Capítulo 01
Dedicatória: Este livro é dedicado a todos que acreditam que o amor é uma das maiores forças do mundo.
..Matheus..
Abro os olhos e vejo que já amanheceu.
Mais um dia sem você; mais um dia em que vagarei sem rumo pelo mundo.
Olho para o lado e vejo a sua foto sobre o criado-mudo. Você estava tão linda nela; com o corpo esbelto coberto pelo vestido longo e volumoso, que arrancou suspiros de todos os convidados. Tão preocupada e perfeccionista, demorou meses para decidir cada detalhe, dos pequenos botões das costas às rendas do corpete. E valeu a pena, você havia me dito. O tecido branco contrastava com sua pele morena e seus cabelos negros; e seus olhos, dourados como o âmbar, pareciam sorrir com os lábios. Você não estava olhando diretamente para a câmera; tinha a atenção presa na mesa de doces, e eu sabia que estava se controlando para não pular sobre eles e mergulhar no açúcar. E eu a amei um pouco mais nesse momento. Amava o seu autocontrole, e também a amaria se desprezasse as regras e apenas se lançasse no desconhecido. Não importaria quem decidisse ser, eu sempre a amaria.
O dia do nosso casamento foi o mais feliz da minha vida. Você estava perfeita. Nem precisava da tiara que enfeitava seus cabelos para saber que era a minha princesa. Meu primeiro e único amor.
Sento na cama e meus dedos tocam a fotografia com carinho, como tocavam seu lindo rosto. Três anos podem ter se passado — três malditos anos desde que você partiu —, mas ainda sinto a sua falta todo santo dia; e a cada girar dos ponteiros no relógio, sinto que estou mais próximo de, mais uma vez, reencontrá-la. Quantas vezes já pensei em acabar logo com isso, acelerar o processo... Mas sei que você não iria gostar.
Como queria que tudo fosse diferente.
Respiro fundo, afastando aquela vontade absurda de me render às lágrimas, e me levanto.
— Bom dia, meu amor — sussurro para a sua imagem e, com relutância, devolvo-a ao seu lugar.
Já pronto, depois de um banho curto e de me vestir, me olho no espelho, e aquela expressão séria de sempre já está estampada em meu rosto. Nem sei mais o que é sorrir — não um sorriso forçado, mas aquele verdadeiro, que vem de dentro. Passo a mão pela barba, que está por fazer, e me lembro que Alícia não gostava; ela sempre me mandava tirá-la para não ter de enfrentar o incômodo de tê-la arranhando sua face macia e delicada.
Mas minha esposa não está mais aqui, penso, com a amargura se espalhando por minha língua.
Pego minha pasta e desço até a cozinha, onde encontro dona Fátima com um sorriso no rosto e uma caneca de café na mão. Ela é a pessoa mais próxima que tenho — o que, nos últimos tempos, não tem significado muita coisa. Seu cabelo grisalho revela a idade já avançada, e lembro-me do dia em que a entrevistei. Sempre simpática e prestativa, foi impossível não gostar dela logo de cara.
— Obrigado.
Fátima acena com a cabeça e volta a seus afazeres. Ela sabe que a manhã é a parte do dia mais difícil para mim e que prefiro passá-la em silencio.
Após tomar o café, me despeço dela e sigo para mais um dia de trabalho. É a isso que meu mundo tem se resumido: trabalhar até o cansaço me ajudar a dormir a noite.
O restaurante não fica longe de casa. É apenas cinco minutos de carro. Assim que chego, cumprimento os funcionários que já me esperam do lado de fora. Apesar de ter me tornado esse cara fechado que não gosta de conversar nem se abrir com ninguém, eu sinto um apreço profundo por cada pessoa que trabalha aqui comigo.
Subo a escada para o meu escritório. A parede voltada para o salão é de vidro, com duas enormes persianas marrons, e às vezes gosto de ficar olhando a movimentação lá em baixo.
Me sento à mesa e abro o notebook.
É hora de começar mais um dia.
***
— Boa tarde, Matheus. — Olho para a porta e vejo Bianca entrando com uma bandeja nas mãos. — Como não desceu pra almoçar, trouxe sua comida.
— Obrigado, mas não precisava se incomodar. Não estou com muita fome.
Bianca coloca a bandeja sobre a mesinha perto do sofá.
— Você precisa se alimentar, Matheus. Tem dias que nem almoça. Assim vai acabar doente. — Ela cruza os braços sobre o peito. — Só sairei daqui quando comer.
