03
19 de janeiro 11h08 21º registro: a estupidez do gênero humano
Não sou católico praticante, mas os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas parecem um castigo divino por algum gigantesco pecado coletivo da raça humana. Ou um enorme monumento à sua estupidez, dependendo do ponto de vista.
O dia de ontem foi longo. Pela manhã, tomei café com a notícia de que os distúrbios se generalizaram em nível global. Parece haver um padrão. Primeiro, o governo afirma que não há motivo para preocupação. A seguir, decreta-se quarentena em algumas áreas. Ato contínuo, desata-se o pânico e explodem distúrbios e saques. Depois, normalmente, declara-se a lei marcial. Depois disso, mais distúrbios, mas parecem ser de outro tipo, estranhos, com muita censura e muito pouca informação, mais localizados e, pelo que parece, sem saques. E, finalmente, o silêncio.
Essa é a regra, mas também há exceções. Por exemplo, no Chile, na manhã de ontem, um general, um tal de Cheyre, deu um golpe de Estado aproveitando a lei marcial. Umas horas depois, uns ônibus cheios de refugiados procedentes da Bolívia foram metralhados na fronteira quando tentavam evitar um controle. Em represália, o governo boliviano começou a bombardear a fronteira chilena até que a aviação desse país reduziu os canhões bolivianos a sucata. Isso é coisa de maluco. Estamos à beira do abismo e ninguém tem uma idéia melhor que começar uma guerra. A propósito, muito próprio do gênero humano.
A notícia do dia: a chegada da Comissão de Acompanhamento da OMS, ontem à tarde. Foi transmitida para o mundo todo. Dizem que desde a chegada do homem à Lua nunca se viu nada assim (e pode ser que nunca se torne a ver). Todas as redes do planeta transmitindo a mesma imagem... assombroso.
Uma comissão de virologistas apareceu diante das câmeras. Sérios, com um ar circunspecto, declararam que estamos diante de uma espécie mutada de um filovírus, transmitido pelo sangue e pelos fluidos (sêmen, saliva etc.). Ainda não sabem se é transmitido por via aérea. Seus principais sintomas são febre, desorientação, palidez e, mais tarde, delírio e agressividade extrema. Avisam que quem vir alguém com esses sintomas deve avisar as forças de segurança e não tentar estabelecer contato com o afetado de jeito nenhum, mesmo em se tratando de um parente ou um amigo.
Isso é tudo. Mas o que eles estão pensando? Só isso? Que negócio é esse de avisar as "forças de segurança"? Não seria melhor avisar uma ambulância? Porque, afinal de contas, trata-se de doentes... não é? Vão curá-los a tiros ou o quê? E por que essa sensação de que estão escondendo alguma coisa? Acho que não disseram tudo. A internet é um fervedouro de rumores, um mais absurdo que o outro. Invasão alienígena, trematódeos parasitas, mutantes, mortos-vivos, lavagens cerebrais coletivas... há para todos os gostos. Mas precisamos ser racionais, caramba! E uma doença: ou você a contrai ou não, e, se a contrair, ferrou. Bum. Acabou. Ainda assim, tenho certeza de que deve haver algo mais, algo realmente horrível, porque, senão, para que essa censura sem precedentes? É absurdo!
Estou muito preocupado com minha irmã; não consigo falar com ela desde sábado. As redes de telefonia móvel estão saturadas e em alguns pontos começam a falhar. Depois do desaparecimento de várias brigadas de manutenção por todo o país, os técnicos se negam a se deslocar sem escolta para fazer reparos. As empresas privadas de segurança estão sobrecarregadas, e a polícia, o exército e a Guarda Civil têm de se multiplicar pela Espanha inteira em patrulhas, quarentenas, controles etc. Ainda assim, as notícias de assassinatos e desaparecimentos se multiplicam. De fato, já não são mais notícia.
Nos Estados Unidos, o presidente apareceu na televisão. Está em um refúgio presidencial. Isso é mau sinal. Dirigiu um discurso a todo o país, pedindo que os cidadãos obedeçam às ordens do exército e instando a população a ir ao que chamam de safe zones. Zonas seguras. Seguras contra o quê? Não entendo nada.
Em Jerusalém, o papa, o rabino-mor e os principais muftis muçulmanos realizaram um ato ecumênico. Em qualquer outro momento teria sido comovente, mas não permitiram o acesso de fiéis "por segurança", e a imagem dos religiosos na Esplanada das Mesquitas, cercados por um cordão defensivo de tropas de assalto israelenses, não é exatamente tranquilizadora.
O presidente espanhol apareceu na televisão de novo com o rei. Anunciou a criação de cinquenta e dois Corpos de Segurança, um por província. Integrarão a Polícia Nacional, a Guarda Civil, todas as polícias locais e a polícia autônoma, onde houver uma. Serão dirigidas por generais do Exército de Terra e terão plena autoridade militar em toda a demarcação. O exército os dotará de material, se necessário.
