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02

13 de janeiro 11h10 15º registro

Esta manhã, ao sair do banho, dei dois espirros fenomenais. Normalmente, eu não daria a menor importância a isso, mas, com a psicose que está se espalhando por toda a Espanha, não posso evitar que meu lado hipocondríaco trema de terror. Sera que a epidemia chegou à Galicia? Será que eu me contagiei e esse é o primeiro sintoma, ou é só um resfriado comum?

Enquanto tomava o café da manhã, fiquei vendo os noticiários. Há dias que vivo permanentemente grudado na tevê, no rádio ou na internet (como três quartos dos habitantes da Europa, suponho). Imagino que vivemos todos com a esperança de que as notícias digam que a epidemia está em remissão, que tudo não passou de um gigantesco susto; mas a realidade é macabramente cabeça-dura.

Nada do Daguestão há quarenta e oito horas, já. Por mais impossível que pareça, há dias não se ouve nem uma única notícia dali, oficial ou extraoficial. E como se os vários milhões de habitantes dessa república houvessem evaporado... ou estivessem mortos. A zona sul do Cáucaso (Geórgia, Chechênia, Ossétia, Azerbaijão, Armênia etc.) está silenciosa como uma tumba. Como se não restasse ninguém nessa região. Suas emissoras de tevê e rádio não transmitem há horas, e as (poucas) páginas da internet não são atualizadas há dois dias. Os refugiados que abandonam esses países a caminho da Rússia, Irã e Turquia estão sendo internados em grandes "Zonas Seguras", conforme as define a imprensa internacional, custodiados pelo exército, onde são mais prisioneiros que refugiados. A censura nesses países é férrea.

Na Europa, as coisas estão se complicando. Na Itália, a cidade de Cremona foi isolada pelo exército italiano e grupos especiais dos Carabinieri. Ninguém pode entrar ou sair, exceto médicos escoltados. Declararam quarentena em toda a cidade e qualquer um que consiga chegar até lá é obrigado a dar meia-volta. Na França, decretaram estado de exceção. Foram instalados controles de estrada nos principais nós de comunicação e é preciso ter licenças especiais para circular de uma província a outra. Na Inglaterra, a situação é mais dramática. O Parlamento decretou o Isolation Act, que determina o fechamento das fronteiras até segunda ordem. Ninguém pode entrar ou sair da GrãBretanha, pelo menos legalmente. Tenho amigos que moram em Londres, e ali deve haver um monte de jovens espanhóis, estudantes etc. O que vai ser deles? A epidemia parece estar fora de controle no País de Gales e zonas do sul de Essex, segundo o portal do Herald Tribune, que fala de distúrbios e saques.

Na Alemanha, a situação em alguns Lander é confusa. Na zona norte e na fronteira com a Polônia militarizaram a saúde, os transportes, as comunicações e o controle e gestão das centrais nucleares. No Japão, houve vários suicídios coletivos e as denúncias de assassinatos e desaparecimentos estão atingindo cifras recordes no país. É como se a sociedade deles estivesse desmoronando.

Nos Estados Unidos, a situação é diferente, segundo se ouçam as intervenções de seu secretário de Estado, a CNN ou a Fox News via satélite. E um país enorme, onde há regiões que parecem levar uma vida normal e outras onde a loucura parece desatada. O governo garante que tem tudo sob controle, mas ver a Quinta Avenida de Nova York cortada por caminhões militares não me parece "estar tudo sob controle". A CNN também informa de distúrbios, assassinatos, e de uma onda de sequestros e desaparecimentos por todo o país... É como se uma revolução estivesse sendo incubada, ou algo assim.

Justamente por isso, esta manhã as tropas norte-americanas do Iraque começaram a recuar. Não apenas algumas centenas de soldados ou umas tantas unidades. Não.

Todas.

Absolutamente todas. Até o último soldado.

Aquilo que há algumas semanas teria gerado rios de tinta na imprensa agora não merece mais que uma breve matéria nas páginas internas dos jornais. As coisas mudaram muito nas duas últimas semanas.

