prover luz e calor, barulho de veículos. Um ímã para essa multidão violenta e desejosa de corpos humanos palpitantes. Vão para cima deles, e eles não poderão fazer nada.
Depois de algumas horas, comecei a ouvir barulho de armas de fogo, perto do centro. Primeiro foram alguns tiros soltos, isolados. Mais tarde, o barulho de fuzilaria aumentou e se transformou em um verdadeiro rugido. Poderia jurar que, por um momento, ouvi até algo parecido com tiros de canhão. A Brilat foi deslocada para vários pontos da Espanha nesses últimos dias, mas ainda deve restar um contingente considerável aqui, e parece estar reagindo a valer. A radiofreqüência ficou saturada durante horas intermináveis, cheia de mensagens histéricas de umas unidades para outras. Chamadas de auxílio, solicitações urgentes de munição, pelotões cercados pedindo ajuda urgente, informes de baixas, pontos de reencontro, saíram por tal ponto, estão nos ultrapassando por outro... e, pouco a pouco, o silêncio. O barulho de armas de fogo foi cessando paulatinamente e ao raiar do dia não se ouvia absolutamente nada. As radiofreqüências estão mudas, mortas. Umas colunas de fumaça se elevam sobre o centro, marcando o lugar onde um dia esteve situada a área segura de minha cidade. Estamos bem fodidos. Uma ou duas dúzias desses monstros ficaram dando voltas pela minha rua, como autômatos. Um deles está batendo monotonamente na porta da casa ao lado, a do médico. Não sei por que faz isso, já que me consta que essa casa está absolutamente vazia, mas ele está assim há horas, e vai fazer meus nervos explodirem. A noite vai cair de novo. Espero ver a luz do dia.
26 de janeiro 17h57 34º registro
Está sendo um dia muito longo. Escrevo isto no quarto do segundo andar, o que dá para a rua, e de onde não saio, exceto para ir ao banheiro ou para comer alguma coisa. Tenho uma garrafa de genebra pela metade ao lado das minhas coisas. Ainda estava inteira nesta manhã. Não creio que vá me tornar alcoólatra, mas um trago ou dois estão me ajudando a lidar com tudo isso. Caramba, essa tensão está deixando meus nervos em frangalhos.
Hoje de madrugada eu estava cochilando em frente à tevê, que ligo apenas de vez em quando para economizar as baterias (ainda transmitem o escudo da Casa Real, mas faz muitas horas que não passam nem uma única informação), quando acordei de repente. Tiros. Ouvi tiros não muito longe daqui. Duraram um pouco e depois, de repente, pararam abruptamente. Pareciam de uma pistola, ou duas, e talvez de algo de calibre maior. Uma espingarda de caça? Não sei, mas pelo menos isso me revela algo fundamental. Há mais gente viva por aqui! Ou, pelo menos, estava viva há pouco. Miguel, meu vizinho, está cada vez mais agitado. Acha que ficarmos aqui é suicídio e que o melhor que podemos fazer é pegar um carro e abrir caminho até a marina para pegar seu barco. Passei metade da manhã tentando dissuadi-lo de tamanha loucura. Em primeiro lugar, não sabemos se o barco continua amarrado lá ou não (o mais provável e que tenha desaparecido). Além do mais, com certeza a estrada deve estar cortada em uma dúzia de sítios, de modo que teríamos de abandonar o carro e seguir a pé, com milhares dessas coisas rondando por todos os lados. Não duraríamos nem um minuto. Acho que consegui dissuadi-lo, mas não sei por quanto tempo.
Em parte ele tem razão. Ou melhoramos nossa situação aqui ou teremos de ir embora, e muito em breve.
A presença desses monstros na rua é constante. Quando soaram os tiros, vi passar centenas deles andando pela rua principal, em direção ao toco dos disparos, inclusive alguns que vagam por aqui há horas. Mas o resto permaneceu na área, e com o passar do dia chegaram alguns novos. Agora mesmo, da minha janela posso ver onze deles vagabundeando distraidamente para cima e para baixo. São quatro mulheres, duas crianças e cinco homens. (Batizei um deles de Socador, depois de ele passar horas batendo em um portão de ferro.) Todos têm o mesmo aspecto cerúleo e distraído, e a roupa endurecida, rasgada e manchada de sangue. Alguns apresentam mutilações impressionantes, e uma das mulheres tem a cintura esmagada, como se um carro houvesse passado por cima dela. Deve estar com a bacia quebrada, porque lhe é extremamente difícil caminhar.
