Capítulo 2 - Agnes
Não gosto do cheiro de hospitais. É um cheiro que me faz lembrar a morte e eu não gosto de pensar que minha irmã pode estar morrendo num momento como esses. É muita coisa para assimilar e eu não quero, por Deus, pensar em algo assim.
Ainda assim, não posso mudar o fato de que o cheiro está ali presente e que eu estou aqui, sem ter conseguido pregar os olhos nos últimos dois dias, esperando uma notícia de algum médico, esperando um milagre que faça minha irmã sair da UTI.
Quando cheguei, a última notícia que tive foi que havia sangue no pulmão e que ela precisaria ser operada por conta disso. O médico disse que o caso dela era complicado, já que o câncer dela também era no pulmão. O que causava, por conseguinte, um alto risco de complicações.
E depois, para piorar a situação toda, Sofia estava em coma induzido. Colocada na UTI esperando que um milagre a ajudasse. Os médicos diziam que ela podia continuar em coma mesmo quando retirassem-na do coma, e eu não sabia como reagir a isso.
— Alguma notícia a mais? — Perguntou Fernanda chegando do trabalho. Ela vinha nos ver todos os dias, nem que fosse para ficar apenas meia hora, só para saber como estávamos e encher eu e minha mãe com a tentativa de que precisávamos tomar um banho e comer alguma coisa e, enquanto isso, ela ficaria ali para obter mais notícias para nós. Obviamente, nenhuma de nós aceitava a ideia.
— Não. Nada. O médico disse que amanhã vai tirar a Sofia do coma induzido, mas é bem provável que ela continue em coma. Ela ainda está com o dreno. — Disse e Fernanda apenas concordou com a cabeça. Meus olhos, já cheio de lágrimas, tentava controlar a dor que aos poucos me consumia.
Onde eu estava com a cabeça? Pensando em Seth? Em noiva árabe? Pensando que podia viver uma história de conto de fadas? Isso não existe! Nunca existiu! A realidade estava ali e eu não estava aproveitando! Ali estava minha irmã, com quem eu devia ter conversado mais, amado mais, prestado mais atenção. Mas eu não tinha tido sequer a chance de me despedir dela.
O pior de tudo, que quase me levava ao fim do poço, era a sensação de vazio no meu coração. Eu não conseguia sequer lembrar de que tinham sido nossas últimas palavras, nossa última conversa. E isso, sim, fazia com que eu me sentisse prestes a cair num abismo sem fim.
— Ta, ok. Agora vai lá tomar um banho, Agnes. Você precisa comer alguma coisa. E aproveita e dorme um pouco. Quando foi a última vez que Você dormiu? — Começou Fernanda, como ela sempre fazia. O rosto sério, o olhar assassino, mas o coração também desmanchando com tudo o que acontecia.
— Eu estou bem, ok? — Comecei. — Não preciso disso. Vai Você primeiro, mãe. — Disse tentando ganhar tempo. Minha mãe me olhou e olhou Fernanda que, por fim, acabou bufando.
— Vai lá, mas depois da sua mãe, é Você, ok, mocinha? — Disse Fernanda me fazendo revirar os olhos. Eu não queria ir fazer outra coisa além de compensar o tempo perdido com a minha irmã e, a vidente que existia em Fernanda, pareceu perceber isso: — E não vem com essa de tempo perdido que isso não vai adiantar. Você vai tomar um banho e comer alguma coisa, nem que eu tenha que fazer Você fazer isso. — Concordei, ainda que a contragosto. Não gostava nem um pouco dessa ideia.
— Eu vou. Já volto meninas. — Disse minha mãe com a voz embargada. Era a que mais sofria com essa situação toda. Ela que tinha socorrido e trago a minha irmã na situação que o novo remédio a deixara. Ela que estivera ali, roendo as unhas, antes de todo mundo. E eu que sofria com a ideia de perder minha irmã, não conseguia nem imaginar como deveria ser para a minha mãe, a ideia de perder uma filha.
— Sente-se. — Disse para Fer assim que mamãe saiu. Ela sentou prontamente no sofá ao lado do meu, suspirando e jogando a bolsa de qualquer jeito, enquanto retirava o salto alto como uma liberdade há tanto perdida. Por fim, seus olhos voltaram-se para o meu e ela então perguntou:
— Já faz dois dias que Você está aqui no Brasil. A propósito, sem dormir. — Salientou Fer lambendo os lábios enquanto falava. — Mas Você não me disse. Eles aceitaram de boa? — E eu sabia de quem Fernanda estava falando quando se referia a eles. E me doía o coração ao lembrar o quão bom eles eram para mim e o quanto eu não queria abandoná-los, ainda que fosse uma opção diante de tudo.
