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04

22 de Janeiro 16h30 27º registro: rios de enxofre

Passei a noite toda ouvindo as frequências das Forças de Segurança. A maioria é só coisa sem importância, principalmente informes da situação de check-points, de patrulhas e pouco mais. Mas, de vez em quando, surge um "ponto quente", e então a situação fica completamente descontrolada. Chama poderosamente minha atenção o fato de que, apesar de os meios de comunicação alertarem permanentemente sobre os riscos de distúrbios, estes são só uma mínima fração dos incidentes que ouço pelo rádio. Talvez seja porque moro em uma cidade pequena, mas o número de saqueadores parece muito reduzido.

Do "resto", todavia, há cada vez mais. No início, há dois dias, mal havia referências a eles, mas agora parecem estar aumentando. Estou me referindo aos incidentes protagonizados por, como dizem os militares na radiofreqüência, "essas coisas".

Pelo visto, há apenas quarenta e oito horas esses casos não ocorriam em Pontevedra. O que começou como um gotejamento, um incidente "dessas coisas" a cada doze horas, mais ou menos, está se transformando rapidamente em uma corrente enorme, com chamados de emergência, avisos histéricos de umas unidades a outras e muito, muito movimento de policiais e soldados que parecem incapazes de controlar a situação. Não sei a que se referem quando falam de "essas coisas". São os infectados pelo vírus? Já se sabe que os infectados têm um comportamento extremamente agressivo, mas, então, por que os chamam de "essas coisas", e não de infectados? O que isso quer dizer exatamente?

Há algumas horas, as Forças de Segurança de Pontevedra receberam ordens de restringir seu âmbito de atuação ao centro urbano. As áreas rurais do entorno da cidade devem ser evacuadas. Depois de alguns minutos ouvindo isso pela frequência militar, a Localia, tevê local, mostrou um capitão da Guarda Civil com uniforme de combate do exército lendo um comunicado do general no comando da província, ordenando essa evacuação. Acho que estamos sitiados.

Há apenas uma hora ouvi pela rádio UHF um chamado a uma patrulha. Informaram de um incidente em uma rua e pediram que fossem investigar. A patrulha (acho que de policiais nacionais, pelo jeito de falar) respondeu que estava indo. Não ouvi mais nada dessa patrulha desde então. Mas apenas quinze minutos depois ouvi outro chamado, dessa vez para as tropas da Brilat, para que fossem urgentemente àquele mesmo endereço. A merda é que esse endereço fica a apenas um quilômetro de casa. E eu poderia jurar que ouvi dois tiros. E mais nada. Seja o que for que tenha acontecido nesse lugar, só deram dois tiros.

De modo geral, as coisas parecem estar uma merda. Pelo que posso deduzir de tudo que dizem a televisão, o rádio, as frequências militares e a internet, a situação está degringolando. Os Corpos de Segurança parecem estar sobrecarregados por conta dos incidentes, que parecem ter disparado nas últimas vinte e quatro horas, aumentando em progressão geométrica. Há baixas policiais e militares. E em algumas unidades, principalmente as formadas por policiais municipais, começa a haver deserções. Alguma coisa tem de estar muito errada.

Há um rumor insidioso que começa a me preocupar. De todas as teorias delirantes que se repetem sem parar pela rede nesses dias, existe uma que está crescendo e que parece se consolidar. Diz que os doentes estão em uma espécie de animação suspensa ou reanimados em um estado próximo à morte ou algo assim. Não falta quem afirme diretamente que estão mortos, mas, ainda assim, andam. Ah, claro.

Ou não. Nas últimas horas têm acontecido tantas coisas estranhas que não sei o que pensar.

22 de janeiro 19h59 28º registro

Foi há apenas alguns minutos. Um BTR, veículo blindado do exército, e um caminhão de transporte vazio acabaram de parar bem no caminho de entrada para as duas curtas ruas onde fica minha casa. Desceram alguns soldados e começaram a esmurrar as portas, uma por uma. Como eu estava na cozinha ouvindo a rádio UHF, as luzes da frente de minha casa estavam apagadas.

