Biblioteca
Português
Capítulos
Configurações

Capítulo 03

... Matheus ...

Hoje decidi vir para o restaurante mais cedo. Quero estar no escritório quando todos chegarem. Não que eu esteja tentando evitar vê-la, mas ontem, por alguma razão, pensei em Isabella o restante do dia. E não gostei do modo como ela, sem que eu pudesse controlar, dividia em minha mente o espaço que deveria pertencer apenas à minha esposa.

Afasto esses pensamentos e a lembrança dela e concentro as horas seguintes apenas em meu trabalho. Estou tão focado que só percebo que Bianca entrou com meu almoço quando ela para na minha frente, com aquele sorriso educado de sempre no rosto.

— Hora da pausa. Você tem que comer, como todos nós. Vou colocar aqui na mesinha.

Eu assinto e agradeço.

— Bianca — a chamo antes que saia. Ela se vira para mim, curiosa. — Isabella está indo bem no primeiro dia? — Assim que as palavras saem da minha boca, seu sorriso se desfaz e é substituído por uma expressão séria, talvez até mesmo, arrisco pensar, irritada.

— Quase não entrei na cozinha hoje. — Seu tom, apesar de simpático, não parece natural. E o sorriso que toma os seus lábios depois disso é tudo menos sincero. — Algo mais?

Eu franzo a testa, sem compreendê-la.

Será que o que sente por mim é tão forte ao ponto de se sentir enciumada por uma mulher que conheci há um dia? E que direito tem ela?

— Só isso, obrigado. E desculpe o incômodo — digo, segurando um suspiro.

— Cuidar de você nunca é um incômodo — ela rapidamente responde.

Eu preciso acabar com isso. Deixar Bianca 'cuidar' de mim não vai cair bem. Ela pode levar para o outro lado, achar que estou, de alguma forma, consentindo com suas discretas investidas. O que menos quero nesse momento é que ela pense que quero algo com ela, que crie esperança. A partir de amanhã, começarei a descer para almoçar no salão.

Mais uma vez sozinho, Isabella volta a aparecer em meus pensamentos, com sua beleza angelical que tanto contrasta com sua personalidade, e eu me pergunto como ela estará se saindo. Sem mais aguentar, me levanto e caminho até a porta, convencendo-me de que é mais do que esperado que eu analise de perto os seus avanços.

Respiro fundo uma última vez e, sem me permitir voltar atrás, abro a porta e começo a descer as escadas. Cumprimento alguns clientes e sigo para a cozinha. Assim que entro, fico próximo a porta. Não quero distrair os funcionários. Mas não consigo me manter invisível por muito tempo, pois Paulo logo me vê e se volta para mim.

— O senhor precisa de alguma coisa? — pergunta.

— Não. Só vim ver como andam as coisas. — Meu olhar vai até Isabella, que está em frente ao fogão, de costas para mim. Paulo acompanha o olhar, mas não diz nada. — Como ela está se saindo?

— Bella... — Olho para Paulo, surpreso com a intimidade com que a havia chamado, e ele pigarreia. — Desculpe. Isabella está indo muito bem. Ela tem muito talento, e se encontra algum problema, logo acha uma solução. É ágil e muito perspicaz. Creio que ela passará pela experiência.

Me seguro para não sorrir ao perceber que Paulo a descreveu exatamente como a vi ontem. Mas seu tom de voz deixa evidente que ele não está apenas encantado com seu lado profissional, e não sei realmente o que pensar sobre isso. Nem se posso culpá-lo.

— Fico feliz por ela, e também pelo restaurante. Precisamos de alguém com competência e comprometimento.

— Isso ela tem. Já pude perceber nessas primeiras horas de trabalho.

Assinto.

— Obrigado, Paulo. — Dou um tapinha em seu ombro e saio antes que ela me veja ali.

O resto do dia felizmente passa rápido.

Espero trinta minutos após o expediente acabar para poder sair do escritório. Eu posso ter evitado Isabella hoje, mas não tenho como fazer isso todos os dias. Tenho que fixar em minha cabeça que seus modos tão parecidos com os de Alícia, seu sorriso e sua aparência não significam nada para mim. Que a memória de minha esposa já me basta. Que não preciso de outra mulher em minha vida. Menos ainda quando essa mulher é minha funcionária.