O mais interessante é, sem dúvida, um dos homens, tão morto quanto os outros. E militar, com o emblema da Brilat costurado na manga. Tem uma horrível ferida no pescoço e falta-lhe um pedaço do rosto. Posso ver parte de sua dentição cada vez que passa mancando por baixo de minha janela. O sangue coagulado formou estranhos grumos na parte superior de sua jaqueta.
Mas o realmente importante é que ainda está com a mochila pendurada nas costas. E um cinto com uma dúzia de bolsos. E uma pistola. Uma pistola! O álcool, o estresse acumulado e a falta de sono fizeram minha cabeça começar a maquinar febrilmente uma dúzia de diferentes planos para conseguir pegar essa pistola e essa mochila. Preciso delas. Mas o problema é que só disponho de um arpão de pesca submarina. Supondo que seja capaz de abatê-lo, ainda teria de tirar tudo dele, e, nesse momento, os outros monstros viriam para cima de mim. Depois de um tempo, bolei um plano. É horrivelmente ruim, mas é o melhor que tenho.
Não quero pedir ajuda a meu vizinho. Ele está muito nervoso para ser confiável. Além do mais, se acontecesse alguma coisa com ele por causa de um plano bolado por mim, o remorso me mataria. Não. É meu plano, é meu risco e é meu prêmio. Não tenho a menor idéia de como se usa uma pistola, mas com certeza me fará sentir mais seguro. Com ela, vou me atrever a sair daqui. E, em caso extremo de necessidade, não hesitarei em usada, até contra mim mesmo, para evitar me transformar em uma dessas coisas. Disso eu tenho certeza.
Agora que já sei o que fazer, só preciso escolher o momento. Prefiro esperar mais algumas horas. Quero ter certeza de que não há mais dessas coisas fora do meu ângulo de visão. Montei o arpão e o testei em um toco de madeira no jardim. Ao apertar o gatilho, a tensão acumulada na borracha é liberada bruscamente. O virote saiu disparado como um foguete e se incrustou no toco com grande facilidade. Suei um pouco para tirá-lo dali. Não havia pensado nisso. Não terei tempo para recuperar meus projéteis. E só tenho meia dúzia. Vou ter de ser muito, muito esperto mesmo.
27 de janeiro 11h25 35º registro
Minhas mãos ainda tremem.
Tive de deixar passar um bom tempo e virar outro bom trago de genebra para me sentar e escrever isto. Deus do céu, meus nervos vão explodir se a coisa continuar assim. Comecei com tudo ao raiar do dia, assim que tive luz suficiente. Essas coisas são enganosamente desajeitadas, mas podem se movimentar rápido de verdade quando interessa. Não sei se enxergam bem à noite ou não, mas do que tenho certeza é de que eu, no escuro, não enxergo um caralho. E eles são mais, de modo que não vou tentar descobrir. Pelo menos, por enquanto.
Pensando bem, meu plano é uma verdadeira loucura. Mas é a melhor idéia que me ocorreu nas últimas e febris horas. Preciso fazer alguma coisa, dar vazão à angustiante tensão dos dias passados desde que eles chegaram. Além do mais, essa pistola e essa mochila se transformaram em uma espécie de símbolo para mim. Preciso pegá-las, a qualquer preço. Meu estado de excitação é tal que acabei contagiando o pobre Lúculo. Ele passou a manhã toda correndo como um louco pelo quintal.
Após horas de observação, percebi que as onze criaturas que estão em minha rua mal se movimentam, a não ser quando descobrem algo que lhes chama a atenção. Por volta das sete da manhã, alguma coisa, um rato, um ouriço ou algo parecido, passou correndo pela entrada da rua. Várias dessas coisas começaram a ir para lá, mas, evidentemente, não conseguiram pegar o bicho. Seis deles - duas crianças, três homens e uma mulher - ficaram perto da entrada da rua, a uns quarenta metros, todos de costas para a porta de minha casa. Ao ver isso, percebi que meu plano podia ter alguma possibilidade de sucesso.
