Capítulo II
Eu ouvia o bip incessante da máquina, o mesmo bip que ouvi durante os últimos meses, a música doentia de fundo, lembrando-me o tempo todo de que a vida era um sopro.
— Como é o seu nome, querida? — perguntou a enfermeira e acredito que ela seja a décima pessoa a perguntar isso. — Não achamos documentos com você. Se não se lembra do seu nome faz um sinal com a cabeça, que vamos acionar a polícia e prometo encontrar sua família.
Minha família, eu quis rir daquelas palavras. A última coisa que eu queria no momento era encontrar minha família.
— Meu nome é Cristina. — falei sentindo minha garganta doer e arder com o esforço para falar.
Tinha me mantido calada por não sei quanto tempo, não falei nada na praia, muito menos quando cheguei ao hospital e depois de ter tossido, colocando tanta água para fora, tudo o que eu queria fazer era ficar em silêncio.
— Você fala, mocinha! — comemorou, mas garanto que se ouvisse tudo o que eu realmente tinha guardado ela não ficaria tão feliz assim. — E sua família, como podemos achar?
Lá vinha ela de novo com a ideia de contatar minha família. Eu só queria um pouco de paz e sossego e não iria encontrar isso ao lado da minha família.
— Eles não são daqui, estou de férias com algumas amigas — menti descaradamente, qualquer um que olhasse bem em meu rosto veria que eu não estava de férias coisa alguma.
— E onde podemos achá-las? Alguém precisa saber que você está aqui.
Eu tinha que dar créditos a ela, a mulher era insistente no que fazia, devia ser muito boa no seu trabalho, já que tinha conseguido de mim o que nenhum dos médicos havia conseguido esse tempo todo.
— Minhas amigas devem estar desmaiadas de tão bêbadas em algum lugar, te garanto que não vão sentir minha falta por um bom tempo — lhe assegurei e tive certeza de ser convincente o suficiente, para que ela desistisse de contatar alguém por hora. — Não se preocupe, prometo que ligo para alguma delas antes de sair daqui. E por falar nisso quando vou ter alta?
Não devia fazer mais de duas horas que eu estava ali, mas eu não via a hora de colocar meus pés para fora daquele lugar, o quarto triste e vazio no meu apartamento era preferível ao hospital.
— Calminha aí, mocinha. Você engoliu muita água, de verdade esteve morta por alguns minutos. Vamos deixar você em observação depois de drenar essa água aí.
Eu bufei irritada me virando na maca e senti as feridas em meu corpo reclamarem, mesmo com curativos a ardência não era algo com que eu estivesse acostumada.
Pra falar a verdade aquele quarto de hospital, onde tudo o que me separava das outras pessoas era uma cortina, estava totalmente fora da minha realidade. Uma ligação e tudo aquilo poderia ser mudado, um toque e tudo do bom e do melhor seria arranjado. O dinheiro realmente comprava coisas bem melhores, talvez até uma nova vida, mas não traria as pessoas que amo de volta, isso era um fato.
— Oi. — A voz masculina invadiu meus pensamentos, mas me recusei a mudar de posição e sentir aquela dor de novo, quem quer que fosse não valia o esforço.
— E você quem é? O horário de visitas ainda não foi liberado. — Ao menos para isso era bom à insistência daquela mulher, torcia para que tirasse qualquer um da sala e me deixasse sozinha.
— Eu sou paciente aqui. — Um silêncio se apossou da sala por poucos segundos.
— Foi você que salvou a Cristina? Rapaz, você foi um verdadeiro herói hoje.
Qualquer reclamação que estava passando por minha mente naquele segundo se calou e eu ignorei a dor, me virando depressa. A enfermeira tampava a maior parte do meu campo de visão, mas eu conseguia ver a cabeça, com alguns tons de loiro.
