Capítulo 02
... Isabella ...
Estou no ponto esperando o ônibus para voltar para casa, que, felizmente, não fica longe do restaurante. Ainda meio inebriada, olho para a minha mão — a mão que, poucos minutos atrás, Matheus tocou. Não entendo direito o que foi aquilo que senti; aquele choque que começou nas pontas dos dedos e se espalhou por cada nervo do meu corpo, me fazendo paralisar e fitá-lo como uma adolescente boba que cora com o mais ínfimo olhar — e toque — de um homem bonito. Mas, Senhor, como ele é lindo! Um dos homens mais bonitos que já vi na vida.
Mas a sua voz, baixa e controlada, e seus olhos verdes, tão profundos e inacessíveis, estavam tão cheios de uma tristeza cálida e dolorosa... Era quase irresistível a vontade de consolá-lo.
Será que Matheus também sentiu a mesma coisa com nosso toque? Sei que parece loucura pensar assim, mas senti algo por ele assim que o vi. Não sei explicar. Talvez eu só me sinta atraída por homens... quebrados. Eu balanço a cabeça para afastar essa ideia e lembro-me da aliança em seu dedo. Não. Não vou cobiçar um homem casado. Ele tem a sua esposa para juntar seus cacos e abrandar sua melancolia. Não precisa de mim.
Eu suspiro, tentando me livrar do peso que de repente se assentou sobre os meus ombros.
Ele me tratou com mais gentileza do que estou habituada, me respeitou, apesar do indisfarçado desdém nos primeiros minutos de nossa conversa, e me deu uma chance. Sem quaisquer segundas intenções em suas ações... Eu poderia contar nos dedos o número de pessoas de quem recebi tratamento semelhante. Estou tão acostumada a ser criticada, inferiorizada e subestimada que, quando o contrário acontece... não sei como reagir. Baixar a guarda ou continuar com minha máscara como escudo? Confiar ou permanecer presa àquela centelha de desconfiança?
Talvez eu nem precise pensar tanto nisso. Ele é meu patrão. E é casado.
Vejo meu ônibus se aproximar e faço sinal para que pare. Entro, me sento e encosto a cabeça no banco. E para me impedir de devanear, pego meus fones e coloco uma música, focando apenas na voz do cantor e na letra da canção. Mas não tenho muito êxito. Logo minha mente viaja para Diego, meu último “namorado”, e como sofri com o fim do nosso relacionamento. Eu o conheci no último ano da faculdade de Gastronomia.
Como sempre fui muito carente — um traço meu que luto para extinguir —, assim que se aproximou de mim, com seu jeito meigo e sedutor, não demorou para começarmos a ficar. Ela era lindo; com fartos cabelos loiros e uma beleza clássica, como a dos príncipes de contos de fadas — era a perfeita personificação do príncipe encantado. E eu realmente acreditei que estávamos juntos para o que der e vier. Mas quando pedi para conhecer sua família, ele começou a inventar uma desculpa atrás da outra, até que ouvi uma conversa entre Diego e Igor, seu melhor amigo, em que ele dizia que eu não era o tipo de garota que apresentaria à família, por eu ser pobre e “simplória”; seus pais nunca me aceitariam. A partir dali, não deu mais. Eu mesma fiz questão de terminar, antes que as coisas saíssem do controle. E ele nem mesmo pareceu abalado com o fim. Diante dele, eu fingi a mesma indiferença, mas quando que cheguei em meu apartamento, chorei como há muito tempo não chorava.
Isso já faz quatro anos. Desde então, não me relaciono com mais ninguém.
Abro a porta do meu apartamento e vejo contas e mais contas em cima da mesa. Coloco minha bolsa em cima da cadeira e começo a juntar todas elas. Meu aluguel já está atrasado e o dinheiro que consegui realizando alguns trabalhos avulsos já está acabando. E parece que só agora minha ficha cai. Matheus me deu uma chance de mostrar o que sei, de me provar. E mesmo com as contas na mão, sorrio. Logo terei como pagar tudo isso, e, se tudo der certo, recomeçar.
Amanhã uma nova fase da minha vida terá início.
Pego meu celular e vou até a sala, me jogo no sofá e ligo para a pessoa mais importante da minha vida. No segundo toque, Zack atende.
— Oi, irmãzinha
— Adivinha quem vai começar a trabalhar como chefe de cozinha amanhã, e ainda no restaurante Oliveira?
— Mentira que você conseguiu!
— Consegui! Claro, tem o tempo de experiência, mas vou dar o meu melhor pra passar. Você sabe como é difícil pra mim manter esse apartamento e as contas em dia sem estar em um trabalho fixo, de carteira assinada. — Solto um suspiro.
