Capítulo III
Depois que Matheus saiu para abrir a loja eu encarei o caçula e o convenci de que eu estava bem e que ele podia voltar depois que pegasse algumas ondas. Não era difícil convencer Ian a fazer qualquer coisa que quiséssemos.
E a única coisa que eu queria no momento era encontrar aquela garota de novo.
As notícias corriam rápido na ilha, essa era uma das vantagens de crescer em um lugar onde as pessoas tentavam se manter unidas, então ficou fácil encontrar o quarto dela, todos no hospital já sabiam o que tinha acontecido essa manhã na praia e alguns começaram a me chamar de herói. Eu não pensava desse jeito, na verdade me sentia bem estúpido por ter perdido tanto tempo para notá-la ali na praia.
— Obrigada, mas não precisa ficar comigo, juro. Você já fez muito. — ela repetiu, já tinha perdido a conta de quantas foram às tentativas de me convencer que estava bem sozinha.
Cá entre nós eu não sou flor que se cheire, então provavelmente ela ficasse mesmo melhor sozinha. Mas ela não sabia disso ainda, por isso aproveitaria o tempo que tivesse com ela.
— Eu ganhei o dia de folga, graças a você, então acho que vou ficar por aqui. — sorri debochado me acomodando ao seu lado.
— Ahh, fico feliz que eu quase morrer lhe rendeu um dia de folga. — ela se curvou em uma reverencia fingida. — Precisando pode me chamar.
Ela deu um sorriso contido que não chegou aos olhos, nunca chegava, o que eu via refletir neles era uma tristeza que tentava a todo custo esconder.
Geralmente eu era muito bom em ler pessoas, mas com Cris tinha uma barreira enorme escondendo, camuflando. Seus olhos às vezes transpareciam coisas boas, mas apenas por uma fração de segundo e logo depois ela estava de volta com a máscara sombria. Como quando eu disse que não iria a lugar nenhum, vi passar ali a surpresa e um brilho diferente, mas rapidamente o brilho sumiu.
Dava para notar que ela era boa em atuar. Há quanto tempo ela fazia aquilo? E mais importante por quê fingia tanto? Já que ela não deixava transparecer muito eu só tinha uma alternativa: perguntar.
— Mas falando sério agora, o que trouxe uma mulher linda assim a ilha?
— Férias! — ela afirmou com tanta animação, que parecia até querer acreditar naquilo.
Mas reparei que ela não estava falando a verdade, assim como sabia que ela não tinha entrado naquele mar apenas por descuido, era bem óbvio conforme ela andava na direção das ondas o que queria. Mas eu não estava ali para acusá-la.
— Acho que está do lado errado da ilha.
Sorri e esquadrinhei seu rosto, desci o olhar por suas sobrancelhas do mesmo tom castanho escuro da raiz de seus cabelos, a pele negra agora tinha ganhado um pouco mais de cor. Continuei gravando cada detalhe do seu rosto, o nariz fino e empinado, os lábios grossos, que estavam franzidos assim como o queixo redondo.
Cris era linda e eu me peguei buscando os olhos claros, os mesmos olhos que eu quis tanto desvendar quando ela estava desacordada, e ainda queria pois eram uma incógnita, tons de verde se misturavam ao mel, e o contorno escuro de sua íris deixavam ainda mais o ar de mistério e sedução.
— Porque eu estaria do lado errado da ilha? — sua voz firme e rouca, me trouxe de volta a realidade e eu soltei um pigarro, afastando o olhar do seu.
Esfreguei minha nuca desconcertado por ter sido pego encarando-a por tanto tempo, mas me arrependi no mesmo segundo quando os cortes das mãos arderam.
— Esse é o lado da classe trabalhadora, acho que a diversão pra quem está de férias fica do outro lado.
— Pensei que você e seus irmãos estivessem prestes a se divertir indo surfar antes que eu estragasse seus planos.
— Então a sereia aqui surfa? — perguntei curioso, ela não tinha cara de quem pegava onda, mas eu já tinha visto gente de todo tipo no mar.
A risada baixa, e ainda um tanto travada, dela preencheu o pequeno espaço e me atingiu em cheio, me fazendo abrir ainda mais o sorriso.
— A sereia? De onde veio isso? — Dei de ombros em resposta, não fazia ideia do porque a chamei assim, mas pensando bem combinava com ela. — Não, eu nunca surfei na vida.
— Então já sei o motivo de você ter aparecido em meu caminho.
— Para você me ensinar a surfar? Jura? — o deboche transbordava em suas palavras, mas o sorriso ainda estava ao fundo.
— Claro! Ou achou mesmo que tudo isso foi só para você conhecer um cara charmoso, boa pinta, bronzeado e divertido como eu? — abri meus braços mostrando meu corpo, dando ênfase em tudo o que falei e vi sei sorriso se alargar, Cris teve que morder o lábio para se segurar e não gargalhar.
— Esqueceu a parte do convencido.
— Não, não, só trabalhamos com a verdade por aqui.
Ela parecia mais a vontade, conversando e sorrindo, até meus seu corpo parecia mais relaxado, não sabia o porquê, mas aquilo me deixava mais leve, me dava esperança de que ela estivesse mais longe da dor que avistei em seu olhar essa manhã, mesmo que fosse apenas um pouco.