Aqui, na Espanha, fora de Zaragoza, agora em quarentena, as mudanças são pequenas, sutis, mas claramente perceptíveis. As igrejas estão lotadas. Nos supermercados, já começam a faltar certos produtos, principalmente os de importação e os perecíveis. As montadoras de veículos paralisaram suas linhas de produção por causa do desabastecimento das peças que vêm do exterior. Hoje pela manhã, quando saí, vi meus vizinhos da frente, os aposentados do Pathfinder, carregando o carro. Comentaram que vão passar uns dias em um pequeno povoado do interior de Orense, "até que as coisas se acalmem um pouco".

Deixei Lúculo preso dentro de casa para que não deixe prenhe metade da população de gatas da área e depois fui de carro para o escritório. As ruas estão estranhamente desertas e as pessoas andam depressa, sem parar para conversar, com um ar furtivo. A imensa maioria usa uma máscara cirúrgica. Quando cheguei ao escritório, nossa secretária me deu uma. Ordens do chefe, disse. De modo que aqui estou, sentado em minha sala e atendendo a meus clientes com uma máscara de papel, como se fosse um cirurgião. Sinto-me um imbecil com ela.

Caramba, o que está acontecendo?

13 de janeiro 19h34 16º registro

Escrevo isto na sala de espera para fumantes do aeroporto de Santiago de Compostela. Dentro de meia hora meu vôo para Barcelona sai, e espero trazer minha irmã comigo de lá. A situação, infelizmente, continua se deteriorando. Foram registrados novos casos da epidemia em Toledo e Madri. Por coincidência, a unidade do exército que acaba de voltar do Daguestão tem base em Toledo, e em Madri estão (ou estavam) internados os feridos de maior gravidade da unidade, no Hospital Doze de Outubro. A relação parece clara. Não é preciso ser um gênio para perceber onde estão os "vetores de infecção" da epidemia, como dizem na tevê.

Em Zaragoza, o governo decretou toque de recolher na cidade, entre às oito da noite e às oito da manhã. Hoje ao meio-dia vi no canal Cuatro que os caminhões das brigadas de limpeza, juntamente com os bombeiros e caminhões-tanque do exército, estavam lavando as ruas de Zaragoza com umas substâncias desinfetantes chamadas Gludex e Jabogerm. Dizem que a cidade inteira está cheirando a hospital.

O Hospital Miguel Servet, em plena cidade, está completamente isolado. Segundo a Europa Press, há duas horas entraram grupos de GEOs (Grupo Especial de Operações) fortemente armados nas instalações. Os tiros foram perfeitamente audíveis em grande parte da cidade. Não se sabe se há mortos ou feridos, dado que o Gabinete de Crise não abre o bico; só faz recomendar o uso de máscaras cirúrgicas para toda a população. Na internet, há (ou melhor, havia) um blog: HTTP://historiasdeuna-enfermera.blogalia.com

É de uma enfermeira que trabalha no Servet e contava que havia pacientes transtornados andando pelos corredores e até afirmava que uns guardas de segurança e uns médicos haviam sido atacados no necrotério. O número de visitas foi tão brutal que deu pane em poucas horas, e agora a mensagem é "La bitácora que busca no existe". Os amantes da conspiração falam de censura. Acho que esse blog não é real. Com certeza é um truque para assustar as pessoas. Pelo menos, quero acreditar nisso. Mas a vontade das pessoas de saber é enorme, e os rumores correm sem parar. Há quem afirme que são radiações nucleares, outros que é a Peste Negra, outros que é uma nuvem tóxica gigante proveniente de uma refinaria russa, e não falta quem afirme que é uma manobra da OPEP para elevar o preço do petróleo.

Seja o que for, o medo está prestes a dar lugar ao pânico. É aterrador ver o aeroporto cheio de patrulhas da Guarda Civil armados com mini-metralhadoras, de luvas e máscaras. Vi que um sujeito começou a tossir de maneira escandalosa e foi levado rapidamente por quatro gentis, mas firmes, agentes para uma ambulância. Seus protestos não lhe valeram de nada. Depois disso, não pude evitar pensar de novo que ando espirrando muito, resfriado, e, desde então, só o que faço é me conter.