Bianca foi a primeira funcionaria que contratei para o restaurante, então nos conhecemos há anos. Ela é uma boa pessoa, e realmente se preocupa comigo, mas sei que não quer apenas a minha amizade. E se nem isso eu sou capaz de oferecer a ela, quem dirá um romance.
— Tá bom! Vou comer. Pode voltar depois pra retirar a bandeja, por favor?
Ela assente sorrindo.
Vou até o sofá, me sento e me forço a comer tudo o que havia trazido. Não quero discutir nem prolongar a conversa quando retornar, pois sei que, se chegar aqui e a bandeja estiver intacta, vai querer dar um discurso de como tenho que me cuidar.
Enquanto levo o garfo à boca, lembro que amanhã começo a fazer entrevistas para o cargo de chef. Não tem como adiar mais. Já prevejo o quão cansativas serão. E demoradas. Não é qualquer um que me impressiona.
Deixo o prato sobre a bandeja e tomo o copo de suco. Em seguida, vou ao banheiro e escovo os dentes. Então volto para a frente do computador.
— Olha, ele comeu tudo — Bianca diz assim que entra no escritório. — Está vendo? Eu sei cuidar de você. — Ela sorri largamente, e forço um sorriso. — Matheus, Catarina está no salão com seu marido Pedro. Eles querem falar com você.
— Ok, já estou indo. Obrigado novamente.
Ela sorri e sai.
Me afundo na cadeira, jogando a cabeça para trás. Para esses dois estarem aqui a uma hora dessas, só pode ser por uma coisa. Me levanto, vou até a persiana e abro só uma frestinha. E minha suspeita se confirma. Catarina está sentada ao lado de Pedro, e perto deles está uma moça morena. Esses dois não desistem mesmo. Já é a terceira garota essa semana que trazem para me apresentar. Fecho os olhos e respiro e inspiro algumas vezes. Então, quando me julgo capaz de encará-los, saio do escritório e desço a escada. Eles abrem um sorriso ao me verem.
— Boa tarde, Matheus. Você poderia sentar um pouco pra conversar conosco? — Catarina pede, apontando para a cadeira vaga.
— Eu tenho muita coisa pra fazer hoje. — Sorrio sem mostrar os dentes.
— Cinco minutos, amigo — Pedro insiste.
— Tudo bem. Cinco minutos. — Me sento ao lado da moça.
— Matheus, essa é Marina, minha sobrinha. Ela acabou de chegar dos Estados Unidos — Catarina diz.
— É um prazer enfim conhecer você. — A moça se vira para mim e beija minha bochecha, e no mesmo instante sinto meu corpo enrijecer e recuo.
Não admito mais contato físico com ninguém. E mesmo supondo que ela ainda não sabe, não consigo evitar me irritar.
— Me desculpe, lembrei que tenho que resolver um assunto muito importante. — Ponho-me de pé e não olho para a garota enquanto digo: — Foi um prazer conhecê-la. Depois falo com vocês.
Vejo a tristeza nos olhares de Pedro e Catarina. Sei que eles só querem o meu bem, mas não posso. Não quero me envolver em outro relacionamento.
Volto para meu escritório, que se tornou meu refúgio nos últimos anos. Me sento na cadeira, e para tentar distrair a minha cabeça, pego a pasta na gaveta, onde estão reunidos todos os currículos que foram deixados na recepção. Começo a analisar um por um, com bastante atenção. Nem sei quanto tempo se passa. Quando estou terminando, um currículo chama a minha atenção. É de uma mulher. Não que eu seja machista, nada disso, mas fico intrigado, já que ela é a única em meio a tantos homens. Leio que estudou bastante, mas não tem muita experiência. Pobre moça, penso comigo mesmo. Ela não terá muita chance contra os outros cozinheiros.
Começo a separar os que mais me agradam, e no final fico com vinte e quatro. Olho para o da moça, à parte.
— Será que dou uma chance a ela? — pergunto baixinho.
Passo um bom tempo pensando, e, com um suspiro, coloco o currículo junto com os demais que foram selecionados. Só para completar vinte e cinco.
— Isabella. Isabella Silva.
Seu nome ecoa em minha mente.
...
Já é o terceiro dia consecutivo que tiro para realizar as entrevistas, mas nenhum candidato chamou minha atenção até agora. Estou entrevistando cinco por dia. E está sendo bem cansativo, como havia imaginado. Essa, felizmente, será a última de hoje. Chegou a hora de entrevistar Isabella, e agora saberei se foi uma boa ideia incluir seu currículo na lista. Creio que será só perda de tempo, como os anteriores.
