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Três

Apesar de tudo, a melhor parte do dia, era quando eu voltava para casa. As vezes estava tão psicologicamente cansada de tanta desavença na casa da doutora Gabriela que, só queria ir me afastar de tudo aquilo.

Não conseguia entender como uma família era tão desunida até aquele ponto, e ela não sabia de nada, simplesmente nada, pois César fazia questão de esconder dela e manter aquela sensação de paz e tranquilidade dentro da família.

Só não sabia se César estava certo ou não.

A volta para casa era igual a ida, ônibus cheios, pessoas esgotadas do dia e só a vontade de chegar em casa. No ponto de ônibus ainda precisava andar algumas ruas até chegar na mesa casa, subir a rua principal que era íngreme e fazia os joelhos doerem de propósito.

Mas quando eu entrava na rua que morava, sentia como se o cansaço do dia desaparecesse e só sobrasse a vontade de ver Júlia de novo.

- Vaneide! - Chamo no portão ao lado do meu. Vaneide era a vizinha e ela sempre buscava a Júlia e a deixava em sua casa até eu voltar, já que Mário nunca podia buscar a própria filha na escola e nem ficar algumas horas com ela até eu chegar.

- Oi, mulher - diz ela ao abrir a porta - Júlia, suave chegou - Avisa, antes de andar até o portão médio

Vaneide tinha a mesma altura que eu, mediana, porém tinha mais corpo, usava roupas mais chamativas e tinha um jeito próprio. Era casada e diferente de mim, o marido ajudava em casa e não achava ruim ela ficar em casa com os filhos.

Júlia não demora para aparecer, tomada banho e provavelmente já alimentada. Vaneide cuidava da minha filha da mesma forma que cuidava dos filhos dela e eu era grata por isso, por saber que alguém cuidava da minha filha na minha ausência.

- Ela deu trabalho? - pergunto acariciando a cabeça de Júlia.

- E Júlia lá dá trabalho, Luíza? - diz Vaneide, colocando as mãos na cintura - Queria ter duas Júlia em casa.

Conhecia a minha filha e sabia o quão criança ela conseguia ser, mas sempre gostava de lhe dizer que nas casas dos outros tinha que se comportar, que só podia brincar do jeito que ela gostava na casa dela e ainda bem que ela entendia. Entendia que eu precisava de Vaneide para buscá-la na escola.

- Como foi lá hoje?

Dou de ombros, não querendo contar o que havia acontecido. Não podia, da porta para fora tudo que acontecia naquela casa, tinha que ficar lá, não era meu direito de contar nada.

- Normal. Aquele emprego é uma benção.

- E que benção. Queria arrumar um desse - Ela olha para o final da rua - As vezes é uó ficar dentro dessa casa cuidando de criança,  fazendo as mesmas coisas de sempre.

- E eu queria passar algum tempo com Júlia. Não trabalhar tanto.

- Melhor coisa que tem no mundo é trabalhar, Júlia

Larga a mão de ser boba, não depender de macho nem pra comprar um absorvente - Eu entendia o lado dela e realmente ela tinha razão. Gostava da minha independência, de não depender de Mário para comprar absolutamente nada.

Muitas vezes havia visto conhecidas ali mesmo da rua, sendo humilhadas pelos companheiros, pelos pais, por causa de dinheiro, por quererem determinado alimento e simplesmente ouvirem um não, mesmo sabendo que a pessoa em questão podia dar. Parecia que alguns maridos faziam questão de negar cinco reais, dez reais... vendo a esposa completamente cativa á eles, comendo exatamente o que ele queria.

Era exatamente pelo o que não queria passar, muito menos minhas filha. Preferia trabalhar de segunda a sexta, ser torturada pela saudade da minha filha e a culpa por não estar por perto, em vez de me humilhar para Mário, pedindo alguma coisa ou outro homem.