Liguei para minha irmã agora há pouco. Ela vem me buscar no aeroporto, já que suspenderam a linha de metrô e deslocaram os transportes de superfície para o centro da cidade, para servirem de reforço. Segundo ela, pegar um táxi nesses dias é uma proeza.

Deixei Lúculo com Alfredo, o rapaz da construtora que mora ao lado. Lúculo olhou para mim com uma expressão ultrajada por tê-lo deixado em uma casa estranha, mas espero que não fique muito mal. É só por um fim de semana.

Estão dando a última chamada do meu vôo. Espero que tudo corra bem.

15 de janeiro 18h03 17º registro: ponto de ebulição

As últimas quarenta e oito horas foram uma odisseia. Não entendo como as coisas chegaram a este ponto. Não sou nenhum covarde, mas tenho medo. Muito medo. Tenho a sensação de que o planeta inteiro está prestes a descarrilar e que não há ninguém capaz de encontrar a alavanca do freio. Estou aturdido, confuso, cansado e neste momento estou me perguntando que, diabos, vamos fazer. Mas, uma vez mais, estou me antecipando aos acontecimentos.

O vôo da sexta-feira para Barcelona foi tranquilo, sem sobressaltos. Um voo rotineiro, deixando de lado as comissárias de bordo com luvas cirúrgicas distribuindo máscaras para todos os passageiros. O avião estava meio vazio, algo quase impensável em véspera de fim de semana. O que eu não podia saber era que, durante os poucos quarenta e cinco minutos do trajeto, estavam acontecendo na Espanha verdadeiros terremotos sociais. Quando aterrissamos no Prat, fomos retidos no avião durante quase uma hora e meia. Alguém decidiu desligar o ar-condicionado e a temperatura dentro do aparelho ficou sufocante. Os poucos passageiros que havia a bordo começaram a ficar nervosos e a murmurar. O fato de usar uma máscara de papel na boca não ajudava a acalmar os ânimos.

Finalmente nos deixaram descer, mas não por uma rampa de embarque, e sim no pé da pista, onde um micro-ônibus elétrico nos pegou e nos levou a uma sala do terminal. Ali, informaram-nos que, enquanto estávamos no ar, o governo decretou estado de exceção. Todos os voos nacionais e internacionais seriam cancelados dentro de vinte e quatro horas e só quem já houvesse comprado a passagem poderia embarcar de volta para casa. Assim, pois, meu planejado fim de semana em Barcelona foi forçosamente reduzido a vinte e quatro horas, e, o que é pior, não sei se poderei conseguir uma passagem de avião para minha irmã.

O terminal de Barcelona é um oceano de gente, mas, por enquanto, as coisas estão calmas. A presença de segurança é mais evidente aqui, e pela primeira vez na vida vi tropas militares patrulhando uma instalação civil usando uniforme completo de combate. É impressionante.

Minha irmã e seu namorado estavam me esperando na porta do Terminal BI. Fiquei muito feliz de vê-los. Ela é cinco anos mais nova que eu (tem 25) e, como eu, decidiu ser advogada. Mora em Barcelona há dois anos e já está completamente adaptada à cidade. Quando minha mulher morreu em um acidente de trânsito há dois anos, ela foi meu apoio. Também foi ela quem, poucos meses depois, me deu uma pequena bola de pêlo cor de laranja chamada Lúculo, que me permitiu sair do buraco onde estava afundando. Historias passadas...

Enquanto íamos de carro para Barcelona, ela foi me pondo a par de tudo. O rei apareceu na tevê de uniforme militar, como no 23-F, para ler um comunicado. As tropas militares da Espanha foram postas em estado de alerta máximo, e no prazo de vinte e quatro horas todas as fronteiras, portos e aeroportos serão fechados. As cercas de Ceuta e Melilla foram eletrificadas. Houve surtos da epidemia em Cartagena, Cádiz e Ferrol.

Isso fica a menos de cento e cinquenta quilômetros da minha casa. Pergunto-me como o surto pôde chegar até ali. O mais curioso é o hermetismo oficial em torno à doença. Não se conhecem os sintomas, nem o período de incubação, nem a taxa de mortalidade... não se sabe nada, absolutamente. Só que é muito contagiosa, muito letal e que está avançando.