Decido fazer minha última ronda e fechar tudo. Esses últimos anos só estou vivendo para isso: trabalhar até não aguentar mais; até esquecer da dor que corrói meu peito.

Após arrumar minhas coisas no escritório, o tranco e dou uma volta no salão, verificando se as portas da frente estão bem fechadas e se tudo está em seu devido lugar. Ao entrar na cozinha, me surpreendo ao me deparar justamente com ela. Isabella. Parada à mesa, cantarolando enquanto corta legumes. Ela parece perdida em pensamentos e não me nota entrar e me aproximar, ainda me recuperando da visão tão inesperada de encontrá-la aqui quando imaginei que estivesse sozinho.

— Esta fazendo hora extra no primeiro dia de trabalho, Isabella? — pergunto baixinho, e ela tem um sobressalto e me encara com os olhos azuis arregalados e os dedos apertados no cabo da faca – que, graças aos céus, está apontada para baixo. — Está tentando ganhar um aumento? — brinco, e vejo o seu rosto, pálido pelo susto, enrubescer.

— Meu Deus, você me assustou. Estava adiantando umas coisas pra amanhã — diz, e a vejo levar a ponta de um dedo à boca, e só então percebo que deve ter se cortado quando me ouviu. — Eu nem pensei em aumento — se explica, e quando chego mais perto, vejo o pequeno corte em seu polegar. Droga. Eu não esperava assustá-la nem fazê-la se machucar. Ao notar o meu olhar, ela sorri e dá de ombros. — Tudo bem. Já estou acostumada com esses incidentes — fala, sem jeito.

— Eu sei como é. Já perdi as contas de quantas vezes me cortei na cozinha. Vem, deixa eu colocar um curativo nele. — Pego um band-aid na maleta de primeiros socorros que há em um dos armários. — Posso?

Ela me estende a mão, e quando a toco, mas uma vez seu corpo fica tenso e ela parece congelar; os olhos presos nos meus. Ela cora e desvia o olhar, e eu tento fingir que a sensação agridoce que começa a surgir em minha língua e se espalhar por meus órgãos não significa nada... Que ela não me afeta. Coloco com todo o cuidado o band-aid em seu dedo e dou um passo para trás, afastando nossos corpos. Seus olhos vão do dedo com o curativo aos meus; as bochechas rubras e um sorrisinho se formando nos lábios.

Eu recuo mais um passo.

— Você cozinha? — ela pergunta, virando-se para guardar as coisas que estão na bancada. — Eu pensei que era só um empresário que investiu no ramo alimentício.

— Por um bom tempo fui ajudante de cozinha, até juntar dinheiro e abrir meu primeiro restaurante, com a ajuda da minha esposa. — Ela vira a cabeça para mim, e seu olhar é uma mistura de surpresa e decepção. — Minha falecida esposa — corrijo, não gostando nada da sua expressão, e percebo como ela relaxa e algo como compreensão brilha em suas íris azuladas. É a minha vez de desviar o olhar. — É difícil falar dela desse jeito, no passado. Ela me ajudou muito. E não apenas isso...

Mas antes que possa continuar, me forço a parar. Por que eu deveria me explicar assim a ela?

Alícia ainda é minha Alícia.

— Eu sinto muito por ela. Não sabia que você é viúvo. — De esguelha, percebo quando ela olha para a aliança em meu dedo e comprime os lábios. — Não deveria ter tocado nesse assunto. Me desculpa mesmo. — Isabella abaixa a cabeça.

— Não tem problema. Não tinha como você saber. — Dou de ombros.

— Você ainda cozinha? Em casa? — pergunta, curiosa.

Eu balanço a cabeça e volto a fitá-la, observando-a enquanto guardar os últimos utensílios.

