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Capítulo Três: Escuridão.

“Ás vezes, a escuridão te dá uma visão nova das coisas que você já enxerga de uma maneira diferente, e passa a se questionar se tudo o que viveu foi o bastante, ou se o outro lado existe. O outro lado das coisas, das pessoas, de si mesmo. E quando a luz volta aos seus olhos, você já não é mais a mesma pessoa”.

— Acordem! — Grita uma voz masculina, desconhecida.

Abri os olhos, há uma luz fraca sobre mim entre quatro paredes em tão pouco espaço. Estou sozinha. Tento me situar, entender o que aconteceu. Lembro-me do escuro que surgiu de repente e agora estou aqui, sem saber por quê.

A voz masculina volta a repetir para que acordemos, no plural, e me pergunto se há mais pessoas lá fora. As paredes descascadas de cores misturadas, e o chão de cimento e frio com um colchão fino e velho.

A porta se abre e um rapaz de capuz deixa uma bandeja de comida no chão, sem dizer uma palavra, mas vejo que seus olhos me encaram por alguns segundos e depois saiu fechando a porta com uma estranha violência. Algo o deixou nervoso, penso. Tento encarar a comida, estranha por sinal, não reconheço quase nada da bandeja e meu estômago revira.

Há uma pequena tubulação no canto da parede, por onde deve passa o oxigênio, não há janelas além da porta. Não resta dúvida de que fui sequestrada, o que me assusta muito. Não há como pedir ajuda, sequer sei se posso gritar. Não sei o que querem de mim.

Ouço algumas vozes em sussurros, não consigo identificar nenhuma palavra, todas parecem ser em italiano. Também ouço o tilintar de talheres, concluo que há mais pessoas no mesmo estado em que me encontro, sequestradas. O que querem afinal?

Dias se passaram, comidas são acumuladas no chão todos os dias até apodrecerem. Ninguém me diz nada, sequer se comunicam, parecem querer a tortura silenciosa de uma alemã que não fala italiano. Os mesmos sussurros são ouvidos do outro lado da parede, não dá para saber quem são e o que dizem. Não sei quando é noite e dia, não tomo banho há vários dias. Eu me sinto fraca para lutar com aquilo que parece ser invisível, exceto o homem que me traz comida e me encara sempre.

Em uma dessas noites— suponho que seja noite pelo silêncio por um tempo mais longo— me sinto tão exausta que uma fúria toma conta de mim. Eu grito, grito alto, para quem sabe eles acabarem logo com aquela tortura silenciosa. Não há resposta. Grito de novo, e de novo, nada. Jogo-me no colchão fino e sujo aos prantos, choro como uma criança.

— La signorina? — Alguém sussurra do outro lado da parede. — Non urlare, sarà peggio.

Não entendo o que ele diz.

— Io... no... parlo italiano ... — Respondi.

— English?

— English! — Respondi feliz.

E tentamos uma comunicação em inglês e para a minha surpresa, ele falava alemão também, graças ao pai que era alemão e a mãe é italiana, mas foi criada em Nova Iorque desde criança aprendendo duas línguas e precisou aprender alemão pelo homem por quem se apaixonara. Ele fora raptado há mais de um ano, pelas suas contas já faziam dois anos, também não sabia a razão disso. Seu nome é Enrico e três anos mais velho. Segundo ele, haviam outras pessoas como nós, mais cinco, e todos também eram jovens abaixo de 25 anos.

— Por que nos raptaram? — Perguntei.

— Ninguém sabe. O Paolo, que fica no outro lado da minha parede, diz que estamos sendo estudados. Ele foi pego há mais de dois anos.

— Mas de dois anos?

— Sim.

— Só vi o outro homem duas vezes — Ouço um grito abafado, mais distante — Prazer, sou o Paolo, amigo de Enrico. Desculpe o meu inglês fraco.

Paolo contou que há outro homem que parece ser o responsável pelos raptos, e ele garante que estamos sendo estudados, mas não sabe para que. Ele acha que depois dos estudos seríamos mortos.

— O que vamos fazer para sair daqui? — Eu quis saber, pois me indignava que eles estão há mais tempo e não sei como aguentaram.

— Já pensamos em tudo, Ema, não há como sair daqui.

— Enrico parece ter perdido as esperanças de sair desse lugar.

Os dias continuam todos iguais, os outros tentam se comunicar com a gente, Enrico e eu. Tentamos a todo custo identificar o horário de todos os dias, e pelo que desconfiamos, poderia haver algumas câmeras nos vigiando, tanto dentro dos “quartos” quanto por fora deles. Só consigo tomar água e comer o mínimo para ter forças, eles dizem que eu acabaria me acostumando com a comida estranha e que não há perigo em consumi-la, mas só como as frutas, quando elas vêm.

Gosto de ouvir a voz de Enrico, ela me acalma e me faz imaginar a sua aparência, e sei que nem sempre a aparência combina com a voz. Ele disse que é alto, com cabelos bem escuros, olhos claros como os da mãe, e pele branca como do pai. Falei da minha aparência e ele riu me chamando de galega, também acabo achando engraçado. Sempre que estou com medo, ele bate na parede para eu saber que ele está lá, para não me sentir solitária, e me dá esperanças de que seremos libertados, então rezamos todas as noites para que Deus nos ajude. Sinto falta da minha família, me pergunto se estão atrás de mim me procurando. Penso no meu apartamento que eu mal pude aproveitar e ás vezes eu me arrependo de ter escolhido a Itália para morar e explorar. Quase sempre eu choro, lamento por muitas escolhas, e até arrisco a pedir aos meus pais, onde quer que eles estejam para me protegerem, e protegerem os demais.

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