Os surtos de Zaragoza, Toledo e Madri continuam fora de controle, e em Zaragoza começaram a evacuar todos os habitantes que moram em um raio de menos de um quilômetro em volta do Hospital Miguel Servet.

Ao chegar à casa de minha irmã, em Gracia, tomei um banho. Enquanto isso, liguei o rádio para ouvir as notícias (parece que nestes dias ninguém pode viver longe de um rádio ou de uma tevê). A OMS vai dar uma entrevista coletiva sobre a doença na segunda-feira. Em Barcelona, a polícia autônoma fez algumas prisões preventivas de estrangeiros suspeitos. A Generalitat ordenou exames de sangue generalizados, mas teve de suspender a ordem poucas horas depois. Os laboratórios clínicos não dão conta do trabalho.

Roger, o namorado de minha irmã, contou que outro dia, quando estava em um ponto de ônibus, viu uma briga entre um imigrante muito alterado e um bando de skinheads. Quando a polícia chegou, enfiou todo mundo nas viaturas e os levou Deus sabe aonde. Ele, felizmente, conseguiu se mandar.

íamos jantar na casa de um amigo, que morava no primeiro andar, mas a situação não parece a melhor do mundo e preferimos ficar em casa, jantando em frente à tevê. Por sua vez, Roger e minha irmã deixaram bem claro que não vão comigo para a Galícia. Os pais de Roger têm uma fazenda na província de Tarragona e pretendem ir para lá no fim de semana que vem "até que tudo isso acabe". Pediram uns dias no trabalho, mas tenho a sensação de que isso, daqui a pouco, será o de menos.

Convidaram-me a ir com eles, e minha irmã, como quem não quer nada, informou que certa amiga dela adoraria me ver por ali. A oferta é tentadora, mas deixei Lúculo sozinho, tenho de trabalhar na segunda-feira e, além do mais, tenho a sensação de que, se ficar, não poderei voltar para a Galícia tão cedo.

Bem na hora em que estávamos falando interromperam a transmissão. Matias Prats apareceu muito sério, informando que havia quinze minutos foi registrada uma explosão termonuclear em Shangai. Não foi um acidente nem um atentado, foi o próprio governo chinês que apagou a cidade do mapa. Ficamos chocados. Isso é jeito de enfrentar uma doença? A cidade inteira? Santo Deus, isso devem ser milhões de pessoas.

Na Alemanha, decidiram paralisar todas as centrais nucleares. Não se pode garantir a manutenção das centrais, porque, simplesmente, os empregados não estão indo trabalhar. Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra e, ao que parece, também Espanha estão adotando medidas similares.

Faz horas que não se sabe nada da Rússia. As televisões russas foram fechadas pelo exército e parece que finalmente conseguiram fechar a fonte da internet de alguma maneira, pois muitos blogueiros, muito ativos até hoje, não dão sinal de vida. Segundo a Reuters, há grandes áreas do país às escuras, sem fornecimento elétrico. Pode ser essa a razão. Espero que tenham tido a precaução de desligar as usinas nucleares. Só o que falta agora é outro Chernobil.

As notícias da praga parecem se repetir por todos os cantos do planeta. A epidemia já é global.

Nos Estados Unidos, há notícias de saques, assaltos, raptos e assassinatos em massa. Da Europa não se sabe quase nada, porque o Gabinete de Crise não entrega o ouro. Há apenas muitos rumores na internet, cada um mais infundado e absurdo que o anterior. Muitos testemunhos concordam no mesmo: os afetados parecem mergulhar em um estado de confusão profundo, com uma agressividade enorme. Do mundo inteiro chegam notícias de ataques de doentes a outras pessoas. E como se fosse uma variação da raiva, ou algo assim. Por enquanto, não acredito em nada.

À noite em Barcelona foi muito longa. O som das ambulâncias, dos caminhões do exército e da polícia percorrendo as ruas não nos permitia dormir. Da janela eu podia contemplar uma parte da cidade. As ruas estão desertas, sem pedestres, sem trânsito. Só a ocasional passagem de um carro-patrulha, com uma lanterna iluminando as casas, quebrava a solidão. Imagino que de dia deve ser diferente, quando o toque de recolher acaba, mas, enquanto isso, é impressionante.