Não tinha conseguido falar nada a ele quando voltei a mim estava assustada, mas se tivesse em condições de falar com certeza teria perguntado se ele era um anjo. A luz do sol nascendo parecia um halo em volta de sua cabeça, os cabelos loiros refletiam com raios de sol, enquanto ele me encarava com aqueles olhos verdes, que pareciam felizes demais por me ver.
Isso sem falar de suas palavras: Agora tudo vai ficar bem, tudo vai ficar bem.
Como não tinha reconhecido aquela voz?
— Oi — falei tentando conseguir a atenção deles e finalmente consegui uma visão completa do cara a minha frente.
O rosto bronzeado se abriu em um sorriso que o iluminou, a regata verde refletia em seus olhos e eu vi as faixas em seus braços e mãos, os shorts que ele usava parecia sujo de mais pela areia, assim como os pés, calçados com um chinelo preto simples.
Ele deu alguns passos em minha direção, mas parou no meio do caminho, parecendo um tanto incerto se deveria se aproximar ou não.
— Oi, como está se sentindo?
— Surpresa por ainda estar viva — falei antes que conseguisse ponderar nas palavras.
Aquilo pareceu chocá-lo ainda mais e o arquejo que a enfermeira soltou ao fundo me fez lembrar que ela ainda estava ali.
— Você...
— Quer dizer, eu me lembro de lutar contra a correnteza e não conseguir sair, foi ficando mais difícil, até que apaguei. Realmente acreditei que estava morta e que talvez estivesse no céu quando vi seu rosto.
Menti para meu próprio bem, não precisava que ela me internasse ou algo do tipo, porque eu representava um perigo a mim mesma. Eu apresentava, mas isso não era novidade para as pessoas que viviam a minha volta. Era apenas “mais uma fraqueza que a Cristina precisa aprender a lidar”.
— Sem dúvidas ele foi enviado do céu, mais um pouco e você não estaria aqui. — ela disse sorrindo antes de se afastar e nos deixar “sozinhos”.
Esperei que o homem a minha frente falasse alguma coisa, mas ele apenas me encarava, os olhos vidrados em meu rosto, acompanhando cada movimento que eu fazia com um certo fascínio.
— E você está bem? — questionei, apontando para seus braços cobertos do que eu deduzi ser a mesma pomada que passaram em mim, e torcendo para que ele parasse de me olhar daquele jeito.
Ele ergueu os braços, virando as palmas das mãos de um lado para o outro, como se analisasse os machucados pela primeira vez.
— Não foi nada de mais. Você estava presa em um coral e eu tive que enfiar a mão para te tirar de lá.
— Você enfiou a mão nos corais para me soltar? — eu não conseguia acreditar, poucas pessoas eu conhecia que seriam capazes de fazer isso por mim e, tirando minha mãe, todas as outras só fariam se estivessem sendo pagas.
— Era isso ou puxar suas pernas e lhe rasgar mais ainda. — vi quando seus olhos desviaram para minhas pernas cobertas. — Você já estava bem machucada quando te achei, acho até que tentou se soltar antes de apagar.
Disso eu duvidava, não me lembrava de ter ficado presa nos corais, provavelmente já estava desacordada quando me enrosquei lá. E mesmo que estivesse acordada quando aconteceu, eu não iria lutar, afinal era aquilo que eu queria, não é? Me afogar até a morte.
— Porque me ajudou daquele jeito? Você não me conhece, porque colocaria sua vida em risco por uma desconhecida?
Se ele soubesse quem eu era com certeza meu pai já teria me encontrado e me arrastado de volta para a cobertura. E se ele não me conhecia e não era dinheiro o que ele queria, porque motivo tinha me salvado?
— Seu nome é Cristina, certo? — minha esperança se abalou um pouco. — A enfermeira me disse, mas se estiver mentido tudo bem, posso te chamar do que preferir. Posso me sentar aqui?
Eu concordei com a cabeça no automático, continuei calada o encarando com desconfiança, esperando o que ele diria a seguir com ansiedade. Meu pai era muito ardiloso quando queria algo, por isso eu precisava me manter com o pé atrás.
