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Quatro

Tentei não pensar no assunto, enquanto levava Júlia para escola, enfrentava o ônibus cheio e andava para a casa da doutora Gabriela.

Era muito dinheiro para ignorar. Dinheiro o suficiente para pagar metade do que estava devendo e usar a outra metade para investir no meu futuro e da minha filha. Só que... ainda era um pouco radical para mim entrar naquela, já faia um bom tempo que não havia tido relação sexual com ninguém, deveria estar virgem novamente.

O primeiro homem que tive foi Mário e ele praticamente fez tudo, me sentia uma boneca de pano em suas mãos, pois ele colocava como ele queria e fazia como ele queria. Como é que eu iria transar com uma pessoa, que deveria ser bem mais experiente que eu?

Não iria dar certo. Com certeza. Tudo estava indicando que não iria. Eu só iria passar vergonha e meu tempo.

Novamente a dúvida recaiu sobre mim e me vi sem saber o que fazer.

- Luíza - diz Gabriela, quando entro no apartamento - Oi. Bom dia!

- Bom dia, doutora Gabriela - digo me dando conta de que já havia chegado e nem havia percebido - Está tudo bem com a senhora?

- Já disse que não precisa me chamar de senhora ou doutora. Sou como você - Não tinha dúvidas que ela não era como eu, não mais, ela não tinha que se preocupar com dinheiro, muito menos com um traficante. Eu sim.

- É que eu esqueço.

-  Então trate de lembrar - diz de forma divertida.

Meus olhos vagam pela cozinha limpa e organizada, que nem parecia que quatro pessoas moravam ali. Como eu disse antes, o único lugar que parecia ter toda a bagunça do apartamento, era o quarto de Luan.

César estava tomando seu café da manhã, apenas me olha e me cumprimenta com um aceno de cabeça, não se dando ao trabalho de me dirigir qualquer palavra.

Eu também não fazia questão, temia que deixasse transparecer alguma coisa e Gabriela acabasse percebendo.

- E a sua filha, como está? - Ela pergunta, terminando o café da manhã dela - Júlia, não é o nome dela? São tantos nomes para lembrar que, as vezes até inverto os nomes aqui. Chamo o Luan de Lucas e o Lucas de Luan - Ela sorri com o próprio comentário.

- Ela tá bem. Deixei ela na escola.

- E os estudos? - Ela me olha no mesmo instante - Está estudando, não está?

- Claro! Todas as noites depois da janta.

- Isso, continua assim, Luíza. Não desiste. Você vai ver, lá na frente vai ter sua recompensa.

- Assim como você teve - César comenta, sem olhar para ela - Ela era advogada antes, sabia? Trabalhava num escritório onde o chefe dela era o verdadeiro diabo - diz me olhando dessa vez - E ela conseguiu, passou no concurso começou a advogar para quem não tinha dinheiro... - Ele faz uma pausa, dessa vez olhando para Gabriela que tinha os olhos fixos nela - Fez outro concurso e passou para juíza - diz por fim, colocando um breve sorriso no rosto.

Eu não queria ser como Gabriela, só queria terá mesma quantidade de dinheiro que ela tinha, não ter que me preocupar com mais nada que tivesse relação com dinheiro.

- Se ela consegue - Ele continua, depois de alguns segundos - Você também consegue. E Gabriela também veio de uma favela.

- Comunidade, César - Ela o corrige séria, tomando o restante do café de sua xícara - Não usa a palavra favela. Comunidade soa bem melhor.

- Eu sei. Me desculpa.

Ela inspira profundamente, olhando para mim.

- Só continua estudando, Luíza. Logo vai ser o ENEM, você vai fazer a prova e vai se sair muito bem, tenho certeza, é esforçada e se interessa sempre em progredir - Lhe dou um leve sorriso, agradecida por ela pensar daquela forma em relação á mim.

O silêncio se instala por alguns minutos, continuo parada, com a minha dúvida ainda persistente na minha cabeça. Enquanto ainda não não prestava o ENEM e conseguia realizar minhas metas, ainda tinha que lidar com a minha realidade.

- Gabriela - Chamo baixo, atraindo o olhar dela de imediato - Eu preciso de um conselho.

- Um conselho? Claro, Luíza. Se eu puder ajudar.

Limpo minha garganta, notando que César tinha o olhar fixo em mim, querendo saber qual era o conselho que eu queria e sobre o quê.

- Eu... estou...com algumas contas acumuladas e... - Automaticamente, sem ao menos esperar que eu termine, César balança a cabeça de um lado para o outro, desaprovando, diferente de Gabriela que mantém os olhos fixos em mim, esperando que eu terminasse - estava pensando em ir para um segundo emprego, é uma vez a cada quinze dias e eu não tenho que fazer muita coisa. O problema é que nunca fiz o que estão pedindo.

Gabriela ergue as sobrancelhas, respirando pela boca, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.

- Se você não sabe, não custa nada aprender. Ninguém nasce sabendo tudo, Luíza. Pelo menos pagam bem?

- 3 salários.

- Mais do que eu - Ela sorri - Você poderia até parar de trabalhar aqui em casa e trabalhar somente nisso.