Ouço batidas na porta.
— Pode entrar — digo.
Mantenho a atenção nos currículos dos candidatos de amanhã, que estão em minhas mãos. Ainda faltam dez pessoas. Dois dias de entrevista.
— Com licença, senhor.
Sem olhar para ela, aponto para a cadeira.
— Pode se sentar, por favor, senhorita Isabella.
Coloco as folhas sobre a mesa e me preparo para dar à candidata toda a atenção que ela merece, e então vejo sua mão estendida.
— É um grande prazer conhecer o senhor — ela diz.
Levanto a cabeça para encará-la e me deparo com uma mulher de cabelos loiros e olhos azuis. E um sorriso que ilumina todo o seu rosto. Confesso que fico impressionado com tanta beleza.
— Me desculpe, Isabella. Hoje foi um dia bem corrido. — Aperto sua mão e me obrigo a sair desse transe. Não é como se nunca tivesse visto mulheres bonitas antes. Pego seu currículo e passo os olhos por ele. — Vejo aqui que não possui muita experiência. Você acha que está realmente qualificada para o cargo? Exijo muito dos meus funcionários, e há um fluxo contínuo de clientes neste restaurante, tão exigentes quanto eu. Por isso preciso de alguém que consiga dar conta de comandar a cozinha com pulso firme, além de, claro, cozinhar com excelência. — Não consigo evitar o tom condescendente em minha voz, e ela parece notar.
Isabella ergue a cabeça, com um ar confiante, mas, por alguns segundos, não diz nada. Recosto-me na cadeira e espero sua resposta; e meu olhar se desvia para as suas mãos. Nenhuma aliança. Então olho para as minhas, que descansam sobre a mesa, e passo um dedo pelo anel dourado que, anos atrás, selou minha união com Alícia.
— Não tenho muita experiência comprovada em carteira, senhor, mas pode ver em meu histórico que estudei nas melhores escolas de Gastronomia de São Paulo — ela diz, e percebo que encara a minha aliança antes de voltar a atenção para o meu rosto. — Cozinho desde os catorze anos. E meus estudos foram pagos com o suor do meu trabalho. Então a resposta à sua pergunta é sim. Me acho qualificada para trabalhar aqui. Se o senhor me der uma chance de provar minha competência, serei muito grata.
Fico impressionado com o seu tom de voz. Em nenhum momento a sua confiança fraquejou, nem pareceu intimidada. Isabella é diferente. E tem a postura de uma verdadeira líder. O que custa lhe permitir mostrar do que é capaz?
— Se eu pedisse a você para ir à cozinha preparar algo, você aceitaria?
Ela se anima com a ideia, mas vejo que se controla para não revelar o que sente.
— Claro. Por que não? — responde, com um sorriso.
Eu reprimo o impulso de curvar os lábios e lhe devolver o gesto. Em vez disso, me levanto e fujo do seu olhar, tão profundo que quase me instiga a desbravá-lo.
— Vamos. Por aqui.
Seguimos para a cozinha, e no caminho vou falando um pouco sobre o restaurante. Ela apenas assente, mostrando um educado interesse, mas com os olhos correndo discretamente pelo espaço; a admiração bem escondida em seus traços enquanto assimila tudo.
— Paulo — chamo meu sous-chef para apresentá-lo a ela. O homem lava as mãos na pia e vem rapidamente até nós. — Isabella, esse é Paulo, o sous-chef. Ele está cuidando de tudo por enquanto.
— Muito prazer, Paulo. — Ela estende a mão e o cumprimenta. Ele sorri.
— Pode pegar um avental pra ela, por favor? Isabella vai realizar o teste pra vaga de chef.
— Sim, senhor. Só um momento. — Paulo pega um avental no pequeno armário que há no canto da cozinha e o entrega a ela. — Algo mais, senhor?
— Não, obrigado. Pode voltar a seus afazeres.
Ele assente com a cabeça e se retira.
— O que o senhor quer que eu cozinhe? — Isabella põe o avental e me olha, esperando.
— Como nosso restaurante é focado em comidas típicas brasileira, pode ser isca de peixe com molho tártaro — sugiro, e ela abre um sorriso convencido, como se dissesse que eu não poderia ter escolhido um prato mais fácil. — Vou ficar aqui observando.