15 de janeiro 19h11 18º registro

Cheguei em casa. Estou completamente esgotado. A viagem de volta foi atroz, incrível. Lúculo está comigo. Vou dormir. Hoje vi matarem um homem no aeroporto, e não tenho vontade de escrever.

16 de janeiro 19h19 19º registro

Ontem não foi um dia fácil. Hoje também não. Quando cheguei em casa, já tarde, estava em um estado emocional bastante abalado. Tudo começou no aeroporto do Prat, no domingo à tarde. A tensa tranquilidade que eu havia visto no sábado se transformou em histeria. Quando cheguei de táxi ao aeroporto, estava um caos. Enormes filas de gente, gritos, empurrões, crianças esgotadas dormindo em cima de montes de malas enquanto seus pais tentavam arranjar uma passagem para qualquer lugar.

Meu voo sairia uma hora depois de eu ter chegado ao aeroporto. Era um dos últimos vôos que sairia de Barcelona. Nessa mesma noite, por conta do estado de exceção, o Prat ia ser fechado, e todo mundo que queria sair de Barcelona de avião estava no aeroporto. O problema era que as autoridades não permitiam vender nenhuma passagem para quem não provasse que estava indo ao local de sua residência habitual. E, ainda assim, não havia passagens suficientes para todos, isso era mais que evidente. Por isso, a multidão estava nervosa e os empurrões, gritos e confusão eram constantes. Cheguei como pude ao balcão de embarque, abrindo caminho por entre um monte de gente histérica que se amontoava em frente aos guichês. Só quando cheguei ao balcão, perdendo meu casaco pelo caminho, percebi que as gentis atendentes de sempre haviam sido substituídas por soldados. E posso jurar que não sorriam de jeito nenhum. Após apresentar minha identidade e minha passagem, comprada quatro dias antes, disseram-me que era melhor, "para minha segurança", que me dirigisse ao portão de embarque. Foi quando notei que dois dos soldados que tanto haviam me impressionado quando chegara a Barcelona estavam parados ao meu lado. Por um segundo pensei que iam me prender, ou algo assim.

Então, notei que as pessoas que estavam perto de mim me olhavam. Observavam-me como lobos. Eu tinha algo que eles não tinham: uma passagem de avião. E alguns deles, depois de horas e horas de tensão e de luta para sair daquele maldito aeroporto, talvez estivessem desesperados o bastante para tentar tirá-la de mim. Aqueles armários uniformizados que estavam do meu lado foram abrindo caminho entre a multidão, em direção ao portão de embarque, enquanto eu sentia dúzias de olhos cravados em mim. Eu olhava para o chão, incapaz erguer os olhos.

Onde normalmente deveria estar o arco detector de metais havia uma linha de agentes antidistúrbios da Polícia Nacional, com os capacetes de kevlar e seus escudos. Atrás deles havia outra linha, dessa vez de guardas civis, armados com minimetralhadoras e usando gorros. A imagem era horrível. Uma multidão se aglomerava em frente à fileira, empurrando para chegar à sala de embarque. O aperto era incrível. Quando chegamos, dois policiais se afastaram para me permitir passar. Após cruzar a entrada, conduziram-me a uma pequena sala onde imagino que normalmente fazem as revistas. Ali, um oficial médico do exército me pediu a documentação e me examinou enquanto duas ajudantes reviravam minha bagagem de mão. Mesmo sendo advogado, não me atrevi a reclamar. Acho que teria sido inútil, e, dada a situação, não achei que seria muito inteligente.

O médico me fez um monte de perguntas. Teve febre, tontura, esteve fora da Espanha no último mês, visitou Zaragoza, Madri, Toledo, foi mordido por algum animal ultimamente, sofreu algum tipo de ataque... Quando fez essa última pergunta, quase respondi que estavam me atacando nesse exato momento, mas uma breve espiada em sua expressão me convenceu de que era melhor manter a boca fechada.