Só queria que a maioria das mulheres pensassem como eu, mesmo tendo ao seu lado um verdadeiro príncipe que fazia questão de cumprir seu papel como homem.

- Então procure um, Vaneide - Proponho.

- E quem vai cuidar dessas crianças, hein? Teria que pagar e acabaria trabalhando só pra pagar a pessoa pra cuidar dos meus filhos - E mais uma vez ela tinha razão, eu até aquele momento, não estava sendo obrigada a isso. Júlia ficava a manhã inteira na escola e depois, o restante do dia na casa de Vaneide até eu chegar. Em poucos anos, quando ela já pudesse ir sozinha para a escola, já não iria mais precisar de Vaneide e poderia se "cuidar" sozinha.

Solto o ar dos pulmões, olhando para casa, cujas luzes já estavam acesas.

- Ele chegou a pouco tempo.

- Devia estar em algum bar.

- E estava, desde da hora que fui buscar as crianças.

Não me surpreendia mais aquele comportamento do Mário. Ele vivia uma vida de solteiro, e era, pois já não tínhamos nada há anos, desde antes de Júlia nascer e pretendia ficar daquela forma. Duvidava que iria encontrar um dia um homem que me amasse, me respeitasse e que quisesse permanecer ao meu lado.

E tinha certeza que iria ter trabalho para encontrar esse homem.

- Vou deixar você descansar, tenha uma boa noite - digo seguindo Júlia que já havia aberto o portão de casa e entrado correndo.

- Só sabe andar correndo - Mário resmunga deitado no único sofá da casa, que havia ganhado de segunda mão e que já estava pedindo pata ser trocado.

- Ela está na casa dela - digo passando por ele.

- Alugada, né?

- Mas quem paga o aluguel todo mês sou eu - Lembro, já usando aquela oportunidade para alfinetá-lo mesmo sabendo que não teria muito efeito sobre ele.

Júlia vai direto para o quarto que dividimos, o único quarto, enquanto Mário, já estava praticamente em seu quarto que, era a sala. Para mim, depois de todos aqueles anos, ainda era difícil morar na mesma casa que Mário morou com a ex mulher, a maioria dos móveis ali, eram delas, mas que ela não fez questão de levar, apenas as roupas mesmo. Acho que a raiva, o ódio, por Mário era tanto que ela não quis nada que ele houvesse tocado ou usado e eu a entendia, entendia muito bem agora.

Mário não era essas coisas e duvidava que aquele comportamento dele tenha sido apenas comigo. Pois, ela não pensou duas vezes em ajuntar suas coisas e ir embora. Ele deve ter ido atrás dela, implorado para voltar para ela e contado que havia sido enganado e que não tinha nada haver com o que estavam dizendo. E ela deveria ter sido esperta o suficiente para continuar longe dele.

Uma pena que também não fui esperta o suficiente e acabei naquela situação, presa com um homem inútil, que não agregava em minha vida em nada. Pelo menos, diferente das outras mulheres, ela não me culpou pelo comportamento do marido, não achou que a culpa era inteiramente minha e que o seduzi de alguma forma. Já que havia testemunhas o suficiente, que viram que foi ele que começou tudo aquilo.

Depois de um banho, esquento o que acho dentro da geladeira e depois disso passo as duas horas seguintes em frente aos livros, colhendo o máximo de informação possível e que meu cérebro conseguisse digerir.

Em tempo em tempo, Mário entra ma cozinha, abre a porta da sala e anda pela casa arrastando os pés e pisando alto, tudo para tirar minha concentração. Já conhecia as artimanhas dele e sabia que só fazia tudo aquilo para me irritar, quando ele começou a fazer isso, realmente ele me irritava, quanto mais eu pedia que precisava me concentrar, que precisava estudar, mais ele fazia barulhos, aumentava  a televisão, brigava com Júlia por motivos idiotas e até comigo, por a comida não está no seu agrado, por sua roupa não estar bem dobrada ou passada, sendo que eu só passava as roupas de Júlia, a minha e a dele, eu simplesmente dobrava e guardava.

