2. Ayla
Ayla acordou assustada, não pelo toque do despertador, mas pelo agoniante sonho que a perseguia a meses no qual ela assistia sem nenhuma reação enquanto Ash morria aos seus pés. Precisava achar seus remédios, que sua mãe teve a brilhante ideia de colocar em alguma das caixas que ainda ocupavam o pequeno depósito nos fundos da casa. Ainda não havia tomado coragem de ir até lá, precisava conhecer melhor aqueles sons, às vezes a recente percepção do que acontecia ao seu redor a confundia e assustava, e isso havia lhe causado alguns acidentes. Não raramente usava protetores auriculares, mas havia ocasiões que precisava de silêncio, ou tinha a impressão que enlouqueceria.
Ouviu passos pesados lá fora, e em seguida o barulho do portão da casa da frente, alguns sons da casa que talvez tivesse que se acostumar, olhou no relógio, poderia dormir mais uma hora já que a escola ficava à apenas três quadras de seu novo lar. Levantou-se, e foi até a janela.
A cidade lá fora estava povoada pelos sons do começo do dia. Grilos, pássaros, passinhos leves de gatos por cima do muro. Um cômodo a meia luz do outro lado da rua a distraiu por um momento, desde sua chegada não havia mais visto o vizinho xerife, e agora ele estava bem ali, no seu campo de visão. Pensou por um momento se ele conseguia enxergá-la de lá também quando antes que fechasse a cortina o viu tirar a camiseta branca. Achava Mason Field um tanto exibicionista, aquela cortina estava sempre aberta, e caso não soubesse logo diria a ele que não estava interessada em vê-lo trocar de roupa.
Quando desceu para o café da manhã, já vestida com o uniforme da escola, a mãe já preparava o café da manhã, o pai estava lendo seu jornal na sala, uma xícara de café na mesinha de centro. Ambos pareciam ter vivido ali a vida toda de tão bem-adaptados. Rose era enfermeira chefe no hospital e seu pai um escritor cujos livros de ficção vendiam bem, com contrato para uma trilogia. Era um belo casal, sua mãe era o que ela achava que acontecia com lideres de torcida que não escolhiam o rei do baile de formatura, e acabou se apaixonando pelo charme de escritor talentoso e incompreendido de seu pai. Aidan Greenwood era um homem de maneiras agradáveis e inteligência acima da média, do tipo que ignorava os chiliques de Rose, contanto que ela não tomasse seu tempo com nada que não fosse realmente importante.
Ayla sentia-se mais ligada ao pai, fosse pela silenciosa companhia, pelos filmes em preto e branco que os dois gostavam de assistir, ou porque a tirava de casa no meio do dia para tomar café e comer torta de limão, sem nenhum motivo, só porque gostava de sua companhia. Com a mãe, ou como ela mesmo preferia ser chamada, Rose, não tinha muito em comum. Sabia que a mãe a amava, e do seu jeito a recíproca era verdadeira, mas não podiam estar no mesmo ambiente por muito tempo. Lembrava da mãe cobrindo-a no meio da noite, e cuidar para que tivesse sempre roupas bonitas e brinquedos. Não era do tipo carinhosa quando ela ficava doente, ou que comemorava seus êxitos escolares. Ela dizia que recebia tudo isso em excesso do pai, e em alguns momentos Ayla achava que a mãe na verdade sentia ciúmes dela com o pai.
– Quer uma carona? – perguntou Rose, enquanto olhava no interior da bolsa e conferia se tinha tudo o que precisava.
– Não, vou caminhando – respondeu Ayla.
Logo, também se despediu do pai e saiu para a temperatura agradável de Helltown pela manhã, andando pela calçada, usava seus fones mesmo que não estivessem tocando música alguma. Era somente para abafar os sons, alguns eram realmente desagradáveis, como os vizinhos da casa com o belo canteiro de rosas transando todo dia no mesmo horário, outros com informações desnecessárias sobre alguém perdendo o emprego, ou conversa triste sobre a doença de uma das crianças na casa cor-de-rosa onde um gato espreguiçava-se na calçada. Curiosamente, na escola, talvez por ter tanto barulho e conversa, conseguia evitar a maior parte dos ruídos ao seu redor, e ainda havia a vantagem de saber algumas impressões das pessoas ao seu respeito. Sabia exatamente o que pensavam sobre ela, e enquanto acenava para as novas colegas de aula, que a aguardavam, ouvia os sussurros, as fofocas e sentia o cheiro quase imperceptível de bebida que vinha do diretor.