Quando saí da salinha foi que tudo aconteceu. Na primeira fila, tentando atravessar para o portão de embarque, havia um sujeito de uns quarenta anos, de cabelo cacheado cinza, barba por fazer, usando um terno amassado, com pinta de executivo. Estava extremamente excitado, nervoso e muito vermelho. Suspeito que ao longo desse dia devia ter cheirado mais de uma carreira de cocaína, e nesse momento estava a milhão.

Um súbito movimento da multidão para a frente provocou um momento de pânico. As pessoas das filas da frente caíram no chão e foram pisoteadas pelas de trás, e a fileira de agentes anti-distúrbios se quebrou por um instante. Então, o fulano passou por um vão e saiu correndo para o portão de embarque. Os guardas civis da segunda linha tentaram detê-lo, mas não o alcançaram. Alguém gritou "Alto". O sujeito corria pelo corredor rumo ao avião, rumo à salvação. Subitamente, ouviu-se uma rajada de metralhadora. Brotaram umas flores vermelhas nas costas do terno do homem e ele desabou no chão, no corredor. Nesse momento, a histeria explodiu. Berros, choro, gritos, tiros para o ar, a situação estava fora de controle. Um dos militares me pegou pela gola da jaqueta e me arrastou para o avião, enquanto seus companheiros tentavam formar um cordão atrás de nós, retrocedendo sem se deter com a pressão da multidão.

Quando passei ao lado do cadáver, não pude deixar de reparar em sua expressão. Estava morto. Morto. Tenho certeza. De repente, o militar que estava à meu lado parou. Imperturbável, desembainhou uma pistola do cinto e deu um tiro na cabeça do corpo já inerte no chão. Fiquei absolutamente aterrorizado. Por que ele fez isso?

Com um empurrão, levaram-me para a porta do avião, do outro lado da passarela. Umas comissárias de bordo muito nervosas me instaram a entrar o mais depressa possível. O avião estava lotado, eu poderia jurar que havia até gente em pé na cabine de tão sobrecarregado. Todo mundo estava muito nervoso e a situação só começou a relaxar quando a porta se fechou e o aparelho começou a rodar pela pista. Enquanto entrávamos na pista de aproximação, o sujeito que estava ao meu lado sussurrou que depois desse vôo haveria só mais três. Depois disso, o Prat fecharia até Deus sabe quando.

Passei o vôo todo em silêncio, pensando no que acabava de ver. Ao recordar a cena, tive de me levantar correndo e ir para o banheiro. A ânsia de vômito era incontrolável. Caramba, o cara havia estourado a cabeça dele bem na minha frente!

Ninguém distribuiu máscaras no voo. Parece que já não são consideradas necessárias. Não sei se isso é bom ou ruim.

Ao chegar a Santiago tornei a ver a cena de Barcelona, mas em escala muito menor. No estacionamento, um sujeito me ofereceu seu carro em troca de uma passagem de avião para Zurique em um vôo que decolava em uma hora. Parece que a escala de valores está mudando.

Dirigi até minha casa em silêncio, ouvindo rádio. A situação é caótica. Novas explosões nucleares na China. Parece que querem acabar com a epidemia explodindo tudo. Ou acabar com os portadores, quem sabe. Os Estados Unidos estão em Defcon 1, seja lá o que isso for. Distúrbios em Madri, Valência, Barcelona, Sevilla, Bilbao... a coisa parece fora de controle. Na rádio SER comentam que podem declarar a lei marcial em questão de horas. Da Rússia, nem uma notícia. Da Alemanha, uma gravação de três horas atrás com Angela Merckel dizendo que "Dresde está perdida". Ordens de evacuação de Paris, Reims e Marsella. Na Itália, um bairro de Nápoles está sendo tomado a sangue e fogo pelos Carabinieri. O mundo está se despedaçando e eu ainda não sei por quê.

Peguei Lúculo e fui para casa. Hoje de manhã liguei para o trabalho e disse que estava doente. Não importa, dizem, os Tribunais foram temporariamente fechados; só funcionam os de plantão, e só para julgar saqueadores e quem violar o toque de recolher. Passei quase toda a segunda-feira dormindo. Quando me levantei, fiz um café e sentei para ver tevê e escrever isto, com Lúculo ronronando em meu colo. Não sei o que está acontecendo.