- Não! Não quero - digo rapidamente - Quero continuar trabalhado aqui, cuidando da sua casa.

Gabriela inclina a cabeça para o lado, sorrindo sem mostrar os dentes.

- Mas você não vai passar o resto da sua vida aqui em casa, trabalhando para mim. Quero que você voe, que tenha sua própria independência financeira e este trabalho, sinceramente, no meu ponto de vista, é muito melhor - Ela levanta, se apoiando na cadeira - O que exatamente você tem que fazer?

Eu espero que a minha cara não tenha transparecido nada. Não tinha como eu dizer que iria ter visitas intimas com um presidiário, logo ela que prendia bandidos, ela não iria aprovar e também não iria desaprovar, pois a vida era minha e eu poderia fazer qualquer coisa que eu quisesse, mas isso com certeza abalaria a confiança dela em mim. Então, eu não queria correr o risco, iria ocultar isso dela, até eu conseguir pagar toda a minha dívida com o Índio e depois poder voltar para a minha vida.

Era só o que eu queria.

- Cuidadora - digo a primeira coisa que vem na minha frente - A filha dele precisa fazer um curso de capacitação duas vezes ao mês e não tem ninguém para ficar com ele.

- Para a função, o preço está ótimo e não se preocupa, você só tem que se atentar as orientações dela que tudo irá dar certo.

Então basicamente só tinha que prestar atenção no que ele gostava, que tudo daria certo. Então, não era tão difícil quanto estava imaginando, só tinha que manter minha mente clara e pensar com mais clareza ainda que tudo daria certo, eu teria o dinheiro que precisava e fim.

- Mas, Luíza, se está precisando de dinheiro, era só me dizer. Eu poderia adiantar alguma coisa pra você, sei lá - diz Gabriela, parecendo incomodada - E não sai por aí procurando emprego, quando deveria estar dando atenção para sua filha.

- Ela está certa em ter que procurar emprego - diz César - Se você ficasse dando adiantamento, ela acabaria trabalhando de graça pra nós e ela não iria querer isso.

- Claro que eu trabalharia - digo sem pensar duas vezes - Nunca faria algo do tipo com vocês - Não sei de onde ele havia tirado que, se Gabriela me ajudasse com os adiantamentos que, depois eu não iria mais voltar para trabalhar. Eu dependia exclusivamente daquele emprego, não podia cuspir no prato que havia comido.

- César - diz Gabriela, o repreendendo.

- Só disse o que pensava.

- Se você precisar de alguma coisa, qualquer coisa, Luíza. Pode me pedir - Ela finaliza, ressaltando que estava disposta em me ajudar.

Dou aquela conversa por encerrada, um pouco magoada pelo comentário de César. Todo aquele tempo ali e ele ainda me tratava como uma estranha, alguém que sempre tinha que viver sobre vigilância, pois caso descuidasse, poderia roubar alguns dos objetos caros dali e vender na favela que eu morava. Deveria ser isso que favelados faziam na cabeça dele, pois nem sabia se expressar, sendo estudado.

Em momentos como aquele, sentia que meu lugar não era ali. Que todo aquela riqueza ao meu redor, só estava fazendo com que César ficasse de olho em mim, se não tivesse câmeras espalhadas por aquela casa, eu mudava meu nome.

Começo meu trabalho sem a animação costumeira, começando pelo quarto do casal como sempre. Estava tudo como no dia anterior, arrumado e limpo, só precisei aspirar tudo e tirar o pó.

O próximo quarto foi o de Lucas.

- Oi - digo baixo, entrando no quarto, o vendo arrumar os livros sobre a escrivaninha.

- Oi, Luíza. Bom dia.

- Já tomou café? Seus pais já devem ter terminado.

- Só o básico - Ele pega a xícara vazia, andando na minha direção.

Dou um meio sorriso, o observando sair do quarto. Assim como no dia anterior, estava tudo arrumado e só fiz o mesmo procedimento anterior.

O que me surpreendeu foi encontrar o quarto de Luan intacto, como se ele nem tivesse dormindo ali e eu sabia que não, pois o vi sair de casa logo após a briga com o pai. Em meio a todas aquelas brigas, só temia que aquele menino acabasse fazendo alguma merda.

Estava nítido para mim que Luan não tinha a mesma cabeça do irmão, ele era diferente, as pessoas naquela casa deviam fazer como Gabriela e aprender lidar melhor com ele.

- Oi, Rosana - digo entrando na cozinha, cumprimentando a cozinheira da casa que, por sinal fazia a melhor comida que já havia comido até então - Viu o Luan hoje?

- Oi, Luíza - Responde, mexendo uma panela - Vi não. Dona Gabriela está procurando por ele?

- Não... eu fui limpar o quarto dele e ele não dormiu em casa - digo me servindo de água.

- A gente sabe como é o Luan. O Luan sempre foi mais agitado, conheço esses meninos desde sempre e digo isso com toda certeza.

- Faz muito tempo que trabalha aqui?

- A dona Gabriela me chamou assim que adotou eles.

- Então você conhece eles bem.