Hoje pela manhã tentei ver meus pais. Levei Lúculo comigo, porque não sabia quanto tempo demoraria para voltar. Deixei-o no banco do passageiro - é o banco DELE (cada vez que alguém senta ali, invariavelmente desce do carro com a roupa cheia de pelo de gato), pois ele não suporta andar naquela gaiolinha de transporte. Dois quilômetros depois dei de cara com um check-point do exército e tive de voltar. Peguei uma estrada secundária, extremamente estreita, que corre pela parte de trás de um bairro da periferia que vai dar na estrada geral, vários quilômetros adiante. Quando achei que estava livre, dei de cara com outro controle, esse da Polícia Local. Caramba! Esses conhecem melhor que ninguém as estradas secundárias. Tentei convencê-los a me deixar passar, mas não adiantou. Estão muito nervosos, diria até que assustados. Normal. Seu trabalho habitual é deter ladrões, regular o trânsito e guinchar carros mal estacionados. Agora, estão à frente de controles, equipados com material do exército, armados com fuzis de assalto HK, e com ordens de atirar em quem desobedecer. Agora estou em casa. Servi um uísque para mim, embora seja de manhã. Ligo de novo a tevê, sem volume, enquanto ouço as transmissões da polícia pelo rádio UHF. Não sei mais o que pensar.
19 de janeiro 18h58 22º registro
Há um helicóptero sobrevoando a área a tarde toda. Além disso, da janela do andar de cima vi dois carros-patrulha passarem pela rua principal. Parecem estar procurando alguma coisa ou alguém. Estão fortemente armados. Um deles até entrou nas duas curtas ruas do nosso condomínio, a Um e a Dois, para dar uma olhada. Passaram a lanterna por todas as fachadas e deram um susto enorme em uma vizinha da casa da esquina, que estava do lado de fora nesse momento.
Fui até a casa do meu vizinho, o médico, para perguntar se estava tudo bem. A mulher dele abriu, com uma expressão bem abatida. Disse que seu marido está há setenta e duas horas seguidas no hospital e que não sabe nada dele desde então.
Entrei em casa e tranquei a porta com duas voltas de chave. Liguei de novo o rádio de ondas curtas para ouvir a frequência da polícia. Parecem estar procurando alguém desesperadamente. Essa frequência está cheia de mensagens, a maioria anódina, do tipo "Patrulha 27, zona 15 resultado negativo, passamos à zona 16". Algumas são simpáticas, como um check-point da Guarda Civil encomendando umas pizzas. A loucura parece ter explodido de repente, quando uma patrulha informou de um "ponto quente". Quem sabe o que isso significa...
Ao cabo de dez minutos, eu podia jurar ter ouvido tiros. E não muito longe.
Passaram-se vinte dias desde que tudo começou. Hoje ouvi tiros em minha cidade. Seja o que for, está se aproximando.
1h40 23º registro
Uma e meia da manhã. Eu estava cochilando na sala, em frente à tevê, quando ouvi uma freada lá fora. Subi correndo para o andar de cima, de onde posso ver a rua principal. Um carro-patrulha da Guarda Civil parou bem na entrada da nossa rua. Dois guardas com fuzis de assalto saíram dele e passaram correndo em frente à minha casa para o fundo da rua, que dá para um terreno. Depois desse terreno há umas casas, e, depois delas, uma estrada. Não sei aonde estão indo.
Voltaram logo, acompanhados de um pelotão de soldados que vinham em direção contrária. Estão nervosos e um deles parece estar com uma manga manchada de sangue ou de alguma substância escura. Passaram em silêncio e desapareceram pelo outro lado da rua.
Ouvi de novo. Não poderia jurar, mas acho que são tiros. E pareceram mais perto que antes.
11h22 24º registro
Fui até o centro para comprar jornal. Não há jornais. A van da distribuição não veio, e, se houvesse conseguido chegar, não haveria nada para distribuir. Ao voltar para casa, reparei que a maior parte das lojas estava fechada. Consegui encontrar uma padaria pequena onde comprar um pouco de pão fresco e a atendente sussurrou, com ar preocupado, que ontem à noite ouviu tiros bem do lado de sua casa e algo que pareciam "gemidos". Disse que, quando foi olhar pela janela, só conseguiu ver um caminhão do exército saindo a toda velocidade.
Vi a marca da freada de ontem, em frente à entrada da minha rua. Agora sei que não foi sonho.
11h33 25º registro
Estou sentado no jardim, aproveitando o sol de inverno, e observo Lúculo, que contempla extasiado as evoluções de uma lagartixa no muro. O helicóptero torna a sobrevoar a área, incansável. O rádio informa que o governo vai criar áreas seguras nas cidades, onde pretendem concentrar a população. Ao que parece, por volta de 80% dos habitantes das cidades não conseguiram abandoná-las (ou não quiseram). Áreas seguras. Vão se ferrar!
Toda hora repetem que em hipótese alguma se deve tentar manter contato com qualquer pessoa que apresente um comportamento errático, estranho ou desorientado, ou que dê mostras de violência, mesmo que seja um conhecido ou um parente. Agora, parece amplamente aceito que os doentes são perigosos para os saudáveis.