Todo o meu plano se baseia no fato de que só existe um acesso para a minha rua, pela parte inferior, onde se liga com a rua principal. Do outro lado fica o terreno pelo qual vi passar os guardas civis e soldados há umas noites (mas já parece uma eternidade). O terreno é bem inclinado, de modo que duvido muito que qualquer uma dessas coisas consiga subir por ele. Mas isso é algo de que não tenho certeza absoluta. Mais uma incógnita em meu maravilhoso plano. Vejo passar pela rua principal, de vez em quando, pequenos grupos dessas coisas, aparentemente vagando sem rumo, mas não parecem achar minha rua especialmente atraente, já que só dois entraram nas últimas horas, dois civis, homens, e depois de duas horas seguiram.
O cadáver do soldado está na parte mais afastada da rua, próximo ao terreno, balançando-se no meio da calçada. Além dele e das seis criaturas que estão de costas, restam três mulheres e um homem, o Socador, que continua rondando a porta da casa vizinha. Parece que se apaixonou por ela. Uma das mulheres, aquela que não tem um braço e metade do peito, está bem em frente à minha casa, a menos de dois metros do portão, olhando fixamente para o muro. Vendo que a situação não mudava em quase hora e meia, decidi agir.
Queimei muito a cabeça tentando decidir como me vestir para a ocasião. Claro que não quero que nenhuma dessas coisas me morda. Também não quero que me toquem. Não sei se suam, nem se o contato com a pele deles ou com o suor pode me passar o vírus. A triste verdade é que não sei merda nenhuma sobre eles. Só sei que estão mortos, que são agressivos e que estão na porta da minha casa. Caramba! Todo cuidado é pouco.
Depois de pensar muito, decidi vestir a roupa de neoprene. É grossa, de catorze milímetros (sou muito friorento, e a água na Galícia no inverno é MUITO gelada), flexível e resistente. Duvido muito que uma mordida a possa atravessar. No máximo, vai deixar um hematoma por baixo do neoprene, e isso eu posso suportar. Além disso, é totalmente liso e tem isolamento térmico. Não tem ganchos, botões nem nada por onde possam me segurar. É como uma segunda pele. Hesitei na hora de pôr o gorro. Ele me cobre a cabeça toda, exceto o rosto, mas, por ser tão grosso, quando cobre os ouvidos não consigo ouvir nada. Não posso me arriscar a não ouvir uma dessas coisas se aproximando por atrás. Além disso, prejudica minha visão periférica.
Com um suspiro, peguei uma tesoura e com não pouco esforço cortei o gorro. Essa maravilha me custou quase mil e duzentos euros há um ano e foi minha melhor companheira em muitos mergulhos de fim de semana, e agora a estou destruindo. Suponho que a situação justifique.
Depois de vestir a roupa de mergulho, coloquei luvas de inverno e calcei um par de tênis de sola de borracha, flexíveis e, principalmente, silenciosos. Olhei-me no espelho com os óculos de pesca submarina nos olhos, o arpão e alguns virotes enganchados nas costas. Jesus, que coisa mais ridícula! Não sei se vou conseguir acabar com o soldado, mas talvez ele morra de rir quando me vir. Isso contando que tenha senso de humor. Caralho, estou desvairando.
Antes de sair, peguei um velho guarda-chuva e arranquei o pano e todas as varetas. Ele tem um impressionante cabo de marfim que pesa uma tonelada. Como última linha de defesa, para dar umas guarda-chuvadas servirá perfeitamente.
De modo que, aqui estou, confiando minha vida a um arpão de pesca submarina e a um velho guarda-chuva destruído. Maravilha.
Chegou a hora de ir. Vou deixar Lúculo no quintal. Se algo acontecer, espero que tenha tino suficiente para fugir pulando o muro. Meu pobre amiguinho. Não merece toda essa merda.
Antes de destrancar a porta peguei minha "arma secreta". Todo meu plano depende dessa pequena coisa esquecida e absurda que encontrei revirando uma gaveta. Se funcionar, terei uma possibilidade. Se não... vou estar em apuros de verdade.
28 de janeiro 15h45 36º registro
O ser humano é imensamente complexo. Se me houvessem dito há menos de um mês que eu seria capaz de fazer o que fiz ontem à tarde, eu teria rolado de rir. Mas consegui. Ainda estou vivo.
Já vestido com a roupa de mergulho, abri levemente a janela do andar superior, de onde posso ter uma visão total de minha curta rua. Tirei o arpão de pesca submarina por ela e, com ele apoiado no batente da janela, brinquei um momento com a ideia de atirar em todas as criaturas da segurança do interior de minha casa. Evidentemente, isso era uma absoluta estupidez. É impossível acertar um alvo do tamanho de uma cabeça humana a trinta metros de distância com um arpão submarino, mesmo contando com que o projétil chegasse com velocidade e força suficientes. Além disso, existe o fato inquestionável de que tenho apenas seis virotes. Seis únicos tiros. Demais, não é?