17 de janeiro 18h42 20º registro: às portas do inferno

Pronto. Oficialmente, estamos fodidos. Às 15 horas de hoje o rei apareceu na tevê de novo anunciando que estava decretada a lei marcial em todo o território espanhol. Confirma-se o toque de recolher das oito da noite às oito da manhã, com a diferença de que, agora, quem for pego na rua entre essas horas corre o risco de levar um tiro. Direto assim. Ficam proibidos os deslocamentos por estrada entre comunidades autônomas, e o exército instalará controles nas principais vias.

Quinze cidades foram declaradas zonas de risco e não é permitido entrar ou sair delas. Há uma lista de todas as cidades em que houve surtos da epidemia e mais nove. Madri e Barcelona estão entre elas. Tomara que minha irmã tenha antecipado seus planos e já tenha saído da cidade. Caramba!

Por ora, Pontevedra está salva da fogueira, mas não sei por quanto tempo. Ferrol e La Coruna, a menos de cento e sessenta quilômetros, são "zonas de risco", e em tese estão isoladas. Mas um amigo que mora em La Coruna acaba de me ligar a caminho da casa de seus pais, em Vigo. Diz que conseguiu sair da cidade por estradas secundárias e trilhas florestais. É materialmente impossível isolar uma cidade de tamanho médio, que dizer de uma grande urbe. Seja o que for essa praga, acabará chegando aqui. Eu deveria fazer alguma coisa, mas não me ocorre nada.

Peguei o carro e fui para o centro. As ruas apresentam um aspecto semivazio; parece uma cidade sitiada. Chove sem parar há horas e nas calçadas se respira um ambiente de nervosismo. Está muito frio. Durante o trajeto, cruzei com vários carros-patrulha da polícia e dois transportes da Brilat. Os quartéis da Brigada Leve Aerotransportável (Brilat) estão situados a apenas três quilômetros de Pontevedra. Estão ali há anos, mas eu nunca havia visto tropas estacionadas no centro da cidade até hoje.

Parei em um posto de combustível para encher o tanque do carro. Enquanto abasteciam o Astra, entrei na loja para comprar cigarro, alguns jornais e revistas e um galão de óleo. (Tinha de ter verificado o nível do carro há uma semana, caramba!) Enquanto pagava tudo, o atendente comentou que alguns postos de combustível estavam com problemas de fornecimento, principalmente os mais isolados. Com os portos fechados, as refinarias pararam a produção e o governo militarizou as reservas existentes. Maravilha.

Depois fui até o Centro Comercial para fazer uma boa compra. Algo me diz que lotar a despensa pode ser uma excelente ideia, em vista de como as coisas estão ficando. Tive uma surpresa ao ver que o supermercado estava abarrotado. Muitas pessoas tiveram a mesma ideia que eu. Em uma das lojas de artigos eletrônicos e utilidades domésticas do lado de fora do supermercado comprei um rádio UHF com dial de varredura. Faz tempo que estava de olho nele. Eu havia pensado em usado para ouvir o canal da Guarda Costeira quando saísse com a Zodiac para mergulhar nos restos do Florita (casco de um navio naufragado há anos na enseada. Seu estado é muito perigoso e é proibido descer até ali; se nos pegam ali, aplicam uma multa pesada e podem nos tirar a licença, mas vale a pena). Agora, pretendo lhe dar um uso bem diferente.

Chegando em casa, escovei Lúculo e dei-lhe um jantar suculento. Depois, testei o rádio. Em pouco tempo localizei a frequência da Polícia Nacional e da Polícia Municipal. Perfeito. Talvez agora eu consiga informação de primeira mão. Também captei alguns radioamadores, mas não prestei muita atenção neles, pois fiquei gelado em frente à tevê.

São imagens dos Estados Unidos feitas de um helicóptero. É um engarrafamento em uma estrada. De repente, umas duas dezenas de pessoas cambaleantes surgiram andando por uma lateral da via e começaram a atacar os motoristas presos em seus veículos. A cena é horrível. Dura menos de um minuto, mas me deixou tremendo. Posso jurar que os vi morder os motoristas. É impossível. Que, diabos, está acontecendo com essas pessoas?

Acho que alguém abriu a porta do inferno, e já se começa a sentir o calor.

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