— Sim. — Disse, suspirando. Havia tanta coisa que eu ainda não tinha contado para a Fer desde que tinha voltado. Eu não sabia, na verdade, nem como o fazer, agora. Mas o horário de visita para a UTI ia demorar e a sala de espera na qual tinham nos deixado, naqueles sofás duros e de cores monocromáticas e frias, estava tão vazio, que, depois de pensar muito e perceber que demoraria ainda para eu ver ou ter notícias da minha irmã novamente, não faria nenhum mal eu contar, finalmente, tudo o que eu tinha omitido, até então, para Fernanda.
— Fer, eu preciso te contar algumas coisas. São muitas coisas... — Fernanda abriu os olhos e a boca ao mesmo tempo, como se estivesse com um babado muito forte para contar, até que então ela despejou alto e forte:
— O Sheikh gostou de Você e Você vai casar com ele? —
— Sim. Não. Oi? É o que? — Perguntei completamente confusa deixando Fernanda mais boquiaberta ainda enquanto ela se abanava e tentava recuperar o ar.
— Okay. Desembucha logo então. Esquece o que eu falei. — Arquei uma sobrancelha ainda sem entender do que Fernanda estava falando, mas preferi não comentar mais nada. Ainda estava desconfiada, mas, ainda assim, falei tudo o que podia para ela, sem retirar um ‘a’.
Conforme eu ia contando, Fernanda parecia muito surpresa. Horas ela ria, horas ela fazia uma cara de assustada, horas ela parecia uma moça vendo coisas muito sujas na história em si e, em outras, ela parecia apaixonada pela história, como se fosse se derreter a qualquer segundo. Contudo, quando cheguei ao fim do relato, contando o que eu tinha visto, como eu tive que ir embora correndo, como eu não sabia mais o que fazer além de ver minha irmã e como eu não conseguia pregar os olhos pelo medo de ter dado toda a atenção a essa história e não a ela, Fernanda me interrompeu rapidamente, ralhando:
— Ai, Ai, Ai. Não vai começar, não é mesmo Agnes? — Franzi o cenho sem entender do que ela falava. Ainda assim, ela continuou: — Você tem todo o direito de viver a sua história. Pare de se culpar por algo que Você não tem culpa! Olha por tanta coisa que Você passou nos últimos dias! E Você não tem culpa de o remédio não ter dado certo! Afinal, Você estava do outro lado do país e sabemos como a comunicação por lá é bem mais precária!
— Mas...
— Mas nada, Agnes! Sua irmã entenderia super! E ainda te apoiaria a viver essa história de amor. Agora só precisamos criar uma maneira de fazer a noiva maluca sumir... E se eu fizesse...
— Fernanda! — Ralhei chamando a atenção de duas enfermeiras que estavam sentadas em outras poltronas, conversando baixo entre si. Controlei minha voz. — Nada de ninguém sumir. Você não vai fazer nada. Já deu. Ele tem casamento marcado, Você sabia? — Disse tentando fazer ela cair em si. Fernanda revirou os olhos.
— E? Casamento marcado. Humpf. Você mesmo disse que ele disse que faria cer... — Interrompi ela.
— O que ele disse não importa! Eu não vou atrapalhar uma coisa dessas! E outra, Você esqueceu que minha irmã está quase morrendo? Eu não vou dar ibope para a mídia brasileira de achar que estou arrebatando o coração de alguém para tratar minha irmã.
— Mas isso é verdade? — Perguntou Fer arqueando a sobrancelha.
— Mas é claro que não! — Ralhei assustada que Fernanda pensasse uma coisa dessas de mim. — Mas certamente falariam isso. E, outra. Se o pior acontecer a minha irmã... — Só de começar a falar, meus olhos encheram-se de lágrimas, temendo o pior. — Eu não voltarei para lá se... — Fernanda balançou a cabeça concordando. Parecia entender o que eu dizia.
— Entendi. Mas não se culpe, Ag. — Começou Fer me fazendo revirar os olhos.
— Bem, pelo menos te contei tudo. — Disse fazendo Fernanda começar a quicar na cadeira. Voltei meus olhos para ela. Isso dizia que tinha alguma coisa que ela queria me contar e meu sinal de que era algo grande começou a apitar.