Quando bateram em minha porta, não me mexi. Peguei o gato no colo e esperei um instante em silêncio, até que quem quer que estivesse na porta se mandasse. Mas precisava ver o que estava acontecendo. Fui discretamente até a janela do andar de cima, a única da qual se vê a rua. Vi a mulher do meu vizinho médico, aquele que está desaparecido há vários dias, sair com as duas filhas e umas malas, e os soldados a ajudavam a entrar no caminhão. Fizeram o mesmo com vários moradores da rua. Levavam-nos para a área segura do centro da cidade, um setor de ruas perfeitamente isolado e protegido, em tese.

Com um rugido, os caminhões partiram rumo ao centro. Antes de entrar em seu veículo, um soldado pintou um enorme xis vermelho no asfalto do cruzamento. Depois disso, o caminhão virou a esquina e desapareceu. É tamanho o silêncio na noite que pude ouvir o som do pequeno comboio durante um tempo. Imagino que ainda tinham muito mais paradas para fazer nessa noite.

Agora, a rua permanece em silêncio e às escuras. Todas as casas devem estar vazias, e se ainda houver alguém em casa, como eu, não parece ter a menor intenção de dar sinal de vida. Sentei-me novamente na cozinha, com a luz do exaustor como única iluminação, e fiquei pensando. É evidente que estão evacuando a região. Ou melhor, JÁ evacuaram a região.

Portanto, imagino que, a partir de agora, qualquer coisa pode acontecer aqui.

23 de janeiro 10h05 29º registro

Já amanheceu. A noite foi muito, muito longa. Poucas horas depois de o comboio de evacuação partir, tive plena noção da dimensão da minha decisão. Estou sozinho. Ninguém sabe que estou aqui. Estou em uma zona evacuada. Terra de ninguém.

Após um primeiro momento de bloqueio, tive um arroubo de atividade febril. Peguei os pontaletes de madeira e reforcei o portão principal. É uma estupidez, evidentemente, porque cedo ou tarde terei de sair por esse mesmo portão, mas o simples fato de fazer isso me permitia manter a mente ocupada e me sentir mais seguro. Depois, fiz um pequeno balanço da situação. Tenho comida para umas três semanas, se não me importar em repetir o menu de congelados até enjoar. Tenho uns vinte e cinco litros de água engarrafada e, por ora, a pressão da água corrente não parece ter diminuído. No meu caso, com os painéis, eletricidade não é problema, e economizando no consumo posso ter autonomia quase plena. Acho que não será difícil economizar no consumo. Não pretendo dar nenhuma festa nos próximos dias.

Já o gás é um problema. Meu fogão é misto, tem duas placas vitro-cerâmicas e dois queimadores de gás, e as cerâmicas têm um consumo elétrico impressionantemente alto. Por enquanto, tenho gás, mas não sei quanto tempo esta situação pode durar. Imagino que cedo ou tarde vão cortar o fornecimento das zonas evacuadas, para que não haja risco de explosões.

O balanço de meu arsenal é desolador. Após revistar criteriosamente a casa de cima a baixo, reuni todas as minhas "armas" em cima da mesa da cozinha: um arpão de pesca submarina com sete virotes de aço, uma faca de cortar presunto cru e uma machadinha de cortar lenha no quintal precisando afiar. Maravilha. Peguei minha arma a priori mais perigosa, o arpão. Deixando para lá o fato de nunca ter atirado em nada maior que um congro, usá-lo representa uma série de problemas. Levo aproximadamente uns vinte, trinta segundos para montado de novo após atirar, e seu alcance é relativamente curto, uns dez metros. Além do mais, a confiabilidade é relativa a certa distância. Afinal de contas, não é uma arma de precisão, é um equipamento criado para acertar polvos à queima-roupa. Se surgirem bandos de salteadores, estou fodido. Sem dúvida, minha melhor opção é tentar passar despercebido, por enquanto.