— Já falei pra me avisar quando as coisas estiverem muito difíceis, Bella. Eu posso te ajudar.
— Sabe que odeio lhe pedir dinheiro emprestado. Você tem sua vida, suas coisas. Não gosto de incomodar. Já tenho vinte e oito anos. Não sou uma garotinha. Sou eu a irmã mais velha, lembra?
— Você nunca me incomoda. E vamos ter que discutir isso de novo? Não me importa se sou mais novo. Quero ajudá-la.
— Não! Não quero discutir. Estou muito feliz pra isso. Só queria que soubesse da novidade. Agora tudo vai começar a caminhar, estou sentindo isso. — Eu faço uma pausa, então sorrio. — Posso lhe contar um segredo?
— Sempre.
Solto uma risada com sua resposta. Zack e eu somos inseparáveis. Entre nós não há segredos. Se um de nós cometesse um crime, a primeira pessoa para quem ligaria era o outro, que com certeza ou o ajudaria a fugir ou o acobertaria.
— Achei o dono do restaurante muito bonito. Mais do que bonito, na verdade. Ele tem os olhos verdes, do mesmo tom que a água de uma lagoa, e uma cara de mocinho perturbado, e talvez até um pouco malvado, daqueles que te pegam de jeito...
Ouço um som de engasgo do outro lado e paro, divertida.
— Isabella! Vou vomitar.
Eu rio e, depois de alguns segundos, ele me acompanha.
— Foi mal, me empolguei. Já faz quatro anos, Zack! Você tem que entender o meu lado. Você já ficou tanto tempo assim sem?
— Essa conversa está ficando estranha.
— Parei! Só pra resumir: eu me senti atraída por ele e não sei se isso é bom. Corrigindo: isso com certeza não é bom.
— Por que não seria? Ele é casado?
Eu penso na aliança e suspiro.
— Acho que é — respondo, com a voz mais baixa. — Mas, de qualquer forma, já decidi que não vou me aproximar dele desse jeito. Mesmo se fosse solteiro.
— Por causa do merda do Diego? Ele já é passado, Bella. Qualquer homem que ficar com você tem a obrigação de, no mínimo, se sentir o mais sortudo do mundo, pois você é perfeita.
— Você fala isso porque é meu irmão.
— Não, eu falo porque é a verdade.
— Quer vir jantar aqui comigo pra comemorar? Você sabe que não tenho nenhum amigo de verdade além de você.
— Vou sim. Faz meu prato preferido?
— Faço. Vou no mercado comprar o que falta pra fazer seu frango à parmegiana.
— Oba! Agora tenho que desligar. Te amo.
— Também te amo muito.
— E Bella... estou muito orgulhoso de você e tenho certeza de que nossos pais também estão.
— Obrigada. — Encerro a ligação com lagrimas nos olhos.
Não tem um dia em que não penso em meus pais. A vida ficou muito mais difícil depois que partiram, mas aqui estou eu, formada, e amanhã começarei a trabalhar em um dos restaurantes mais conhecidos de são Paulo.
Depois de arrumar a bagunça do apartamento, pego minha carteira e vou até o mercadinho da esquina comprar um peito de frango e o queijo. São os únicos ingredientes que faltam para a receita.
— Oi, Gilberto — cumprimento o açougueiro. — Me vê um peito de frango pequeno, por favor.
— É pra já. — Ele se abaixa para pegar. — Como anda a vida?
— Melhor agora que arrumei um trabalho. Começo amanhã.
Gilberto se levanta e sorri — um sorriso tão sincero que não tenho como não retribuir. Como venho bastante nesse mercadinho, acabei me tornando amiga dos donos, João e Rose. Gilberto é o único filho dos dois. É um pouco mais velho que eu, e tem uma filhinha linda e uma esposa muito simpática. Uma família perfeita. Me pergunto se um dia terei isso na minha vida. Nunca dou sorte no amor, e já estou ficando frustrada com isso.
— Boa sorte, Bella. Espero que tudo dê certo. Você merece todo o sucesso do mundo — diz ele ao me entregar o pedido.
— Muito obrigada.
Me direciono até a padaria, pego o queijo e vou até o balcão pagar e cumprimento Rose. Ela tem a mesma idade que minha mãe teria, e toda vez que olho para ela, imagino como minha mãe estaria. Apesar de Rose ser morena e minha mãe loira, como eu.