— Desembucha logo, Fer. — Fernanda apertou um lábio sob o outro, ainda incerta sobre se deveria falar ou não. Peguei-a pelos ombros, apertando levemente enquanto repetia: — Fala logo! — Fernanda revirou os olhos.
— Acho melhor Você ver com seus próprios olhos. — Dito isso, Fernanda pegou o celular que estava dentro da bolsa e passou a vasculhar alguma coisa com seus olhos. Eu estava começando a sofrer com a espera, fazendo um monte de pensamentos incoerentes surgir.
Estaria Fernanda grávida? Com um namorado? Alguém teria morrido? O que será que poderia ter acontecido? Eram tantas hipóteses que meu cérebro já estava começando a fritar. Ou talvez fosse os dois dias sem dormir permitindo que isso acontecesse.
— Olhe. — Era um vídeo. Fernanda apertou o play enquanto me dava para que eu pudesse ver o que ela tanto queria que eu visse.
Voltei meus olhos para a tela. Era um barulho ensurdecedor de um monte de pessoas falando ao mesmo tempo. Quando, finalmente, consegui enxergar Seth naquela massa de repórteres, meu cérebro pareceu fritar de vez e eu não sabia como agir. Eu só conseguia assistir enquanto o meu coração batia descompassado parecendo fazer som até mesmo dentro da minha cabeça.
— É verdade que o Sr. Está pensando em passar as férias por aqui, Sr. Abdul Salal? — Perguntou uma repórter, a voz fina. Ela tinha os cabelos loiros e usava um terninho.
— Sr. Abdul, veio escolher uma esposa brasileira? — Perguntou uma outra mulher de pele morena e olhos bem demarcados pela maquiagem. Também de terno.
— Sr. Abdul, o que o traz aqui, Senhor? — Dessa vez pergunta um homem.
— Eu já tenho uma esposa. E ela logo saberá que é. — Os olhos de Seth, os olhos cheios de determinação e languidez árabe parecem me encarar e eu sinto que há um bolo se formando na minha boca, o mundo caindo na minha cabeça, pois Seth está no Brasil e ninguém sabe da nossa ligação.
— Eu estou ferrada. — Comunico para Fernanda que assente concordando comigo. Engulo em seco.
Eu não sei mais o que pensar, o que dizer, ou como agir. Eu só sei que é muita coisa na minha cabeça, muita ideia pipocando de um lado para o outro e eu sequer consigo formular uma frase direito.
— Esse vídeo é de quando? — Pergunto ainda confusa, tentando fazer o gongo dentro da minha cabeça parar de bater. Estou sentindo meu mundo virar de cabeça para baixo dentro de uma piscina com muita água. E parece que não tem jeito de eu retornar à superfície.
— É de ontem de manhã. — Fernanda parece também estar atônita, um pouco rouca quando diz a notícia. — Mas eu não fazia ideia de que era atrás de Você que ele estava, Ag. — Volto meus olhos para ela, ainda assustada que ela tenha dito isso em voz alta. Olho de soslaio para as duas enfermeiras. Ainda estão conversando entre si. Isso me deixa mais aliviada. Não quero outras pessoas ouvindo que um árabe rico louco está atrás de mim por aí. Não sei o que isso pode gerar. Além de que é perigoso.
— Não pode ser, Fer. — Solto um riso tentando fazer da cena uma comédia, mas parece um riso de nervoso, no fim das contas. — Há uma mínima porcentagem de Nadirah está aqui. — Tento nos convencer, mas Fernanda agora parece decidida.
— Deixou o árabe maluquinho, hein? — Ela tenta brincar chamando a atenção das duas enfermeiras que voltam a nos olhar. Não sei mais onde enfiar a minha cara. Talvez morrer. Uma hipótese razoável agora.
— Minha mãe! — Arregalo os olhos. Fernanda parece entender enquanto eu continuo: — Ela não sabe! Ela não pode saber! — Fernanda faz como se fosse um zíper na boca, mas aparentemente já é tarde demais. Como um timing perfeito, minha mãe pergunta:
— Sobre o que eu não posso saber? — Ela pergunta desconfiada.
Volto meu corpo em sua direção. Gélida e morta, aparentemente. Não sei exatamente que desculpa arrumar, pois há pouco o meu mundo caiu. O que parece é que não tem mais o que esperar. É realidade: Eu estou ferrada. Isso sim.