Não pude controlar um ataque de riso maníaco, quase histérico. Eu estava pensando em atirar em pessoas da janela do meu quarto! O absurdo da ideia me parecia até irónico. Mesmo sendo evidente que essas coisas ali embaixo já não são pessoas, sei que em algum momento tiveram vida, família, amigos... e agora são apenas... sei lá o quê. Ou foram mais ineptos, ou tiveram menos sorte que eu. Isso é tudo.
Com um suspiro, decidi enfrentar o inevitável. Peguei um rolo de fita isolante e minha "arma secreta" da gaveta. É um pequeno ursinho de pelúcia com dois pratinhos de cobre nas mãos. Apertando o botão da parte posterior, o ursinho começa a bater freneticamente os pratinhos enquanto uma espécie de soluço brota de dentro dele. O barulho é ensurdecedor.
Ele chegou à minha casa há meses, pelas mãos da proprietária, uma das minhas priminhas, Laurita. Após perseguir um indignado Lúculo pela casa toda, manchar as cortinas de chocolate e quebrar um porta--retrato, finalmente adormeceu no sofá e seu ursinho ficou abandonado embaixo dele. Encontrei-o um dia depois e o guardei em uma gaveta esperando que sua legítima dona voltasse para buscá-lo.
Agora, acho que ela não volta mais.
Pelo amor de Deus, ela só tinha cinco anos! Espero que Laurita esteja bem ou, se não, que tenha morrido, mas que não esteja vivendo como essas coisas.
Amarrei o ursinho a um virote com a fita adesiva. Depois, coloquei-o no arpão e apontei para a fachada da casa do começo da rua. É a casa mais próxima do cruzamento e tem um revestimento de madeira em todo o andar superior. Minha ideia era cravá-lo ali e que fizesse barulho suficiente para chamar a atenção dessas coisas.
Enquanto isso, eu me arranjaria com o cadáver do soldado, que, por estar mais longe, seria o último a passar por minha porta. Um plano simples. Uma verdadeira merda de plano, no qual mil coisas podiam falhar, mas era tudo o que eu tinha.
Com uma inspiração profunda, apontei para a fachada e apertei o gatilho, ligando o brinquedo um segundo antes. O projétil saiu disparado, mas o peso do ursinho foi excessivo e desviou a trajetória do virote. Em vez de se cravar na fachada, bateu na beira do muro da casa com um som seco e caiu na canaleta que percorre sua parte baixa. Por um breve instante não se ouviu nada. Quando eu já achava que meu elaboradíssimo plano havia ido por água abaixo antes mesmo de começar, um agudo som de pratinhos começou a sair da vala ao pé do muro. O urso de Laurita não havia me deixado na mão.
O efeito sobre essas coisas foi eletrizante. Ao ouvir o som, todos se voltaram para a origem e começaram a andar em sua direção. Precisava me apressar. Desci as escadas como um tiro e abri a porta de casa. Corri para o portão de ferro, de onde já havia retirado os pontaletes de madeira, e, discretamente, abri-o. Silenciosamente, ele girou nas dobradiças engraxadas, graças a Deus, há apenas três semanas) e pela primeira vez em muitos dias pus os pés na rua.
Todas as criaturas já haviam passado por meu portão. Uma breve olhada para a esquerda me permitiu ver as costas de todos se dirigindo com lentidão enganosa para o local de onde saía o som.
O soldado era o último e estava perto de mim, de costas, a apenas alguns metros. Peguei um dos virotes e comecei a montar o arpão, enquanto dirigia olhares febris para todos os lados. Quinze segundos depois a borracha estava esticada e um virote no lugar. Meu próprio recorde. Levantei a arma e apontei, a menos de três metros. A essa distância não podia errar. Se Deus ainda se preocupa com esta condenada raça humana, espero que me perdoe por isso, mas minha vida estava em jogo.