O telefone tocou de repente e meu coração quase saiu pela boca. Não toca há dias, e havia me esquecido totalmente dele. Hesitei por um instante se atenderia ou não, mas o desejo de ouvir uma voz humana foi maior que a prudência, de modo que atendi.

Eram meus pais. A sensação de alívio foi tão grande que quase desmoronei.

Chorei em silêncio enquanto ouvia a voz de minha mãe. Estão bem, na aldeia natal de meu pai, com alguns vizinhos, e me pedem encarecidamente que vá para lá com eles. Há três ou quatro dias isso deixou de ser uma opção viável, e explico isso a meus pais. Estou mais seguro aqui que percorrendo cem quilômetros de sabe Deus que estradas, com que controles pelo caminho e com que grupos de delinquentes soltos por aí. Além do mais, Lúculo não gosta do campo, digo à minha mãe tentando diminuir a gravidade do assunto. Ela está realmente preocupada. Minha irmã conseguiu sair de Barcelona antes que isolassem as cidades e decretassem a lei marcial, segundo ela mesma lhe contou por telefone, mas minha mãe não sabe onde está neste momento. A última notícia é que estavam indo para a fazenda de Roger.

Do resto de minha família não tenho notícias. Imagino que a maioria deve estar em alguma área segura, como 80% da população do país. O ser humano é gregário por natureza e tende a se agrupar em situações de perigo. Só uns poucos inconscientes não seguem essa pauta. Imagino que isso me põe do lado dos inconscientes. Com um beijo eu me despeço dos meus pais, prometendo ligar pelo menos uma vez por semana, se a linha permitir (minha mãe estava há três dias tentando falar comigo).

Depois disso, fiquei um pouco mais calmo. Dei vazão à tensão emocional que vinha acumulando todos esses dias. Sinto-me mais frio, a cabeça mais clara. De modo que comecei a pensar em coisas práticas a fazer.

Em primeiro lugar, a informação. A televisão está desaparecendo. De oitenta canais que eu tinha, desapareceram quase todos. Só restam a La Primera (que também transmite seu sinal pelo canal que há alguns dias era do A 2), a Telecinco e a Antena 3, com uma programação reduzida ao mínimo essencial, basicamente filmes (sem nenhum tipo de intervalo), séries enlatadas e a cada quarenta e cinco minutos um mini-noticiário que em resumo consiste em indicar quais são as áreas seguras e a melhor maneira de chegar a elas. Também repetem insistentemente que em nenhuma, nenhuma hipótese se deve tentar contato com os infectados, e, no caso de ser atacados por eles, evitar que mordam ou arranhem.

Um militar com aspecto cansado disse que não podem garantir a segurança de quem permanecer fora das áreas seguras e, no caso de sermos atacados, que tentemos estourar a cabeça do atacante. "Com um pau, com um facão, com uma bala, como for, mas tentem detê-los arrebentando a cabeça deles. Outra coisa não adianta."

Fiquei espantado com uma mensagem como essa, mas as coisas já estão fora de controle há muito tempo, e nada mais me surpreende demais. De qualquer maneira, parece que a censura informativa está afrouxando pouco a pouco, acho que é porque já não há nada mais a esconder, ou quase nada. Já está claro que o problema dos bandos de salteadores é minoritário em comparação com o problema principal dos infectados, que atuam com extrema violência.

Mas não há unanimidade quanto ao verdadeiro estado físico desses infectados. Há quem diga que estão saudáveis, só alienados; outros afirmam que estão à beira da morte, e cada vez mais gente garante que estão mortos, por mais incrível que isso possa parecer. Eu, por ora, não vi nenhum, mas imagino que isso deve mudar nas próximas horas. Por enquanto, vou resistir aqui, e irei agindo à medida que as coisas forem acontecendo. Como isso é a coisa mais parecida a um plano de ação que tenho, estou mais tranquilo.