- Conheço sim. E digo, Luan não é muito certo da cabeça, além de ter tido vários problema de saúde quando era pequeno.

- E aa foto daquela menina no quarto da Gabriela? - Minha curiosidade fala mais alto, mesmo eu sabendo que poderia ser uma afilhada dela, sobrinha...

- Que menina?

- Tem um porta-retrato com uma fotografia de Gabriela e uma menina, mas não é de agora - Rosana continua se mexendo de um lado para o outro - Gabriela tem outra filha?

- Até onde eu sei não. Quando cheguei aqui, só tinha os meninos.

Então tecnicamente podia ser qualquer pessoa, menos filha de Gabriela. Eu queria poderia entender aquela família, acho que por que não tinha uma mesmo, igual de Gabriela, então por causa disso me sentia no direito de tentar entender eles.

- Eu queria entender melhor tudo isso.

- Se eu fosse você, nem tentava. Eles são... qual é aquela palavra? Complexo demais. Cada um tem um problema individual, uma característica que os domina, começando pelo senhor César. Ele não permite que a dona Gabriela saiba de tudo que acontece nessa casa na ausência dela - Ela faz uma pausa, me olhando - O quê eu acho errado, ela tinha que saber o que acontece entre ele e o filho dele.

Eu achava que era só eu que pensava daquela forma, mas pelo jeito não.

- Eles sempre brigaram?

Ela balança a cabeça de um lado para o outro lentamente.

- Não. A verdade é que Luan sempre foi mais apegado á dona Gabriela e isto de certa forma, irritou César. Ele queria que o menino fosse independente, como o Lucas.

Não tinha como os dois filhos serem iguais,, mesmo tendo compartilhado a mesma barriga da mãe e sendo gêmeos não idênticos, não tinha como ninguém ser igual a ninguém e achava que César saberia disso. Mas pelo visto, eu estava bem enganada mais uma vez.

- Quer um conselho, Luíza? Continua não s envolvendo. Se você presenciar alguma coisa, finja que não viu. Não irá adiantar nada você ficar preocupada, quem deveria estar, não está.

Mesmo ali sendo meu trabalho, não tinha como não me apagar á eles, eles me tratavam muito bem e eu queria ajudar eles de alguma forma também, mas já vi que não tinha como ajudar. Havia algo acontecendo que eu não fazia ideia e não sabia como parar ou avisar Gabriela. Talvez o melhor, fosse fazer o que Rosana havia aconselhado, não permitir que a minha vida se entrelaçasse com a deles.

Sem ninguém em casa, meu trabalho fluiu mais rápido que o de costume. Ao meio dia, já não havia mais nada para fazer, além de sentar para almoçar. César e Gabriela não demoraram  para chegar, mas quando chegaram, Rosana não hesitou em colocar a mesa para eles.

No término do almoço, ajudo Rosana com o almoço e depois termino meu expediente. Ainda estava na dúvida se havia tomado a decisão correta e se não tivesse? Havia uma grande chance disso acontecer e eu acabar pior do que já estava.

Pelo horário, peguei os ônibus mais vazios, o que foi até bom, pois permitiu que eu pensasse melhor. Era estranho chegar cedo do trabalho, pois via a movimentação do lugar que eu morava durante o dia.

- Já chegou? - Vaneide pergunta ao me encontrar em casa.

- Hoje foi rápido lá.

- Aí eu com um serviço desse - Ela sorri - E você vai mesmo? Ver ele lá? - Eu já tinha dado minha palavra que sim, não ficaria bem se eu dissesse que havia mudado de ideia.

Não tinha para onde correr, havia dito que iria, então eu teria que ir.

Respirando fundo, assinto, segurando a alça da bolsa.

- Vou sim.

- Vá mesmo, Luíza. Você seria muito idiota se deixasse essa chance passar, mandaram eu ver uma dessas novinha mas, depois que ouvi sua conversa com o piolho, decidi falar com você.

Apesar de não ser o convencional, pelo menos ela havia se lembrado de mim.

- Obrigada mesmo assim.

- Precisa agradecer não.

Entro em casa, soltando o ar dos pulmões, feliz por não encontrar Mário por ali. Vou até a cozinha, bebendo um copo de água em frente a pequena janela, vendo passar na rua o Lu, acenando para ele.

Era no bar dele que Mário passava boa parte da vida dele, bebendo o máximo que podia e gastando o dinheiro que não tinha. Lu diferente dele, era um cara legal, trabalhador, havia assumido o bar da avó após ela não conseguir mais lidar com tudo e ele como um bom filho, bom neto, ajudava ela dá melhor forma que podia.

Estava ali mais um caso de irmãos que não se pareciam nem um pouco. Lu tinha uma irmã, Larissa, que conseguia ser pior que Luan e que vivia dando dor de cabeça para ele que, fechava o bar para procurá-las no bailes ou em outros lugares. Ele se sentia responsável em cuidar dela,, de protegê-la e eu sentia inveja disso, também queria que alguém fosse assim comigo, que pelo menos se importasse se estava viva ou não. Mas eu sabia que isso nunca iria acontecer, sempre só seria eu e Júlia, somente, lutando por algo melhor.

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