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Jogando

Fiquei olhando para a cara do cientista, fingindo não estar entendendo o que ele queria, só que conhecia tudo isso muito bem. Cartas com símbolos para a gente adivinhar o que era, com as cartas de costas para mim. Ao mesmo tempo, uns fios grudados na minha cabeça, estavam ligados a uma máquina que emitia sons.

Hoje eu sei que verificavam as ondas elétricas do meu cérebro. O doutor Martim me olhou com cara feia e mostrou pela terceira vez as cartas e explicou que eu tinha que dizer qual a figura, sem ele me mostrar.

– Podemos começar? – Percuntou.

Balancei a cabeça consentindo. Ele embaralhou as figuras e pegou a primeira, colocou a minha frente e esperou. Olhei fixo para a carta, fazendo um suspense, sabia qual era.

– Estrela.

– Certo – pegou outra carta.

– Quadrado.

– Certo –  pegou outra. 

E assim continuou até a nona, eu errei de propósito. Foram trinta cartas, acertei 18 e errei 12. Controlei meus impulsos o máximo possível e parece ter dado certo.

– É Sávio, tudo indica que ela é normal. – Finalmente ele acreditou.

– Tio, quer dizer, doutor , podemos comer agora, to com muita fome. – Pedi.

O homem, que agora sabia que se chamava Sávio, foi quem respondeu.

– Claro querida, já está chegando. – Ele avisou e eu sorri feliz.

Realmente estava chegando, ouvi o barulho das rodas do carrinho que distribuía as bandejas, mas só de imaginar a gororoba que iriam me dar, minha alegria passou e meus olhos se encheram d'água. O Sávio viu minhas lágrimas rolarem na hora que a porta se abriu e o copeiro olhou para mim com um sorrisinho vitorioso, dizendo:

– Te encontrei princesa, trouxe sua refeição especial de sempre. – De todos que conheceu ali, aquele era o mais malvado.

Minhas lágrimas rolaram descontroladas quando ele colocou a bandeja com um pote cheio de mingau de aveia. Leite e aveia e eu cheia de fome.

– O que foi Grace? Porquê você está chorando? – Perguntou o Sávio.

– Eu tô com fome de comida, mingau não é comida, já tem tempo que eu não como, tô com fome – choro mais – quero meu pai.

– Porque tem vindo mingau no lugar de comida, para ela? – Sávio perguntou para o copeiro.

– É mais fácil de forçá-la a comer – respondeu o idiota, rindo.

– E quem mandou você fazer isso? Por acaso mingau é comida? – Perguntou o Dr. Martim dessa vez.

O copeiro fechou a cara e não falou nada. O Dr. Martim pegou o telefone e ligou para alguém, perguntando porque não tinha vindo comida para mim. Não sei o que responderam, não quis saber, estava muito cansada, já tinha dias que estava passando mal por causa daquele mingau que o copeiro me obrigava a comer.

Coloquei os braços cruzados sobre a mesa e deitei sobre eles e apaguei.

***

Essas lembranças são muito dolorosas para mim, agora que sou adulta. Eles nunca acharam nada em mim ou nas coisas de meu pai. Isso porque eu não dei nenhum sinal de anormalidade e nem falei nada dos segredos de meu pai. Mas eu sei de tudo e vou usar para pegar toda essa corja de cientistas malucos.

Agora que voltei a casa de meu pai, sei onde procurar o que ele estava pesquisando. Mas não me interessa muito, é mais para ter certeza de que não terei mais nenhuma precisão de nenhum hormônio ou medicação. Sei muito bem tudo que a experiência dele causou em meu corpo.

Visão a longa distância.

Super audição.

Capacidade cerebral acima da média.

Capacidade de manipular minhas células e moléculas

Auto cura

Velocidade

Manipulação de matéria, tempo e espaço

Previsão de acontecimentos pela lógica

Esses e mais aqueles que ainda não sei.

Procurei o dispositivo sobre a estante, um pequeno encaixe na madeira e desloquei-o, a estante se move lateralmente e mostra uma outra estante, com vinte centímetros de profundidade, prateleiras de vidro e iluminação automática. Parecia um armário de banheiro.

Ali não tinha nada além de frascos que pareciam remédios e cremes comuns, mas na verdade eram compostos hormonais super concentrados. Se alguém descobrisse e usasse indiscriminadamente, podia tornar-se irracional ou morrer.

As pesquisas de meu pai eram mais teóricas e estavam todas contidas em pendrives guardados ali, junto com os poucos concentrados que preparou. Esses concentrados foram colhidos durante anos, nos  partos aos quais assistia como anestesista.

Não era invasivo, nem percebiam que colhia o material enquanto anestesiava a parturiente pela coluna vertebral. Quando eu nasci, a pesquisa já estava quase completa, precisava só do componente humano, no caso minha mãe e eu. Antes mesmo de eu existir, ele já aplicava hormônios na minha mãe e quando estava sendo formada no ventre de minha mãe, ele continuou com um outro coquetel de hormônios.

Ele injetava no cordão umbilical que ligava a placenta ao meu corpinho. Não me pergunte como que não sei. Mas a experiência deu certo, transcendi. Evolui como ser humano, sem perder a humanidade. Só não sei como teria terminado, se não tivessem tirado a minha guarda do meu pai.

Agora preciso me estruturar em tudo que preciso fazer. Essa casa será o meu quartel general. No município ao lado, quarenta minutos de viagem, situa-se um dos laboratórios que quero investigar. O CEO desse conglomerado de laboratórios de pesquisas e indústrias farmacêuticas, tem seu escritório central ali e mora na cidade.

Pego os pendrives e fecho a estante, que desliza suave e silenciosa. Ela não toca o chão e por isso não arrasta e nem deixa marcas. Talvez por isso não tenham achado e não dava para ver a diferença na largura da parede, porque tinha um armário do outro lado, com um fundo falso.

Vou para o meu quarto, pego meu note e insiro um deles. A tela abre e aparecem várias pastas de documentos. Clico na primeira e encontro as primeiras pesquisas que ele fez. Assim vou abrindo todas elas e decorando rapidamente, em meia gora já vi e decorei tudo. Faço o mesmo com o segundo e destruo os pendrives.

Só então volto aos meus planos, preciso voltar à cidade vizinha e continuar minha investigação. Já estou com 24 anos e não foi fácil chegar até aqui. Os cientistas e pesquisadores não me liberaram depois dos primeiros testes, mas pelo menos, mudaram seu tratamento comigo. 

Me levaram para outro lugar, onde havia outras crianças, mas não podíamos interagir. Tínhamos boa alimentação, vestimentas, eram na verdade, uniformes, estudávamos e participamos de vários testes. Não me davam remédios ou injetavam substâncias, mas eu ficava atenta a seus pensamentos, para saber a reação correta que deveria ter as substâncias que colocavam em minha alimentação.

Assim fui escapando, meu organismo exterminou tudo, na medida do que era considerado normal para eles e várias vezes passei muito mal, mas aguentei firme até entrar na adolescência e ser internada num instituto para crianças, mantido pela empresa dona dos laboratórios.

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