A internet também está caindo aos pedaços. Faz horas que o Google e o Yahoo pararam de funcionar. Imagino que os servidores que os mantêm devem ter ficado sem fornecimento de energia elétrica. A mesma coisa acontece com muitos sites. De mais de cem contatos que tenho nos favoritos, só duas dúzias continuam ativas, quase todos radicados na Espanha, onde parece que ainda há eletricidade. Isso possivelmente não vai durar muito, em vista do que aconteceu no norte da Europa, onde a epidemia chegou antes.

As radiofreqüências militares crepitam constantemente informando sobre mais contatos e enfrentamentos com "esses cornos", como dizem. Mas parecem ter muitas baixas. As cinquenta e duas forças originais tiveram de ser reagrupadas em quarenta. Os ataques estão se concentrando em volta das áreas seguras. Informam que dois desses pontos, um em Toledo e outro em Alicante, caíram, atacados por hordas de infectados. Dezenas de milhares de pessoas devem ter perecido. Receio que outras dezenas de milhares vão perecer nas próximas horas. E não pretendo estar entre elas. Juro pelos meus culhões que não.

24 de janeiro 3h03 30º registro

Estou sentado, escrevendo isto, enquanto um fio de suor desliza lentamente por minhas costas. A descarga de adrenalina que ainda percorre meu corpo faz minhas mãos tremerem. Agora, sim, estou angustiado.

No meio da tarde tive consciência de que se não fizesse alguma coisa teria uma síncope. Estava havia quase vinte e quatro horas seguidas trancado em casa, andando de um lado para o outro feito um animal enjaulado. Precisava fazer alguma coisa. Precisava sair. Precisava ver. Precisava saber. Lúculo passou o dia todo me observando atônito. Ele sabe que está acontecendo alguma coisa, isso é certeza, mas não sei até que ponto sua consciência felina é realmente capaz de abarcar a dimensão da situação. O mundo está indo para o caralho rapidamente, se é que já não foi. Não é uma brincadeira. Está mesmo acontecendo e vai pegar todos nós, inevitavelmente.

Subi ao meu quarto e calcei umas grossas botas de montanhismo, pesadas, mas flexíveis, e me agasalhei bem. As noites de inverno na Galícia são úmidas e frias. Já havia anoitecido e o toque de recolher já estava em vigor havia horas. Eu não estava nem aí. Ia sair. Francamente, duvidava muito que ao virar a esquina encontrasse um policial. Quarenta minutos antes havia ouvido o som de uma série de veículos circulando pela rua principal que dá para a minha. Da janela do andar de cima vi passar uma coleção díspar de carros-patrulha, caminhões do exército e blindados leves. Estavam lotados de soldados. Pareciam exaustos, e alguns, assustados. Iam em direção ao centro, para a área segura.

Não é preciso ser muito esperto para perceber quem eram esses soldados - eram a última linha de defesa contra os infectados. Aguentaram na posição até que a evacuação dos civis para a área segura se completasse. Agora eles se retiram. Isso significa que não há mais nada entre os infectados e a área segura. Deviam estar alcançando nossos calcanhares. Precisava me apressar.

Afastei os pontaletes que reforçavam o portão e pus cautelosamente a cabeça para fora. Deserta, como esteve nas últimas horas. Restos de jornais e pedaços de plástico e lixo rolavam pelo asfalto. No meio da rua repousava uma blusa bege abandonada, perdida por um de meus vizinhos na evacuação apressada. Talvez essa tenha sido a imagem que mais me impressionou. Foram embora de verdade. Todos.

Entrei no carro, estacionado bem em frente ao portão. Ao me sentar ao volante, lembrei de novo que ainda não havia trocado o óleo. Também lembrei, de repente, que o galão continuava no porta-malas, onde o deixara no dia em que o comprara. Merda! Esse não era o momento para dar uma de mecânico, de modo que liguei o carro, confiando que ele não me deixaria na mão.