— Seu nome é?
— Joe. Estava na praia esperando meus irmãos, nós temos esse ritual de assistir o nascer do sol e depois surfar juntos aos primeiros raios de sol. Eles estavam atrasados e eu estava tão concentrado em reclamar com eles que demorei a ver você... queria ter chegado um minuto antes e conseguido dizer que não deveria entrar ali.
Meus olhos dobraram de tamanho, ele estava na praia antes que eu entrasse na água. Provavelmente tinha visto o que eu fiz, a atitude desesperada da pessoa fraca que eu era. Mas ele não tinha ideia que suas palavras não mudariam meus pensamentos naquele momento, ninguém conseguiria mudar.
— Eu fui uma idiota descuidada, só isso.
— Não sei o que estava fazendo ali sozinha, mas... — ele parou o que tinha para dizer e sacudiu a cabeça, afastando as sombras em seus olhos para longe, antes de abrir um sorriso largo. — Não sei, só queria ter certeza de que está bem agora.
Ele desconfiava de mim, dava para notar no sorriso que me lançou. Mas também quem não desconfiaria depois de ver uma pessoa se jogando no mar agitado?
— Você me prometeu que vai ficar, não foi? — sua testa vincou em clara confusão, então tratei de explicar. — Quando os médicos chegaram, você me disse que tudo ficaria bem.
Seu sorriso diminuiu, parecendo tímido tomou seus lábios, o deixando ainda mais lindo e me fazendo sorrir de verdade pela primeira vez em muito tempo.
— E onde está o seu ou a sua acompanhante? — ele perguntou varrendo o cubículo com os olhos.
Não havia nada ali além da cama branca, o aparelho irritante e a cortina que nos deixava, de certa forma, sozinhos em uma bolha.
— Não tem ninguém, sou só eu aqui.
A confusão tomou seu rosto por completo, dessa vez até os lábios ele franziu.
Joe era lindo, não tinha nem o que dizer, nunca tinha visto alguém tão bronzeado e depois de saber que ele é um surfista, todo o estilo largado e praieiro estava explicado. Os olhos claros se fechavam quase completamente quando ele sorria, aquele sorriso verdadeiro, espontâneo e, que pelas rugas na lateral da bochecha, deveria fazer parte do seu dia a dia.
— Está dizendo que ninguém vai vir ficar com você? — ele questionou incrédulo.
Se ao menos soubesse o quão sozinha eu estava, não só aqui, mas na vida.
— Estou dizendo que sou só eu na vida, não teria como alguém vir ficar comigo. — vi o momento em que seus olhos ficaram turvos e escuros, mas antes que me atentasse a mais detalhes, me lembrei da mentira que havia contado. — Mas não pode falar isso para a enfermeira, ela acha que estou na cidade com algumas amigas e que logo alguém vai aparecer. Foi o único jeito de fazer ela me deixar em paz. — dou de ombros sem saber mais o que dizer.
Aquilo estava se tornando uma bola de neve, eu estava jogando uma mentira em cima de outra. Só esperava que tudo acabasse logo e que ninguém descobrisse a verdade.
— Que bom que mentiu para ela e não para mim, pois eu não desistiria tão fácil assim.
— O que você quer dizer?
— Que te deixar em paz está fora de cogitação.
Como se para enfatizar o que tinha dito ele se acomodou ainda mais, jogando a outra perna sobre a maca e ficando mais próximo de mim.
Aquilo não ia dar certo, não tinha como dar, eu ia precisar de qualquer brecha possível para me livrar dele. A última coisa que queria era um desconhecido na minha cola, tentando ser legal comigo, especialmente depois de ter assistido minha tentativa de... eu não conseguia dizer a palavra, não sabendo tudo o que ela significava.
Se minha mãe estivesse aqui o que ela pensaria de mim? O que ela diria por ver a única filha agindo desse jeito tão autodestrutivo?