capítulo 03
Letícia de Alcântara
A viagem é desgastante, quase dois mil quilômetros de distância, 24h de viagem, de um extremo ao outro do estado, realmente escolhi distância do passado. Cheguei exausta, mas já estou gostando da suavidade que minha alma está sentindo, já liguei para o pessoal da imobiliária, preciso pegar um táxi e passar no cartório antes de pegar as chaves, só falta minha assinatura para o começo dessa jornada.
Resolvo todos os trâmites que estavam pendentes e mais que depressa venho para o apartamento. Entro com o pé direito que é para dar sorte, faço uma oração e pedir paz, amor e prosperidade. Pronto! Agora é só limpar e autorizar a entrega dos móveis. Meu coração está carregado de esperança, mesmo cansada da viagem limpo tudo, e já vou organizando os móveis que já chegaram.
— Olá! Nova vizinha, seja muito bem vinda! Eu me chamo Michelle, moro aqui ao lado. Se precisar de alguma coisa pode chamar. — ela fala enquanto me observa, e bisbilhota o apartamento atrás de mim.
— Olá Michele, eu sou a Letícia! Sim, sim sua nova vizinha, obrigada pelas boas vindas, espero que tenhamos dias de boa convivência. — falo já preocupada, afinal nunca tive intenção nenhuma com vizinhos. Espero que ela não seja aquelas vizinhas folgadas.
— Bom, parei mesmo só para dar um oi, vou deixá-la trabalhar. No fim do dia, se quiser podemos sentar na sacada e tomar um tereré — Ela fala com um sorriso sincero, enquanto se dirigia a sua porta. Eu sorrio pequeno ao ser acolhida logo na chegada, as coisas parecem estar mudando.
Não comprei muita coisa de casa somente o essencial, e para ficar bom a cama só vão entregar amanhã. Estou faminta, afinal ainda não coloquei nada no estômago, então resolvo dar uma volta e procurar um comércio, aproveito e já me situo sobre meu endereço. Entro em uma mercearia e panificadora duas quadras abaixo de casa, escolho alguns pães, tô levando uns frios e café, acredito ser o suficiente até que eu consiga me organizar.
O dia já foi e eu ainda não liguei para minha mãe, apenas avisei que cheguei, vou fazer uma vídeo chamada assim já vê o apê e me vê também. Ligo e conversamos por horas. Agora tenho um impasse, a cama não foi entregue, não quero ir pra um hotel, tomo um banho quente e demorado enquanto penso no que fazer essa noite.
Ao sair do banho coloco um pijama e desfaço as malas, vendo os edredons que trouxe, decido que vou forrar no chão e dormir em casa mesmo. No alto da madrugada vejo que definitivamente não foi uma boa idéia, o clima esfriou bastante, olho a temperatura no app do celular e marca 6 graus. Senhor Jesus!! Que frio é esse? Quando marca 5h da manhã eu já não aguento mais esse gelo todo, levanto e passo um café, volto para o emaranhado de edredons e me sento para beber café e me aquecer.
Suspiro aliviada assim que noto o dia clarear e assim que dá 8h da manhã ligo para a loja para acelerar a entrega da cama, não aguento outra noite desta. Saio para fazer compras no supermercado, depois de algumas horas andando pela cidade vou para casa. Na portaria encontro com a Michelle.
— Olá, vizinha! Já se alocou? Está precisando de ajuda? Hoje é minha folga, se precisar pode chamar — Ela fala enquanto seguimos juntas prédio adentro, sorrio pequeno enquanto meu coração se aquece com um pouco de acolhimento, Michelle é uma mulher muito agradável e bonita.
— Oii! Já sim, só falta terminar de arrumar o quarto pois só entregaram a cama hoje, agora vou guardar as compras e já tá tudo arrumado. Já que é sua folga vamos lá pro meu apê, faço um café enquanto nós conversamos e nos conhecemos melhor — Convido, preciso formar círculos sociais rápido.
Ela aceita e nós vamos para meu apartamento, faço um café, asso pão de queijo, que comprei congelado, falamos sobre a vida dela na cidade, a profissão dela, que é no cabeleireira e que tem o privilégio de trabalhar em frente de casa.