Apertei o gatilho. O virote saiu com um leve zumbido e atravessou a parte posterior do crânio do soldado. Ele parou em seco e tombou com um som surdo. Rapidamente me aproximei do corpo. Agora, sim, parecia estar morto-morto, mas, ainda assim, todo cuidado era pouco. Apoiei o arpão e o cabo do guarda-chuva no chão e comecei a lutar com as travas da mochila. Alguns grumos de sangue haviam caído nas fivelas, e eu não conseguia afrouxar as alças. O suor começou a correr por minhas costas. Um olhar bastou para perceber que uma das coisas estava enfiando o braço na vala, em busca da fonte do som. Era questão de minutos para que a pegassem e a destruíssem. Então, eu estaria absolutamente perdido.
Algo deve ter chamado a atenção da mulher com a bacia esmagada, porque ela se voltou em minha direção. Teria me ouvido, cheirado, sentido? Francamente, não sei, mas o certo é que se voltou para mim e me viu.
Com esse estranho movimento que fazia ao andar, começou a se aproximar de mim.
Essa, sim, era lenta, pois precisava arrastar uma perna e apoiar a outra, e seu ponto de equilíbrio estava bastante prejudicado. Ainda assim, eu tinha apenas alguns segundos. Lutei com as mãos desajeitadas para colocar outro virote no arpão. Uma gota de suor entrou em um olho meu enquanto eu puxava o elástico para mim. Quatro metros. Finalmente consegui montar tudo. Três metros. Levantei o arpão e apontei para a cabeça da mulher. Dois metros. Atirei.
O golpe do virote foi seco, contundente. A mulher parou e caiu para a frente, como um saco de batatas. Mas a situação estava piorando. Uma das criaturas pegou o ursinho e ao sacudi-lo conseguiu fazer as pilhas caírem antes de eu atirar. Os pratinhos ficaram mudos. O barulho da mulher caindo fez que todos olhassem em minha direção. Precisava me apressar. O tempo estava acabando.
Peguei o cadáver do soldado pela perna da calça e comecei a arrastá-lo para o meu portão aberto, para a minha salvação. Não tinha tempo para soltar as fivelas, precisava levar o pacote completo. Enquanto me aproximava do portão, uma dessas coisas saiu de repente de trás de um carro estacionado. Merda! Essa eu não havia visto antes. O arpão estava em meu ombro, descarregado, e eu não teria tempo de colocar outro projétil. Soltei a calça do militar e com as duas mãos balancei o cabo nu do guardachuva. Com toda minha força, bati com o cabo de marfim na cabeça da criatura. Não sei se o matei, mas ele caiu após um estalo do osso parietal esquerdo. Soltando o guarda-chuva, peguei de novo o cadáver do soldado e finalmente atravessei o portão de minha casa e fechei-o atrás de mim. Bem na hora. Estavam a apenas alguns metros. Deixei o cadáver do soldado em frente à porta. Vomitei de pura tensão. Agora, estou bebendo há quase vinte e quatro horas seguidas.
Estou bêbado. E o pior é que agora essas coisas sabem que estou aqui. Mas estou vivo. E quem está vivo pode lutar por sua vida no dia seguinte.
29 de janeiro 17hl4 37º registro
Se continuarem assim, vão me enlouquecer. Estão esmurrando o portão incansavelmente há horas. Posso ouvidos, não importa onde me esconda. É horrível. E esses gemidos... Oh, Santo Cristo! Estão destruindo meus nervos. Bebo muito há dias, eu sei, mas não me ocorre mais nada para poder suportar tudo isso.
Miguel, meu vizinho, não serve para nada; está é se transformando em um fardo. Continua empenhado em ir para a marina para pegar o barco para ir para qualquer outro lugar. O problema é que ele não se atreve a ir sozinho. E está me enlouquecendo com suas queixas toda hora. E insuportável.
Tentei fazê-lo ver a situação real, mas ele não ouve. As estradas que não estiverem obstruídas por essas coisas devem estar bloqueadas por veículos abandonados, acidentes, pontes caídas etc. E absurdo cogitar a possibilidade de viajar como se estivéssemos em uma situação normal. Pode acontecer qualquer imprevisto, e então as consequências podem ser fatais. Precisamos planejar as coisas detalhadamente antes se quisermos sobreviver.