O som do motor soou como um tiro de canhão no silêncio sepulcral da noite. Tive a sensação de que fora ouvido a quilômetros de distância. Não estava nem aí. Em hipótese alguma pretendia sair a pé. Peguei a rua principal e rumei para o centro, para o posto de combustível que fica no meio do caminho, a mais ou menos um quilômetro de casa e a dois de onde imagino que começa a área segura. Fica em plena zona evacuada, mas acho que ainda deve haver alguém lá. Ao fazer o inventário de tudo o que tenho em casa, percebi que não tenho nem um mapa rodoviário decente. Se em algum momento tiver de fugir, será imprescindível ter um mapa. Tinha de encontrar pelo menos dois guias Campsa em algum posto de combustível.

O caminho se mostrou impressionante. Silêncio absoluto e nem um único ser vivo à vista. Eu poderia ser, tranquilamente, a última pessoa sobre a face da Terra.

Ao chegar ao posto, soltei um suspiro de alívio. As luzes estavam acesas. Parecia aberto. Parei ao lado da bomba e entrei com cautela. Não tenho vergonha de dizer que estava me cagando de medo. Não havia ninguém à vista, nem um cliente, nem um empregado. Onde estava o maldito frentista? A caixa registradora estava ali, ao meu alcance. Eu poderia ter passado a mão na grana toda. Peguei dois guias rodoviários e todos os chocolates que cabiam em meus bolsos. Também peguei duas revistas de informação. Eram edições de duas semanas atrás. Na capa de cada uma, li coisas que agora me parecem absolutamente irreais. Tudo nesse caos parece tão absurdo... Quando fui deixar o dinheiro em cima do balcão, julguei ouvir um barulho. Meu sangue gelou nas veias. Havia alguém lá fora. Ou algo. Caramba!

Tremendo, peguei umas correntes para neve de uma gôndola. Como arma não eram grande coisa, mas, pelo menos, tinha algo sólido nas mãos. Ao sair, vi um homem a uns trinta metros do posto. Ele estava muito longe e estava muito escuro, de modo que não distingui detalhes, mas parecia cambalear. Não estava interessado em esperar para ver. Entrei no carro correndo e voltei para casa. Olhei pelo retrovisor e tive a sensação de que aquele sujeito estava tentando seguir o carro, com andar vacilante. Que se foda. Não estava a fim de conhecê-lo.

Em pouco tempo estava em casa de novo, com o portão convenientemente fechado e reforçado. Minhas pernas ainda tremem. Foi uma saída de não mais de um quilômetro e de menos de vinte minutos, mas me sinto como se houvesse voltado do Vietnã. Isso tudo é realmente foda. Achei que fosse me sentir como um herói de um filme de ação, mas na verdade me sinto como uma presa que não sabe onde estão seus predadores. Liguei a tevê. Só restam dois canais nacionais, o Antena 3 e a rede pública, Televisión Española. Esta última tem o escudo real na tela e de fundo se ouvem marchas militares. Muito tranqüilizador. O resto, estática. No satélite só resta a CNN, mas com imagens gravadas de alguns dias e a vinheta na parte inferior da tela informando: Atlanta caiu. E Denver. E Utah. E Baltimore. E Cedar Creek. E... Caralho, a lista é interminável. "Não se dirijam aos safe points; procurem refúgios seguros", é a mensagem. Pergunto-me se aqui está acontecendo a mesma coisa. São milhões de pessoas refugiadas nas áreas seguras. Milhões de pessoas que serão atacadas por esses "infectados" dentro em breve.

A internet quase não existe. A maioria dos servidores caiu. De todos os buscadores da rede, o único que parece continuar funcionando é o Alexa. Pergunto-me como, diabos, alimentam esse servidor. Baterias de emergência, desconfio. Não podem durar muito, é questão de dias, ou de horas. Algumas pessoas deixam mensagens neste blog. Não sei como o encontraram, mas as histórias que contam me enchem de terror. Pelo que dizem, é um dos poucos sites que ainda funcionam na rede. Meu provedor é a cabo, e a sede fica em La Coruña. Pergunto-me quanto tempo vai aguentar antes de ir para o caralho.