Mas toda vez que isso acontecia, eu o ignorava e continuava focada, entendendo aos poucos o que significava foco.

Quando termino, já passava da meia noite. Acabei tomando outro banho, para conseguir dormir, encontrando Júlia já dormindo. Não demoro para pegar no sono, é quase que instantâneo.

Acordo acredito que horas depois, ouvindo uma pequena movimentação do fora do quarto. Sonolenta, saio do quarto, encontrando Mário mexendo na minha bolsa, na mochila dos meus livros, tudo! Parecendo que procurava alguma coisa, claro que estava, se não estivesse não estava agitando os livros daquela forma, como se estivesse esperando achar alguma coisa no meio deles.

- Tá procurando o quê? - questionou irritada, falando alto, me arrependendo no mesmo instante ao lembrar que Júlia estava dormindo e que os vizinhos poderiam ouvir - Hein, Mário?! - Insisto.

Ele continua procurando o que quer que fosse, agora jogando meus livros no chão com brutalidade.

- Para - digo indo até os livros no chão, os pegando rapidamente. Sempre tive muito cuidado com todos os livros, não escrevia neles, mão manchada, nada! E ver Mário os tratando como se fossem lixos, me feria de uma forma estranha. Ele continuou, chegando até arrancar a página de um ao fazer isso, sacudindo minha mochila como se algo fosse cair, mas não caiu nada - Por quê tá fazendo isso?! - grito por fim, sem entender aquele comportamento repentino dele.

- Ele tá me cobrando - diz sem me olhar, indo agora novamente para a minha bolsa - Você esqueceu ou tá guardando o dinheiro?

Paraliso por um momento, respirando pelos meus lábios entre abertos, os olhos vagando pelo chão. Eu não havia esquecido, é claro, era meio que difícil esquecer dívidas, principalmente de grandes magnitude.

Há pouco mais de um ano atrás, quando ainda não estava trabalhando na casa da doutora Gabriela, eu só fazia bicos. As vezes achava uma casa para faxinar, roupa para lavar ou até mesmo o filho de alguém para cuidar e as contas começou a se acumular, graças ao pouco dinheiro que conseguia e que só direcionava para a alimentação.

Eu me vi cheia de contas, desesperada e sem saber o que fazer, foi aí que tive a ideia brilhante de pedir um empréstimo, mas não um empréstimo convencional que se faz em um banco mas, com o dono da Rocinha, o chefe do tráfico. Pedi somente o valor das contas, nem um real a mais e todo o dinheiro usei somente para pagar as contas.

Só que acabou que não consegui pagar as primeiras parcelas, por passar um tempo estagnada, sem qualquer serviço e agora que estava na casa da doutora Gabriela, a minha divida havia duplicado, graças ao juros alto dele.

Resumindo, o que eu tinha que pagar era a metade do meu salário e estava pensando seriamente em arrumar um segundo emprego nos finais de semana para conseguir uma renda extra.

- Ele tá me cobrando - Ele repete entre dentes, jogando minha bolsa no chão - Está me ameaçando! - Ele me fuzila com o olhar, a expressão séria - Quando era pra tá ameaçando você! Foi você que pegou dinheiro com ele!

- Pra pagar as contas.

- Que conta, Luíza?! Você gastou foi tudo com besteira.

Reviro os olhos me sentindo cada vez mais impaciente em relação a Mário. Ele parecia que mão enxergava todos os sacrifícios que fazia diariamente, inclusive em ficar longe da nossa filha para termos comida na mesa. E na primeira oportunidade que eles tinha, inventava algo do tipo.

Ele encurta o espaço entre nós, me prestando contra a parede em minhas costas.

- Dá seu jeito.

- Eu não tenho dinheiro.