Esta noite me atrevi a subir ao sótão de minha casa. E um pequeno espaço sob o telhado, pouco mais que um armário grande, mas fazia dois anos que eu não subia lá. Está cheio de caixas com todas as coisas de minha mulher. Desde o dia depois de seu enterro, quando minha irmã e o namorado guardaram tudo isso aqui, até três semanas, quando veio o técnico instalar os painéis solares, ninguém subiu pela escada dobrável até este espaço. O pó cobre tudo. Por sobre o intenso cheiro de fechado ainda posso perceber um leve aroma familiar. E o perfume dela, que ficou impregnado em sua roupa para sempre. Meu coração se apertou e me joguei em um velho sofá enquanto fios de lágrimas corriam por meu rosto. Chorei como um bebê durante horas, segurando uma velha blusa dela. Tenho tanta saudade! Oh, Deus, pelo menos ela não teve de ver tudo isso...
Depois de um tempo, me recompus um pouco. Ainda dói, mas pude chorar um pouco e desabafar. A tensão acumulada nesses dias é brutal. Talvez me refugiar aqui em cima durante essas poucas horas tenha sido uma decisão sensata. Teve um efeito balsâmico sobre mim.
Observei as pegadas que o técnico deixou no pó quando veio instalar o equipamento. Vão da portinhola até bem embaixo da clarabóia que dá acesso ao telhado. Debaixo dela, ainda posso ver alguns restos de fios e um pequeno saquinho plástico que em algum momento devia ter parafusos ou algo do tipo. São os restos da instalação, testemunhos mudos de que alguém esteve ali fazendo seu trabalho há, o que parece, um milhão de anos. Pergunto-me o que terá sido desse homem. Imagino que deve estar dando voltas por aí, como mais uma coisa dessas.
Ao abrir a clarabóia, um ar gelado entrou no sótão. Segurando nas bordas, ergui-me com extremo cuidado (só o que me faltava era quebrar uma perna!) e subi no telhado. Bem ao lado da clarabóia há uma pequena superfície lisa, onde dá para sentar. Atrás desse descanso fica o declive do telhado, agora coberto pela superfície iriada dos painéis solares. Bem embaixo de mim, uma queda livre de uns sete metros até o chão, onde posso ver essas coisas amontoadas em frente ao meu portão, incansáveis. Não, definitivamente, cair não seria uma boa opção.
Chegaram outras criaturas novas, atraídas pelo barulho que as coisas da porta fazem. O cadáver da Bacia Quebrada está no meio da calçada, feito um trapo. Do outro, nem sinal; parece que a guarda-chuvada que lhe dei não foi forte o bastante para mandá-lo de volta para o inferno. Uma pena.
Normalmente, daqui se desfrutava uma maravilhosa vista noturna da cidade. Não pude evitar me surpreender ao ver que está totalmente às escuras. Onde normalmente veria milhares de luzes, agora há só a negrura mais absoluta. A eletricidade foi embora definitivamente. E não acredito que pretendam mandar uma equipe para consertar isso. Enquanto acendia um cigarro, refleti sobre o assunto.
Quando tudo isso começou, as pessoas pararam de ir ao trabalho. Os operários das centrais elétricas fizeram o mesmo, de modo que há umas duas semanas essas centrais funcionam sem manutenção, no modo automático. Tentei recordar as explicações que o namorado de uma amiga minha, engenheiro, uma vez me deu. Uma termelétrica (a maioria) que funcione com carvão ou combustível só pode ficar no modo automático por vinte e quatro horas, antes que as caldeiras desliguem por falta de combustível. Uma hidrelétrica ou uma usina eólica, em tese, poderiam aguentar indefinidamente, mas requerem manutenção técnica especializada para reparar as constantes avarias causadas por funcionar vinte e quatro horas por dia. Poderiam aguentar umas duas semanas antes de começar a quebrar por todos os lados. E os itens de reposição, agora, não seriam fáceis de obter. A possibilidade de pensar em uma central nuclear funcionando sozinha, sem manutenção, é apavorante. Chernobil - lembro-me de que disse com um sorriso triste - é o exemplo de uma central nuclear que falha por falta de cuidado.
Quero acreditar que as notícias que deram sobre o desligamento das centrais nucleares são verdadeiras.
Assim, pois, imagino que o país inteiro está às escuras ou prestes a ficar nas próximas horas. A empresa de abastecimento tinha um plano de contingência caso uma central ou duas falhassem, mas a falha de todas quase ao mesmo tempo deve significar o colapso total do sistema. De repente, mandaram-nos de volta para o século XIX. Só que cercados de cadáveres ambulantes e lutando para sobreviver. Que panorama mais fodido.
Apaguei o cigarro e voltei para dentro. Está frio. Ainda preciso vasculhar a mochila do soldado. Espero que tenha valido a pena. Vamos ver o que encontro.