Eu evito dar detalhes da minha vida, afinal nem eu mesma sei o que estou fazendo aqui, conto sobre o fim do relacionamento, mas não sob o cenário real, e moldo toda uma versão e dali em diante essa é a verdade absoluta, ele me traiu e eu vim embora para não sofrer mais. Conto sobre meu planejamento de começar a fazer faculdade ainda esse ano. E também digo que trabalhava no setor administrativo de um clube na cidade que eu morava, mas que ainda não olhei o que vou fazer aqui. A conversa estava tão leve que nem percebemos a hora passar, quando vimos o dia já tinha escurecido.
— Meu Deus! já está tarde! Preciso mesmo ir, outro dia marcamos para sair, comer uma pizza ou ir numa baladinha, não sei se gosta. — ela diz se levantando — Muito obrigada pelo café e pela companhia.
— Eu que agradeço, sempre que tiver com tempo vago, vem pra cá, podemos fazer vários nadas juntas. — falo divertida enquanto a acompanho até a porta. — deixa que eu abro para que você volte mais vezes — falo e rimos juntas.
Faço uma sopa para aquecer, nunca imaginei que sentiria tanto frio como estou sentindo, aff! Arrumo a cama, coloco uma manta bonita em um tom alaranjado, escolho uma cor forte e quente para regozijar o ambiente, organizo o quarto deixando-o mais aconchegante possível, não que eu seja uma exímia arrumadeira mas eu tento ser sempre melhor em tudo que faço, por mais simples que seja.
Passeio um pouco pelas redes sociais, apago algumas fotos minhas com José Felipe, emails com declarações, não quero ficar relembrando esse passado — Quer saber? Eu vou ler, essa internet só vai me atrasar — falo sozinha enquanto escolho um livro e começo minha leitura.
Acordo um pouco dolorida, dormi de qualquer jeito, na verdade não lembro nem quando realmente adormeci. Levanto, faço café e como não tenho nada pra fazer, procuro as instituições que oferecem o curso que quero fazer, encontro algumas e após uma boa análise, me inscrevo no vestibular que é daqui uns dias, o que é ótimo pois dá tempo de dar uma revisada. Já sou graduada em administração, porém não é o que eu realmente quero.
Passo os dias em casa, saio apenas para comprar alguma coisa, meus dias estão resumidos em dormir, acordar, comer, estudar, dormir de novo. Não fiz absolutamente nada produtivo ou rentável desde que cheguei, devo tá achando que nasci herdeira ou que dinheiro vai cair do céu.
(Número desconhecido) 23/10 - 13:30
Oi! Prometi não incomodar mas não consigo parar de pensar em você.
(Eu) 23/10 - 13:31
E aí? Tá vacilando heim, se eu subir as ideia tlgd que o bagulho fica louco né?
(Número desconhecido) 23/10 - 13:32
Desarma mana, eu só quero trocar um papo da hora.
Me dá uma oportunidade, se eu passar dos limites
você me bloqueia e eu não falo com você novamente,
mas me deixa ao menos tentar ser seu amigo.
(Eu) 23/10 - 13:33
Dos limites você já passou quando mandou
mensagem a primeira vez, mas vai,
aproveita a sua oportunidade não é todo dia que tenho
paciência pra gente intrometida não.
Mando a mensagem já irritada, porém já estava a dias sem falar com ninguém além de minha mãe que eu acabo cedendo só para ter com quem falar, nem a Michelle não está em casa essa semana pois viajou para fazer um curso.
O que a carência não faz!? Estou a horas conversando com um estranho, ao menos agora sei que chama "Puff", não é bem um nome mas já é uma referência. Segundo ele, mora aqui na cidade a alguns anos e tem uma quadrilha especializada em crimes financeiros. Até que é leve dado o grupo que ele pegou meu contato.
Eu deveria ter bloqueado no momento em que vi que estava entrando em outra fria mas não sei que vibração é essa que me atrai para esse tipo de pessoas. Também nem sei o que estou falando né, eu sou esse tipo de pessoa, só estou parada mas sempre gostei da adrenalina do corre, não é atoa que batizei e entrei pra caminhada.
O dia finaliza dentro do normal, o único diferencial é que agora eu tenho uma companhia virtual, e eu estou gostando desse primeiro dia, é bom não me sentir só. E que mal tem nisso ele é só um novo amigo. Não sei dizer como ele é fisicamente, ainda não encontrei uma oportunidade para pedir foto ou fazer uma chamada por vídeo, na melhor hora eu peço.