— Não. Já faz três anos que não cozinho. Em casa tenho uma empregada, e nos meus restaurantes, só supervisiono mesmo. Perdi minha inspiração pra cozinhar quando ela morreu. — Isabella se vira e seu olhar é cheio de piedade. E eu não tenho certeza se isso me consola ou me desagrada. — Não se preocupe, eu já me acostumei a viver com a dor, Isabella. Ela já faz parte de mim, assim como uma perna ou um braço.

— Mas não deveria, Matheus. Viver com essa dor deve ser ruim demais. Eu perdi meus pais em um acidente, como te falei, e doeu... ainda dói muito, mas tive que seguir em frente. Tenho certeza de que de onde ela estiver, ver você sofrer assim deve entristecê-la muito. — Sinto uma emoção se formar em meu peito e ameaçar transbordar por meus olhos e respiro para afastá-la, para abafá-la. Por que ainda é tão difícil falar sobre isso... sobre ela? — Eu não quero ser invasiva — Isabella sussurra, notando o meu desamparo —, mas posso te dar um abraço?

Fico surpreso com a pergunta. Mas que mal haveria em um abraço? Não gosto que me toquem, mas ela... Para ela eu posso abrir uma exceção.

Faço que sim com a cabeça antes que a coragem vá embora e Isabella vem ao meu encontro e, um pouco hesitante, me rodeia com seus braços, me abraçando forte. Seu cheiro, doce e muito parecido com baunilha, me preenche por inteiro.

— Aprendi que nessa vida muitas vezes o que precisamos é de um simples abraço.

Só quando me dou conta de que estou apreciando esse contato mais do que deveria, me afasto. E ela, encabulada, indaga:

— Eu posso lhe fazer uma pergunta pessoal, Matheus?

— Faça — digo, sem pensar muito.

— Depois que sua esposa morreu..., você já se relacionou com alguém? — Sua voz sai tão baixa que eu quase não consigo entender. E quando compreendo, demoro um pouco para responder, até que, com um suspiro, digo:

— Pra ser sincero, pretendentes não faltaram. Mas nenhuma me chamou atenção. Até hoje.

Ela me olha surpresa com a minha conclusão — até eu mesmo estou —, e um silêncio ensurdecedor se instala na cozinha. Isabella me encara ainda quieta, buscando algo em mim com seus olhos.

— Eu já terminei — ela diz, e a voz parece um pouco ofegante. — Vou me trocar. Com licença — diz ela, nervosa, e se retira.

Não adiantou nada ficar longe dela o dia todo e agora estar sozinho com Isabella nessa cozinha. Ela com certeza percebeu que estávamos fazendo algo errado e que essa conversa estava indo longe demais, por isso saiu, ansiosa para se livrar de mim.

Quando ainda estou perdido em meus pensamentos, sem entender essa ânsia que há três anos não sentia, com a consciência duelando com o desejo em minha mente, ela volta; seu cheiro mais uma vez se espalhando pelo cômodo.

— Eu já vou indo — ela diz. — Já está tarde.

— Até amanhã, Isabella. Foi um prazer conversar com você.

Um sorriso de covinhas se forma em seu rosto. E quando ela começa a se virar e se preparar para partir, sem pensar eu seguro a sua mão e a puxo para perto de mim; prendendo a respiração e mal me reconhecendo. Diante dos seus olhos arregalados, eu encaro os seus dedos e pouso neles um beijo, apreciando a maciez de sua pele e o tremor em seu corpo. Quando volto a fitá-la, seu rosto está corado e ela me olha como se não me compreendesse.

— Obrigado — digo, baixinho, relutante em largar a sua mão. — Pelo abraço. Eu... Estava precisando.

Vejo algo em seu olhar que não consigo decifrar; até que ela, então, abaixa a cabeça e cruza os braços, me encarando por baixo dos cílios.

— Não precisa agradecer, senhor — ela sussurra.

Quando ela já não está mais aqui, solto a respiração e caminho de volta para meu escritório. Envergonhado sem saber bem o por quê — eu não fiz nada de errado, fiz? —, me jogo na cadeira e passo a mão pelo rosto.

O que está acontecendo comigo?

Baixe o aplicativo agora para receber a recompensa
Digitalize o código QR para baixar o aplicativo Hinovel.