Lembranças
Acordei chorando muito, soluçando e quase perdendo o fôlego. Aos poucos fui me acalmando, percebendo que foi um sonho que me trouxe à memória, os acontecimentos que me levaram embora desta casa.
Na época, eu só tinha sete anos e não tinha ideia das consequências desses acontecimentos. Me lembro do corre corre que foi, muitas pessoas entrando e saindo da casa. Levaram o corpo e por fim ficamos eu e meu pai que me sentou em seu colo para conversarmos.
Explicou que teríamos que contar para a polícia tudo o que tinha acontecido, mas que eu não devia contar nada do que nós fazíamos juntos em seu laboratório e que também não devia contar que me curava. Pois corríamos o risco de ser presos.
Eu era tão criança, que confundi tudo e acabei passando por uma criança desorientada emocional e mentalmente e foi isso que usaram para me tirar do meu pai. Levaram-me para uma clínica, fizeram vários exames e me fizeram tomar vários remédios. Fui ficando cada vez mais pálida, fraca e quieta.
Não interagia com ninguém e quando chegavam perto, rangia os dentes e fazia caretas para tentar afastá-los e quando não adiantava, mordia e arranhava quem chegasse perto. Não adiantava, me davam mais sedativos, até que não acordei mais.
Um dia, despertei sem sentir nenhum daqueles sintomas causados pelos sedativos e sem perceber, sorri. Olhei minhas mãos e pés e vi que estava solta. Vestia um vestido largo, branco e por baixo uma calcinha de malha branca.
Tentei levantar, mas estava muito fraca, fiquei sentada na cama olhando o quarto. Era todo branco e a porta cinza, não tinha mais nada ali, nem uma janela. De repente a porta foi aberta e me assustei. Um homem com avental branco entrou.
– Olá Grace, como está se sentindo hoje?
– Quem é você? – Olhei para ele em dúvida se podia confiar.
– Sou o doutor Martim, mas não sou médico, sou cientista como seu pai. – Explicou ele como se mencionar meu pai me fizesse confiar nele.
– Meu pai era escritor – sempre vi meu pai escrevendo e pesquisando e quando perguntava para minha mãe o que ele fazia, ela respondia: seu pai escreve querida, escreve!
– Sim querida, ele escrevia sobre suas pesquisas e descobertas científicas. Ele escreveu descobertas muito importantes para a física quântica e também sobre os efeitos hormonais no corpo humano. – Falou um monte, que não entendi nada.
– Não entendo nada disso. – Respondi e era verdade.
O homem saiu e trouxeram o café da manhã, que joguei fora no banheiro, porque se vissem que não comi, me seguravam e empurravam pela minha garganta abaixo, me deixando roca e ferida.
Vieram me buscar e levaram para uma sala branca, com uma mesa cinza e duas cadeiras. Na parede lateral, um imenso espelho, onde vi como estou magra e com olheiras. Meu cabelo parece uma palha e minha pele me faz parecer um fantasma, de tão branca.
Eu sei porque mudaram a tática de interrogatório, querem saber que experiências meu pai fez em mim e quais os resultados. Mas eles não vão conseguir nada de mim. E tem uma coisa que eles nem fazem ideia que eu faço: eu escuto seus pensamentos.
– Acho que essa criança é normal, até agora ela agiu como uma simples criança. – Pensou o homem de branco atrás do espelho.
– Essa criança tem que saber alguma coisa, seu pai deixou escrita uma experiência com uma criança e a única criança que era próxima a ele era a própria filha. – Pensava o cientista.
– Querida, você lembra de seu pai ter lhe dado alguma injeção, remédio ou fazer você brincar com alguns objetos diferentes? – Perguntou o que conhecia o meu pai.
– Meu pai era meu pai, me ensinava a ler e escrever, minha mãe brincava comigo de boneca. – Respondi, fingindo não entender do que ele falava.
"– Daqui a pouco ela vai pedir o pai e começar a chorar e chamá-lo. Esse kamilo é louco. "– Pensou o outro homem.
– Tente lembrar querida, é importante. – Ele insistiu.
– Não sou sua querida. Cadê o meu pai, porque ele não vem me buscar? Eu quero meu pai – comecei a chorar e me exaltar chamando meu pai – Pai, pai, cadê você? Eu quero meu pai! pai! pai! – comecei a gritar e bater na mesa.
Quando percebi que o cientista começou a ficar desconfortável e o homem do outro lado do espelho pensava em me injetar um calmante, aquietei e baixei a cabeça sobre os braços cruzados na mesa e continuei chorando baixinho.
– Mamãe, mamãezinha, me perdoa, se eu não tivesse pegado a faca, a senhora ainda estava aqui comigo. Papai vem me buscar, me tira daqui papai. – Murmurei de propósito para eles ouvirem e sentir pena.
A apelação emocional estava surtindo efeito, o homem já estava acreditando que sou uma criança normal. O cientista começou a ficar penalizado e envergonhado de estar abusando psicologicamente de uma criança.
Levantei a cabeça, com o rosto banhado em lágrimas e apelei:
– O senhor parece tão bonzinho moço, chama o meu papai pra me buscar, não aguento mais ficar aqui…
Ele olhou para mim sem saber o que fazer. O homem bateu com as juntas dos dedos no vidro chamando o cientista, que levantou e saiu. Abaixei a cabeça e prestei atenção ao que falavam, consegui ouvir bem.
– Ela é só uma criança comum, como você vai arrancar dela algo concreto sobre as pesquisas do pai. Você já leu e releu seus livros, já futucou tudo do computador dele, o que você quer mais? – Insistia o homem detras do espelho.
– Quero a verdade sobre essa pesquisa, sobre o aumento da capacidade cerebral através dos hormônios – respondeu o cientista.
– Tem uma maneira simples de descobrirmos isso, Martim, um teste de QI. Se ela acertar menos de 70%, você deixa ela em paz. O que me diz? – o homem é esperto.
– Tá bom, mas eu aplico, pois se ela tiver um QI alto, pode ler as cartas na sua lente de contato – falou o cientista.
– Mas os olhos também refletem e minhas lentes são gelatinosas.
– Bom, vamos fazer logo isso que está quase na hora do almoço. Pega o equipamento e as cartas. Vou prepara-la. – O tal Martim falou.
Ele voltou e entrou na sala com um sorriso.
– Moço? – Chamei-o.
– Meu nome é doutor Martim. O que foi? – Falou com irritação.
– Doutor Martim, tô com fome de comida. – Falei.
Ele riu e olhou pra mim com cara de suspeita.
– Você tomou o café da manhã e ainda não está na hora do almoço.
– Mas é que me dão um copo de leite e biscoito e eu não como porque me dá dor de barriga, eu gosto de comida.
– Como assim? Ninguém reportou que você não come o café da manhã.
– Porque eu jogo fora.
– Então você passa mal com leite e biscoitos? – Refletia ele.
– Ela está mentindo. Ela disse que não tomava remédios e nem injeções e agora diz que passa mal se come glúten e lactose. É claro que se ela tem esses problemas, tomava algum tipo de remédio – pensava.
– Qual remédio você tomava para esses problemas? – Tentou me pegar na mentira.
– Nenhum. Era só não comer o que me faz mal, era o que mamãe dizia. – Não vai conseguir me pegar nunca.
– Tá, tá, tá...Antes de almoçarmos, vamos só fazer um jogo, tá bom? – Claro né, fazer o que, me conformar e pronto.