A semana passa voando, vestibular já é hoje a tarde e eu ainda não reservei o táxi. Pego o telefone já peço, olho minha documentação, organizo tudo dentro da minha bolsa. Mesmo sabendo que é algo bem tranquilo, sinto um gelo na barriga. Assim que termino de me arrumar e beliscar uma comida leve o aplicativo apita informando que o carro chegou.
Não demorou muito para concluir a avaliação e o resultado já sai em poucas horas, o que eu acho ótimo assim não me ataca a ansiedade de ter que esperar. Pego o celular e tem mensagem da minha mãe perguntando como foi e também do Puff que agora já faz parte do meu dia a dia, ele está presente em todos os meus passos da hora que acordo até a hora que vou dormir. Eu nunca nem o vi, mas sei que já estou sentindo borboletas na barriga, e sei também que isso não poderia estar acontecendo. Respondo todas as mensagens e pego um táxi de volta pra casa. Meu celular toca olho na tela é Puff ligando.
— Oiê! —Atendo entrando no carro.
— Oi princesa! Já chegou em casa? Tenho duas surpresas para você quando chegar — Ele fala com a voz carinhosa.
— Não meu bem, daqui uns quinze minutos já estou lá aí você me liga — desligo e indico meu destino ao motorista, que aguarda direcionamento para iniciar a corrida.
Ao chegar na porta de casa o motorista estaciona, acerto a corrida, me despeço e desço. Quando estava entrando um entregador me aborda e diz que tem uma entrega para mim, me entrega um buquê de flores, uma cesta de chocolate e um cartão. Sou tomada por uma emoção sem igual, lágrimas rolam pelo meu rosto e eu me apresso em entrar em casa para ligar e agradecer por todo carinho.
Enquanto ligo para ele, abro o cartão e fico sem palavras ao ler "enquanto eu existir você nunca mais estará só".
— Oi! Você é realmente doido né? — falo quando ele me atende. E ele apenas me pede que aceite a solicitação de vídeo, enfim acaba esse mistério e eu vou ver quem ele é. Aceito o vídeo e me surpreendo com o que vejo, um rapaz jovem e atraente, gargalhando enquanto falo — depois de tanto suspense confesso que já estava te imaginando um velho barrigudo banguela. Mas você é bonito.
Ele ri sem graça e me diz que tem algo para me mostrar.
— Letícia! Primeiro de tudo eu quero te mostrar algo, eu menti quando disse que estava viajando a trabalho e que logo retornaria, eu achei que te queria apenas como uma aventura e hoje vejo que te quero para sempre e assim sendo eu preciso ser transparente com você — ele fala com calma, olhando cada gesto meu,
analisando cada detalhe, eu em contrapartida já criei mil e uma paranóias com toda essa introdução — Eu vou ser bem direto, e entendo se quiser não falar mais comigo, enfim o que eu tenho pra dizer é que eu não estou viajando, eu estou PRESO!
As palavras ecoaram na minha mente e ficaram se repetindo algumas vezes. Permaneci alguns segundos em choque, quando recobrei meus sentidos olhei séria para a câmera pois queria olhar bem dentro dos olhos dele.
— Você não tinha o direito de fazer isso comigo! Você acabou de jogar fora a chance que eu te dei de se aproximar de mim, apaga o meu número e some da minha vida. Eu sempre te falei em todas as nossas conversas que eu não perdôo mentiras, você tinha liberdade para falar sobre tudo não falou porque não quis — desligo não só a chamada como também o aparelho. Quero ficar em paz com os meus pensamentos, eu deveria ter me curado antes de deixar outra pessoa se aproximar, agora estou sofrendo uma decepção em cima de outra que nem tinha se fechado. Deito pra chorar enquanto um filme passa na tela do notebook que está ao lado.
Não percebi o momento em que adormeci mas acordo com a cabeça doendo, olhos inchados, nem jantei, minha barriga está se corroendo de fome, faço um café reforçado e crio forças para ligar o aparelho celular, minha mãe deve estar preocupada, a faculdade deve ter entrado em contato e certamente tem mensagens do Puff.