– Os testes vão começar na semana que vem! – disse Annie entregando um panfleto sobre inscrições para líderes de torcida.
– Ah, legal – não pode evitar o riso debochado atraindo a atenção das garotas – perdão, não foi como se eu detestasse cheerleaders ou algo assim, só não me vejo fazendo isso.
– Annie já está na equipe a dois anos – disse Cassie, empolgada – tentei no último ano, mas não consegui entrar.
– Tenho certeza que esse ano você consegue – Ayla incentivou a garota.
– Por mais que eu queira, acho que minha coordenação motora não me permite – Cassie suspirou – eu ficaria linda naquele uniforme.
– Annie pode passar umas dicas – disse Samarina – quem sabe ensaiar um pouco com nossa amiga, aqui – bateu amistosamente no ombro de Cassie.
– Porque vocês duas não se inscrevem? – Cassie perguntou – seria legal se fossem comigo?
– Oh… – Ayla foi pega de surpresa.
Gostava das meninas, na verdade eram das poucas pessoas ali que sabia que não tinham se aproximado com algum interesse, fosse porque seu pai era um autor de sucesso, ou porque moravam em uma casa com piscina ou porque aparentemente estava popular entre os garotos. E isso levava a mais um ponto, o fato de ser a “garota nova” fazia com que fosse convidada para tudo, mas de longe preferia ficar na companhia delas. Não queria negar o pedido de Cassie, mas seria um problema se fosse escolhida, com sua audição instável poderia inclusive causar alguns pequenos acidentes.
– Não vai me deixar sozinha nessa – cochichou Samarina para que Cassie não percebesse.
Respirou fundo e acabou concordando, para a alegria das garotas.
Passados alguns dias, depois da inscrição Ayla deixava o colégio com a sensação de dever cumprido, e o uniforme da torcida na mochila, Cassie havia conseguido, e como já esperava havia sido aprovada também, o que deixaria sua mãe muito feliz, pois ela mesmo havia sido líder de torcida quando jovem. O fato de ter feito dança boa parte da vida, mais porque Rose achava que daria a ela postura e disciplina do que porque sonhasse com tutus e sapatilhas claro, a ajudou muito.
– Ei! – olhou para trás e viu Lane O’Neal se aproximando, quando ela parou a sua frente percebeu que fez uma pausa para analisá-la, Ayla realmente odiava aquele tipo de garota – é o seguinte, vai ter uma festa nos Kent hoje, e sério, você sempre recusa os convites, precisa ir agora que é uma de nós.
Ayla olhou para o grupinho reunido a alguns metros de onde estavam, atletas, garotas populares, mas por alguma razão achavam que ela se importava.
– Facilita as coisas, Greenwood – Lane suspirou – metade do time de futebol está querendo ficar com você, e a maioria das garotas daqui está puta porque você aparentemente as esnoba.
– Eu não esnobo ninguém, Lane, e pra falar a verdade eu não ligo para a torcida – ela viu os olhos de Lane saltarem como se tivesse dito algum absurdo – só participei da seleção para motivar uma amiga.
– Bom saber disso, vou te manter na reserva – ela parecia irritada – você tem ideia de que a maioria das meninas mataria por um lugar na equipe?
– Não vai me manter na reserva porque geral viu meu teste, e fui melhor que as veteranas então não me enche – Ayla acendeu um cigarro – vamos fazer o seguinte, você me diz onde é essa festa, eu apareço por lá, com a condição de poder levar Samarina.
– A esquisita? – ela fez uma careta – olha, não quero se chata, mas aquela vibe gótica sexy dela é tão ultrapassada…
– É minha condição – Ayla disse, e riu da revirada de olhos de Lane.
– Ok, mas vai aparecer na maioria das festas, não entendo porque não está aproveitando sua popularidade!
– Eu estou sim, tanto que você concordou com minha condição – viu Lane ajeitar o rabo de cavalo, os fios loiros e brilhantes, entrou no carro e logo se foi.