Já estou terminando os preparativos. Logo Zack chegará em casa e eu estou animada para vê-lo. Já faz mais de uma semana desde nosso último encontro. Ele tem feito bastante hora extra na fábrica de pneus, pois está tentando ganhar uma promoção. Dou uma olhada no frango, que já está dourando no forno, e escuto as batidas na porta. Assim que a abro, abraço Zack com força.
— Desse jeito vai amassar nossa sobremesa.
Vejo a sacola em sua mão.
— O que trouxe de bom? — Me afasto puxando a sacola de sua mão.
— Dois pedaços de bolo daquela loja lá que você gosta mas nunca lembro o nome.
Tiro os potinhos de dentro, abro um pouco e passo meu dedo no chantilly, então o levo à boca.
— De ninho com Nutella? — pergunto, e ele assente. Abro o outro.
— Esse é o meu, Bella. Não mete o dedão babado nele não! — diz Zack, vindo até mim.
Saio andando rápido com seu potinho e enfio o dedo antes que ele me alcance.
— Floresta negra! Vou querer um pouco do seu também.
Pegando o pote da minha mão, Zack se senta à mesa.
— Meu bolinho! — ele choraminga. — Todo contaminado de baba de irmã.
Olho pra ele e acabo rindo. Zack parece ter seus cinco anos novamente.
— Que drama. Foi só um pouquinho do chantilly que estava grudado na tampa. Deixe eles no congelador enquanto jantamos, aí estarão bem geladinhos quando formos comer.
Ele assente.
Coloco a forma na mesa e a panela de arroz. Pego o suco e os talheres, me sento e começamos a comer enquanto conversamos.
— Como anda o trabalho? Sabe quando vão anunciar quem será promovido?
— O trabalho vai bem, e ainda não sabemos quando será a promoção. Eu estou me esforçando, Bella. Me matando nas horas extras. Essa vaga tem que ser minha. Preciso dar uma arrumada no carro, e o dinheiro não está sobrando.
— Você vai conseguir. — Coloco minha mão sobre a dele. — Eu sei que vai.
— O ruim é que tem muitos puxa-sacos, Bella. Não importa você trabalhar direitinho se tem meia dúzia que fica babando ovo do chefe. Isso desanima, pois a chance de escolher algum deles é muito grande.
Zack é sempre tão animado... Quando o vejo assim me corta o coração. Sei que tudo o que disse é verdade, mas não quero vê-lo desse jeito. Me levanto, vou até a geladeira e pego os bolos.
— Acho que vou comer o meu e metade do seu. — No mesmo instante ele me olha surpreso. — É minha comemoração.
— Nem vem! Eu comprei dois. Um pra cada. Pode passar o meu pra cá.
Meu Zack está de volta, penso, com um sorriso nos lábios. Entrego seu potinho, pego duas colheres limpas e volto a me sentar.
— E o coração, Zack? — pergunto, levando uma colher cheia de bolo à boca.
— Ainda enviando sangue ao corpo — responde rindo. Jogo a tampa nele, que se esquiva. — Tá bom! Tem uma garota no trabalho...
— Até que enfim! — Ele revira os olhos. — Desculpa, pode continuar.
— Mas ela tem namorado, Bella — diz, sem qualquer expressão no rosto. Olho para ele totalmente confusa. Ele dá de ombros. — Eu sei, parece loucura. Acho que estou vendo coisa onde não tem. Não estou tentando estragar o namoro de ninguém. Nós só conversamos, e às vezes ela fala umas coisas que dá pra levar no duplo sentido. Na verdade, não sei se ela é feliz no relacionamento. Não sei quase nada sobre ela, na verdade.
— Eu realmente entendo. Tudo é sempre tão complicado. Queria que fosse bem mais fácil. Eu te falei do meu chefe, né? Ele parece ser uma pessoa legal, mas vi muito tristeza em seus olhos. Como se ele sofresse muito, por algo ou por alguém. — Termino de comer meu bolo.
— A vida nunca facilita pra nós dois, não é?
— Nunca.
Nós afundamos em nossas cadeiras.
— Vou te ajudar a limpar tudo antes de ir embora — diz, já se levantando.
...
Já tomei um banho e separei a roupa que usarei amanhã. Estou tão nervosa. Não sei se pelo trabalho em si ou por em pensar que verei Matheus novamente. Acho que são as duas coisas. Fecho os olhos, tentando dormir, mas tudo que aparece em minha cabeça é aquele par de olhos verdes cheios de tristeza. Meu peito é dominado por um sentimento estranho. Eu queria ajudá-lo, mas realmente não sei como. Não sei se devo. Eu mal o conheço.
Preciso me manter longe dele.
Essa é a minha única certeza.