O pessoal da cozinha a orienta, para que ela saiba onde está cada ingrediente, e logo começa os preparativos. Isabella é rápida na cozinha, e dá para perceber que realmente gosta do que faz. E tem bastante prática, como alegou. Vejo ela trabalhar com maestria. Não demora para estar com o prato pronto na minha frente, com o aroma agradável se espalhando por cada centímetro do recinto.
— Vamos ver se você passou no teste.
Pego um pouco do peixe e do molho e levo até a boca. E abafo um gemido de satisfação. Está realmente muito saboroso; no ponto certo. Eu diria que é o melhor que já provei.
Olho para a moça, que me fita em expectativa, e penso em como Isabella continua a me surpreender.
— Então, o que achou? — pergunta.
— Está muito bom. Meus parabéns, você é muito boa — digo, e ela morde o lábio para tentar disfarçar o sorriso. — Podemos voltar ao escritório para finalizarmos nossa entrevista?
Ela balança cabeça, confirmando.
Observo Isabella tirar o avental, lavar as mãos e se despedir do pessoal da cozinha. Voltamos ao escritório e nos sentamos.
— Você realmente cozinha muito bem. Seus pais devem se orgulhar de tamanho talento.
Isabella abaixa a cabeça, e quando noto a repentina tristeza em seus traços, percebo que esta não foi uma simples reação de humildade ao elogio. Sem saber, acabei tocando em um assunto delicado.
— Eu perdi meus pais quando tinha dez anos — ela fala, confirmando minhas suspeitas. — Em um acidente de carro. Os momentos mais felizes que vivi com minha mãe foram na cozinha. Por isso criei um amor pela gastronomia. É como se estivesse perto dela. — Isabella levanta o rosto e sorri fracamente.
E, enquanto devolvo o seu olhar, meu peito aperta e é como se sua dor refletisse a minha. Ambos perdemos pessoas queridas, e isso nem mesmo o tempo pode curar. No recanto mais obscuro do meu âmago, sei que a ferida deixada pela morte da minha esposa nunca irá cicatrizar. E com Isabella não deve ser diferente.
— Sinto muito — digo. E quando ela olha para baixo e murmura um “tudo bem”, eu limpo a garganta, tentando afastar o incômodo, e continuo. — Voltando ao teste: gostei muito do seu jeito de trabalhar. O que acha de começar amanhã? Já foi informada sobre o valor do salário?
A tristeza some de uma vez do seu rosto e ela parece se iluminar ao ouvir minha palavras.
— Claro! Posso começar amanhã sim. E já fui informada sobre o salário. Estou muito feliz por ter me dado essa oportunidade, senhor. Darei o meu melhor.
— Por favor, me chame de Matheus — peço, um pouco sem jeito com toda essa euforia — e secretamente agraciado por ela. — Eu a acompanho até a saída.
— Muito obrigada. Nos vemos amanhã — ela diz ao nos aproximarmos da porta, e estende a mão para se despedir.
Quando nossa pele se encontra em um aperto que mal dura alguns segundos, vejo Isabella encarar nossas mãos juntas e suas bochechas ganharem uma coloração rosada. Franzo a testa, sem entender seu embaraço, mas ela logo volta à sua postura habitual e me dirige um sorriso educado.
Sim, eu preciso admitir, essa mulher é realmente uma incógnita.
— Até amanhã, Isabella.
— Até, Matheus. E obrigada novamente por me aceitar. Você não vai se arrepender. — E o seu tom, tão sério e profissional, não deixa dúvidas de que essas não são palavras em vão, mas uma promessa.
Mais uma vez sozinho em meu escritório, recordo cada segundo ao lado da jovem e obstinada cozinheira, e seguro um suspiro ao concluir que, com seu jeito contido e autoconfiante, ela me lembra Alícia. Minha esposa era uma mulher séria e perfeccionista, que sabia o que queria e que caminho trilhar para alcançar cada um dos seus objetivos, e tudo o que fazia era intensamente, com a alma e o coração. Ela não desistia. Sempre ia até o fim. Mas é aí que as semelhanças terminam. Enquanto Alícia era uma beleza morena, exuberante e encantadora, Isabella se assemelha a um querubim loiro, com olhos de gelo que, vez ou outra, derretem-se com o calor do seu sorriso. E que sorriso...
Eu aperto os olhos e sopro um suspiro, afastando a lembrança e a sensação da sua presença...
Ela não é Alícia. É apenas mais uma funcionária. Mais uma mulher.
Ninguém nunca será Alícia.