- Se vira, Luíza. E manda ele parar de me cobrar - Ele se afasta no mesmo instante, me deixando para trás, segurando os livros contra meu peito, sem saber o quê seria de mim e de Júlia. O aluguel dali não era muito caro, mas tinha que pagar, havia também água, luz, comida...

Solto o ar dos pulmões, arrumando as minhas costas que Mário havia feito questão em bagunça. Depois que termino, não tenho mais sono e só faltava uma hora para amanhecer, então, acabei começando meu dia uma hora antes e adiantando a janta daquela noite.

Júlia também acorda cedo, o que é bom e também adianta várias coisas. Me preparava psicologicamente para mais um dia de trabalho, antes de sair de casa, quando ouço palmas fortes no portão. Com o coração dando um salto dentro do peito, vou até a porta, abrindo-a, encontrando ali um dos traficantes locais.

- Oi - digo baixo, saindo de casa, esperando que ele também falasse no mesmo tom.

- E aí, Luíza. Tudo na paz? Vou mandar o papo reto. Índio tá querendo aquela parada lá, tá ligada?

- Estou sim.

- Então fica esperta.

Apenas assinto, sentindo novamente o chão sumir em baixo dos meus pés. Eu precisava daquele dinheiro o mais rápido possível mas, o problema era que eu não tinha. E não fazia ideia de onde poderia arrumar pelo menos duas parcelas, para ver se ele me deixava um pouco e me esquecia por mais alguns dias.

Mentalmente questionei se não podia pedir um adiantamento para a doutora Gabriela. Até que poderia, mesmo correndo o risco dela falar um não. Mas não iria conseguir, estava lá há pouco mais de um ano, ela já me ajudava mais do que tinha que ajudar e eu não poderia pedir mais nada a ela.

Pedir aquele dinheiro emprestado para outra pessoa estava fora de cogitação. As pessoas que conhecia não tinham tanto direito guardado, muito menos disponível a qualquer momento e se tinham era para a própria necessidade básica.

- Luíza - Vaneide chama, quando saio de casa instantes depois.

- Oi - digo forçando um sorriso, não permitindo que ela percebesse a preocupação estampada na minha cara e me corroendo.

- É pra buscar Júlia hoje?

- Se você puder, eu agradeço.

- Eu pego sim. Os meninos não vão hoje, mas eu pego ela.

- Obrigada - digo me virando, me preparando para começar minha caminhada.

- E Luíza - Me viro para ela novamente - Eu ouvi o piolho aí.

- Vou dar um jeito de arrumar o dinheiro - digo com um suspiro - Não sei onde. Mas vou.

- E se tivesse um jeito?

- Que jeito? - digo curiosa, eu estava disposta a fazer qualquer coisa para tirar Índio do meu pé. Voltar a respirar normalmente sem ter que ouvir nenhuma das ameaças dele.

Ela olha para trás, como se temesse que o marido escutasse.

- Tem um cara - Ela começa, dando alguns passos na minha direção, com a voz num tom mais baixo, quase que num sussurro - Ele tá preso, sabe? E ele tem direito a visitas íntimas, mas o problema é que ele não tem quem... vá o visitar e precisa se aliviar.

Pisco algumas vezes, absorvendo aquela informação, tentando me imaginar indo até a cadeia, visitando um desconhecido e...tendo relações sexuais com ele num ambiente deplorável.

- Quanto ele paga? - murmuro ainda em dúvida.

Ela sorri lentamente.

- Aí que tá. Ele paga muito bem. Três salários.

Três salários?! Minha mente grita. Eu recebia um mais benéficos, fora a porcentagem que doutora Gabriela me dava por fora e já achava muito, o que dirá três salários apenas para ir na cadeia.

- Pra abrir as pernas, pra mim já estava bom demais - Ela comenta - Só não vou por que você já sabe mas, se eu fosse você. Eu ia.

- E eu vou - digo mais ou menos convicta, sem ter ideia se estava fazendo certo ou não. As vezes era melhor apenas ir, sem pensar muito, pensar nas consequências.

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