Sua língua surgiu, umedecendo os lábios rachados e o sorriso deu lugar a um bico tentador. Me peguei ainda mais hipnotizado por eles, a áurea de conversas bobas ainda estava ali, mas eu não conseguia fazer minha mente raciocinar e voltar ao assunto.
Ian entrou no quarto, puxando a cortina de forma brusca e quase nos fazendo pular no lugar.
— Ai está você, seu pilantra! — ele gritou e Lua apareceu ao seu lado, não foi nenhuma novidade que os dois estivessem grudados.
— Posso saber como ela entrou aqui?
— Ué, acha mesmo que a segurança aqui é tão boa assim? Lucas fez a maior vista grossa. — Ian disse confiante. Semicerrei os olhos em desconfiança, não acreditava naquela carinha inocente dele, eu usava o mesmo truque barato.
— Mas com certeza isso vai custar um desconto na loja. — é claro, só Lua mesmo para me dizer a verdade.
— Vou descontar do seu pagamento no final do mês.
Me virei para Cris quando ele começou a protestar e vi que ela acompanhava tudo com muito interesse, os olhinhos pareciam mais atentos e tinha um fantasma de sorriso em seus lábios.
— Isso não é justo. — Ian continuou a reclamar. — Eu só estou aqui por sua culpa, não te mandei dar uma de Capitão América e sair por ai salvando as pessoas.
Vi o segundo em que Cris absorveu as palavras daquele idiota e se remexeu na cama. Eu ia matar meu irmão, com toda certeza hoje Ian na sairia vivo. Virei a cabeça lentamente, deveria estar parecendo a menina do exorcista e, me perdoem os espíritos, mas estava me sentindo possuído nesse momento.
Irmãos mais novos, porque eles tinham que nascer?
— Iiii Ian, acho melhor você correr. — Lua falou baixo, mas todos nós ouvimos.
Só ai foi que ele pareceu se dar conta de Cris ao meu lado e para sua sorte conseguiu demonstrar arrependimento de verdade.
— Ela é a garota, não é? Foi mal ai, eu não quis parecer insensível. Sabe como é — ele colocou uma mão sobre a boca, tampando os lábios da minha visão, mas falou em alto e bom tom. — irmãos mais velhos são um pé no saco.
Eu pulei da maca, pronto para dar uns bons cascudos nele, podia aproveitar que já estávamos no hospital, pois ele ia tomar alguns pontos depois da surra que eu ia dar no fedelho.
— Corre! — Lua grito.
Ele só conseguiu dar dois passos para trás, antes de escorregar no chão, com os chinelos cheios de areia, caindo no chão de cara. Joguei meu peso em cima dele, fazendo questão de esmagar o pateta.
— Calminho ai, irmão. Qual é, você acabou de se machucar.
— Nem ouse colocar as mãos em mim ou meu peso vai ser o menor dos seus problemas. — avisei quando ele ameaçou segurar minha mão machucada.
— Socorro! — gritou, fazendo um escândalo maior do que o necessário e se sacudia tentando se esquivar de mim. — Sai de cima de mim cara, tá me esmagando, sua ameba!
Quanto mais ele gritava, mas eu esfregava o seu rosto no chão, cheguei a dar alguns pulinhos em suas costas o ouvindo reclamar ainda mais, pela falta de ar. Mas foi a gargalhada espontânea de Cris que me fez parar de tripudiar em cima dele e a encarar surpreso.
A risada mais gostosa que eu tinha escutado em anos, soava como música para os meus ouvidos, de um jeito contagiante, me levando a rir também.
Mas bastou essa distração para Ian se virar, me derrubando com as costas no chão ao seu lado.
— Eles são sempre assim? — ouvi Cris perguntando para Lua enquanto eu recuperava o fôlego.
— Isso aqui? Não é nada, espere o mais velho chegar.
— Posso saber o que está acontecendo aqui? — a voz da enfermeira fez todos nós ficarmos quietos no mesmo instante. — Isso aqui é um hospital, não um passeio na praia.
— Eu posso...
— Você não pode nada, lindinho! — ela me cortou e se virou para Ian e Lua, os fuzilando com o olhar. — Vocês dois para fora, agora. Cristina precisa de descanso. E você mocinho — seu olhar duro focou em mim. — Também devia estar descansando, se está tão bem para fazer gracinhas pelo hospital, já está bem para ganhar alta.
Sem dizer nem mais um pio, Lua e Ian saíram da sala rapidamente, nos deixando sozinhos.
Ela podia me mandar para a maca onde eu deveria estar, mas não me faria deixar o hospital sem que eu tivesse a certeza que aquela garota ficaria bem sozinha.
— E você ai...
— Ele fica. — Cris bradou nos pegando de surpresa. — Não pode mandar o meu acompanhante embora.
Levou um segundo para que as palavras dela fizessem sentido aos meus ouvidos e eu sorri largo, enquanto a enfermeira olhava com desconfiança de um para o outro, Cris segurava o riso.
— Vou ficar de olho em vocês dois. Uma gracinha e os dois estão na rua. — ela ergueu o dedo em riste e apontou de um para o outro, dando ênfase no aviso, antes de sumir por detrás da cortina novamente.
E eu fiquei ali encarando a garota, que agora tinha um sorriso sapeca nos lábios.
— Então quer dizer que eu sou seu acompanhante?