A Antena 3 parou de transmitir sua programação habitual. Transmite filmes e séries gravadas, e a cada quarenta e cinco minutos param para passar um noticiário. Pelo jeito da coisa, eu poderia jurar que Matias Prats está há vários dias morando no estúdio.
21 de janeiro 00h20 26º registro
Na sexta-feira à tarde fui burlando os controles para chegar à casa de Rober, um grande amigo de infância. Rober é um sujeito tranquilo, sossegado e metódico. Trabalha como assessor contábil de uma empresa de importação. E casado há dois anos e tem uma menina linda de apenas alguns meses. Quando cheguei à casa dele, sua mulher estava preparando as malas e Rober contemplava sombriamente a televisão. Disse que iam para a área segura que os militares organizaram no centro da cidade. Ainda não sabem onde se alojarão nem o que farão ali, nem nada do tipo, mas, ainda assim, vão para lá.
Eu entendo. Sou um sujeito solitário que mora com um gato, mas ele tem uma família para cuidar. Boa sorte, Rober. Acho que todos nós precisamos.
De volta a casa, parei um pouquinho na casa do vizinho que fica bem atrás da minha, fundos com fundos. Antes de tudo isso começar, a casa dele estava em obras, construindo uma varanda de madeira nos fundos. O cheiro de cola e a serragem voavam por cima do muro de trás que separa nossos jardins, para deleite de Lúculo, que era capaz de passar horas hipnotizado contemplando o pozinho de madeira girando em um raio de luz. Agora, faz dias que os carpinteiros não aparecem. Embora não tenha muita intimidade com ele, eu me atrevi a lhe pedir duas fortes vigas de madeira, para reforçar o portão da frente. Se os saqueadores aparecerem por aqui, terão de pular um muro de três metros ou derrubar um portão de ferro fundido reforçado com dois pontaletes de madeira cravados no chão.
Acho que, acima de tudo, faço isso para manter a mente ocupada e não pensar no que está acontecendo. Caramba!
Pelos canais oficiais chegam apenas notícias do exterior. As pessoas também não parecem se importar muito. E como se cada nação se voltasse para si mesma para sobreviver. Resumindo, o pouco que sei é que há dias não há notícias de nenhum tipo da Rússia. Nem pela internet. Zero absoluto. No norte da Europa há alguns blogs ativos, mas, infelizmente, não sei sueco, nem alemão, nem polonês, de modo que não posso saber que, diabos, estão contando. Observo que abundam as letras maiúsculas e os pontos de exclamação, de modo que deduzo que estão nervosos. Ou surpresos. Ou assustados. Quem sabe?
Nos Estados Unidos, pelo que se vê na CNN (que é a única rede norte-americana que ainda recebo por satélite, já que a CBS e a ABC só mostram uma tela azul com o logo da rede e a Fox News só tem estática), a população está sendo concentrada nas safe zones do centro das cidades. Pelo visto, fora delas não garantem a segurança contra "salteadores".
Pela internet corre o rumor de que a safe zone de San Diego, e possivelmente de muitas outras cidades, foi atacada por grupos de assaltantes e que houve massacres incríveis. Pelo que vejo, a vida hoje em dia é muito barata no mundo todo. Por estes dias, se procurarmos "dead" no Google, aparecem dezenas de milhões de entradas...
Na Espanha, a situação não é melhor. Estão organizando áreas seguras no centro das cidades com mais de cinquenta mil habitantes. A qualquer hora, em qualquer rádio ou tevê, insistem que a população precisa se concentrar nelas para sua própria segurança. Não pretendo ir. Não permitem levar animais domésticos (lógico, visto que o espaço deve ser bastante reduzido nessas áreas seguras), e eu não pretendo deixar Lúculo nem ferrando. Não que ele seja o melhor dos animais, mas, quando minha mulher morreu, foi Lúculo, com sua presença, que evitou que eu fizesse uma bobagem. Devo isso a ele. Ele é meu companheiro, e não vou abandoná-lo para me enfiar em um gueto superlotado, dividindo espaço com quinze estranhos. De modo que se fodam o governo e as áreas seguras.
O rei voltou a aparecer na televisão, novamente de uniforme, mas dessa vez cercado de generais informando acerca da situação. Pensando bem, há dias não vejo nenhum político na tevê. Parece que os militares estão assumindo o controle. Merda!
A Telecinco só transmite programas enlatados e, como a A3, um noticiário a cada quarenta e cinco minutos. Dizem que é para garantir a segurança dos colaboradores e trabalhadores da casa. Pelo visto, a área onde fica a emissora não é muito segura. Há bandos desses salteadores por lá, conforme explicam.
Os celulares estão mortos. As três principais operadoras suspenderam o serviço e "cederam" sua rede aos Corpos Provinciais de Segurança. Agora, sim, é que vai ser impossível localizar minha irmã. Ela é uma garota esperta, de modo que tenho certeza de que está se virando.
Neste momento estou ouvindo a rádio UHF outra vez; ouço que os militares estão evacuando muita gente para a área segura.
O barulho de tiros esporádicos ao longo do dia foi constante. A civilização está desmoronando.