Pergunto-me: quanto tudo vai aguentar antes de ir para o caralho? Vão chegar aqui. E questão de horas.

24 de janeiro 20h56 31º registro

Hoje a luz foi embora. Passavam apenas uns minutos das seis da tarde quando as luzes piscaram e se apagaram definitivamente. No início fiquei sentado estupidamente na cozinha, que é onde passo mais tempo ultimamente, ouvindo as transmissões militares e vendo os dois últimos canais de televisão. Dali a pouco, quando meus olhos se acostumaram à escuridão, reagi. Peguei uma lanterna da gaveta do armário e desci ao porão, para conectar as filas de baterias acumuladoras. Essas pequenas bestas negras de quinze quilos cada uma estavam apoiadas no chão do porão, agrupadas em duas linhas de doze. Quando ia conectar o switch no quadro elétrico, fiquei paralisado. Antes de ligar qualquer coisa, precisava me certificar de que todas as luzes da frente da casa estavam apagadas. A última coisa que me interessa é chamar a atenção com a única casa iluminada na rua inteira.

Depois de me certificar, liguei os acumuladores. A sensação de segurança que o suave resplendor das lâmpadas proporciona ao voltar à vida foi fantástica, indescritível. Nunca pensei que poderia chegar a ter tanto medo do escuro. Bem, nunca pensei que tudo isso pudesse acontecer.

Tenho um grave problema. Cortaram o gás, ou o encanamento quebrou em algum ponto, não sei. A questão é que não tenho gás. E isso significa que o aquecimento não funciona, o que, com uma temperatura externa de três graus Celsius, não é nenhuma brincadeira. Estou bem agasalhado, mas ainda assim sinto o frio entrando nos meus ossos. Nuvenzinhas de vapor saem da minha boca quando respiro. Lúculo parece indiferente a essa temperatura, mas, afinal de contas, ele é um gato persa. Além do pelo longo, tem uma generosa camada de gordura forrando todo o corpo. Anos de vida boa têm de servir para alguma coisa. Uma figura, ele.

Fui para o jardim dos fundos para fumar e pensar um pouco. Sentado nos degraus, não conseguia parar de pensar nos acontecimentos das últimas horas, enquanto contemplava, pensativo, os muros da casa. Tudo parece estar se acelerando. Em certa medida, tudo isso é como uma avalanche: primeiro são só umas pedrinhas, depois umas maiores, depois umas rochas, e, antes que se perceba, toda a maldita montanha está deslizando para cima de você a toda velocidade. Caramba!

E, ainda por cima, estou cada vez mais isolado. A Antena 3 morreu, parou de transmitir por volta do meio-dia. No meio de um capítulo repetido de Um maluco no pedaço, o sinal desapareceu. Zás. De repente, como se alguém houvesse tirado a tomada da parede. Não tenho nem ideia do que pode ter acontecido. Na Televisión Española continua o escudo da Casa Real de fundo de tela e marchas militares sem parar. Agora, os noticiários são a cada hora e meia, mas mudaram de conteúdo. Não pedem mais às pessoas que se dirijam às áreas seguras, na verdade até avisam que em alguns casos, como Almería, Cádiz, Badajoz ou Mallorca, isso é altamente desaconselhável.

Essas áreas seguras se mostraram uma idéia lógica (concentrar toda a população para defendê-la em uns poucos pontos), mas funesta. Os infectados parecem se sentir atraídos pela presença humana. Ondas deles, pois já devem ser milhões em todo o país, cercam as cidades onde estão as áreas e se limitam a esmagar as defesas com seu número. Depois, é o caos.

Agora, é evidente que não ter ido para a área segura foi uma boa decisão, embora inconsciente. Do jeito que as coisas estão, acho que tenho mais probabilidades de sobreviver ao caos se me mantiver à margem do que se me deixar manipular, como o restante da população. A primeira sensação de alívio que senti por ter tomado a decisão certa foi seguida imediatamente por um soco no estômago.

Meus pais. Minha irmã. Todos os meus amigos e conhecidos. Rober e sua filha, com quem estive há apenas dois dias, enquanto preparavam despreocupadamente as malas. Todas as pessoas que amo e conheço, ou pelo menos a maior parte, devem estar distribuídas por meia dúzia dessas malditas áreas seguras. Não sei o que é pior: saber que estão condenadas ou ter consciência de que não posso fazer absolutamente nada para evitar isso. Um gosto amargo de bile subiu pela minha garganta. Estou sufocado pela angústia de uma maneira que não posso descrever, mas, incrivelmente, não me sinto capaz de derramar uma lágrima sequer. A situação é tão avassaladora que não dá nem chance para lágrimas.

Por incrível que possa parecer, agora já se admite abertamente por todos os lados que os infectados são cadáveres que, de alguma maneira, voltaram à vida. O vírus, ou o que, diabos, for que os russos deixaram escapar no Daguestão, provoca uma falha total nas defesas do indivíduo, infecções múltiplas, hemorragias e, poucas horas depois, a morte.

Em um prazo não muito claro, o indivíduo morto torna a se levantar, mas já não mais o que era: é um "deles". Ataca todo ser vivo que cruzar no caminho, não reconhece ninguém, não parece se comunicar de nenhuma forma e também não parece ter objetivos ou critérios fixos. Simplesmente ataca. Estão citando até mesmo casos de canibalismo entre eles, e, pelo visto, a única maneira de exterminá-los é pela destruição do cérebro.

Sou um sujeito racional e sensato, e deveria estar rolando de rir com essa teoria de maluco, digna de um filme de quinta, mas não consigo. Se aprendi algo nos últimos dias é que tudo é possível. E, por mais imensamente absurdo que pareça, acho que é verdade.

Os mortos voltam a caminhar sobre a face da Terra e querem acabar conosco. É foda.

Mergulhado em tão alegres pensamentos, julguei ouvir um barulho do outro lado do muro. Levantei-me como um raio, completamente aterrorizado. Parecia alguém arrastando algo pesado. Eu precisava saber o que era. Com cuidado, peguei a escada que uso para limpar o muro de ervas daninhas e musgo e a apoiei silenciosamente. A seguir, subi, procurando evitar que chiasse, e coloquei apenas os olhos por cima da borda do muro.

Vi meu vizinho suando, arrastando uma série de pontaletes de madeira como os que me deu há uns dias. Completamente concentrado na tarefa, entrou pela varanda inconclusa com a madeira. Pouco depois, ouvi o som de marteladas. Quando saiu novamente, chamei-o. Dessa vez, quem quase morreu de susto foi ele.

E um sujeito de meia-idade, corpulento, um pouco calvo. Chama-se Miguel e acho que tem uma empresa de distribuição de material médico. É divorciado, mora sozinho com um cão psicótico que late para tudo que se mexe e, segundo ele, "nega-se a dividir o espaço com toda essa multidão da área segura". Acha que estará mais seguro em casa, e, em certa medida, não lhe falta razão. Agora está trancando portas e janelas, para o caso de essas coisas conseguirem passar pelo portão de ferro. Diz que tem um barco na marina e que, se as coisas ficarem feias, podemos fugir nele. Eu disse que sim, mas no fundo acho isso uma estupidez. Conheço o barco dele; é um cinco metros atracado perto de onde eu deixo minha Zodiac, e com aquilo não poderíamos nem sair da enseada, isso supondo que conseguiríamos chegar inteiros ao porto. Combinamos de nos falar dentro de algumas horas e nos despedimos.

Já dentro de casa, não posso evitar respirar aliviado. Não estou sozinho, há outra pessoa perto. Isso me lembra que nem ele nem eu estamos sozinhos. Tem de haver algo mais, que já não são pessoas, e que devem estar se aproximando cada vez mais.

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