Cap 8 - Quando o Tempo For Propício
1996, Candeias Bahia
Nunca entendi bem a expressão "peixe fora d'água" até o momento que estava vivendo. Lembrava-me de adorar vir para cá nas férias. Eu gostava do clima, das pracinhas lotadas, das comidas que na praça vendiam. O fato de tudo ser motivo de festa e dança para eles, a alegria do povo baiano me contagiava, mas agora...
Me irritava.
Não sei se os egoístas sem noção são eles. Que não respeitam a dor alheia. Ou se eu sou a egoísta sem noção, por querer que as minhas dores parassem o mundo.
Pensei que minha mãe iria entrar no quarto, para me dar mais uma lição de como a ferida irá cicatrizar. Ela ficava super triste quando fazia grosserias com seus parentes festeiros. Sei que era errado, mas não conseguia controlar.
Sentia raiva o tempo todo.
Para minha surpresa, quem bate a porta é meu padrasto Carlos. Era um homem legal, não se intrometia em nada, sempre solícito sem ser invasivo.
— Posso entrar? — Perguntou por detrás da porta e eu permiti.
Estava sentada no chão, abraçando minhas pernas e com a cabeça recostada sobre meus joelhos.
— Olhe! Sei que não quer falar com ninguém, mas poderia me dar só um cadinho da tua atenção? — Pronuncia com seu sotaque carregado.
— Pode falar. - Respondo sem muito ânimo.
— Lembrei de duas coisas que pode lhe ajudar a controlar a raiva que está aí dentro.
— Não estou com raiva. - Falo seca.
Sem dar atenção para minha resposta, Carlos continua a falar. — Você fazia boxe e eu tenho lá no porão um saco de boxe. Velho, mas não tem furo. Quer que ponha aqui no seu quarto? Quando alguém lhe irritar, desconte sua raiva no saco, ele não sente e não se magoam.
A ideia dele não era mal. Aliás era muito boa, bem melhor descarregar minha ira no saco de pancada, do que nas pessoas.
E eu o agradeci.
4 ANOS DEPOIS
— Oxe! Como você vai largar a psicanálise?! - Minha mãe pergunta indignada.
— Não só ela, o psiquiatra também.
— Mas ninguém lhe deu alta minha filha. - Ela contesta.
— Eu estou me dando. - Dona Bárbara anda atrás de mim pelo quarto, enquanto vou colocando minha roupa de treino. - Estou cansada de estranhos me dizendo: lembre disso Bruna, faça isso Bruna. Estou pegando a rédea da minha vida novamente.
— Está sendo ingrata com seu padrinho que paga tudo com esmero. - Argumenta.
— Mas um motivo para eu largar. Ele paga escola cara, plano de saúde, me assumiu financeiramente e não tem obrigação alguma em fazer.
— Concordo com você, mas ele faz por amor a ti. Falei várias vezes que iria lhe criar dentro das minhas condições. Me convenceu dizendo que padrinho é segundo pai.
Depois de me vestir e prender os cabelos, sentei na beira da cama para pôr o tênis. No momento que parei, vi a aflição na face da minha mãe.
— Ei! Não fica preocupada, estou bem. Parar de pagar essa psicanalista caríssima, vai aliviar o meu padrinho.
— Estou com medo do que vai fazer com a sua vida. A mim não consegue enganar. Parece que não sou bastante para ti. Você só se importa com Bruno.
— Sabe que amo a senhora. E quem não me engana é a senhora com essa chantagem emocional.
Ela respira fundo e segura minhas mãos.— Filha promete para mim que nunca vai voltar para o Rio de Janeiro, aí sim fico tranquila.
— Sabe que não prometo mentiras. Mãe, meu pai merece a justiça de ter o nome limpo.
— Você vai é se destruir minha filha. Essa gente que fez isso com Bruno é perigosa.
— A senhora está sofrendo de véspera, tenho 16 anos e um caminho muito longo a percorrer. Mas uma coisa juro para senhora, nunca mais serei caça, nunca mais subirei em uma árvore.
— Todos acontecimentos ruins deveriam lhe servir como lição.
— E foi. A lição mais dura que já recebi.
— Tenho medo. O que vai fazer minha filha? — Pergunta chorosa.
— Vou correr mãe. Agora somente correr.
Dei um beijo na testa dela, e sai no cooper acelerado. Corri, corri tanto que não vi o tempo passar.
As atividades físicas me tiravam a aflição e era essas atividades a minha analista. Nem todo amor e paciência da minha mãe foi capaz de controlar minha raiva.
E assim o meu tempo foi passando...
Saía da escola e ia para luta
Saía do cursinho de línguas e praticava cooper.
E assim foi seguindo...
Saía da faculdade e ia para o treino noturno.
Saía do cursinho pré-militar e praticava mais lutas.
E assim o tempo foi passando...
9 ANOS DEPOIS
Na polícia a gente treina o tempo todo, principalmente quem trabalha em campo, como eu.
Correr atrás de maloqueiro, tem de ter energia. Eles são tão magros que parece que o vento os leva. Tenho uma ótima condição física e quase sempre os pego, Mas talvez esse iria se safar.
Era pré carnaval na Bahia, e esse era o quadragésimo furto que iria apreender.
Ou não.
Da maneira que ele abriu no pé, qualquer um dos meus colegas já teria atirado na perna desse meliante, o pararia e pegaria o celular da moça de volta. Por outro lado causaria pânico, corre corre e pisoteamento.
O ladrão se embrenhava pelas barracas e saltava os isopores de gelo espalhados pelos caminhos. Tudo que ele via que pudesse me conter, arremessava ao chão para impedir minha passagem.
Definitivamente estava em uma maratona com obstáculos.
É não tinha jeito, tinha que desarrumar meu cabelo. Puxei a vareta do coque e quando tive uma boa mira, arremessei no desgraçado.
Talvez a mira não tivesse tão boa assim.
O grito que ele deu, junto ao tombo fez eu perceber que acertei o alvo em cheio.
E foi em um lugar bem peculiar.
Pus a arma em punho e fui andando com ela em riste. — Fica deitado, onde está. Não se mexe. — O ordeno.
— Porra você furou minha bunda! — O meliante reclama.
— Cala sua boca, senão enfio essa vareta na sua língua. Continua deitado no chão e com as mãos para trás.
Quando iria algemar o vagabundo, escuto uma risada escandalosa. Carvalheda meu parceiro havia chegado por ali.
— Tu se supera viu Tenente! - Fala aos risos. Conseguiu acertar o aderrier, o botico do maloqueiro.
— Não foi por querer, estava sem mira. Corri o dia inteiro atrás desses ladrõezinhos de merda. Para de palhaçada e me ajuda a revistar para achar o celular da moça que ele furtou.
— Me revista você dona polícia, vai ser bem mais gostoso.
O vagabundo queria tirar minha paciência, se é que eu tenho alguma. O virei contra a parede e puxei a vareta com brutalidade de suas nádegas.
— Ai! A senhora sabe que não pode fazer isso.
Não dei a mínima para ele, o Carvalheda achou o celular e levou até a dona. Logo após nós levamos o meliante para delegacia.
Tomaria um café antes de largar do plantão, enchi o líquido de aroma gostoso fumegando dentro da pequena xícara, uma colher de açúcar é suficiente
Tomaria um café antes de largar do plantão, enchi o líquido de aroma gostoso fumegando dentro da pequena xícara, uma colher de açúcar é suficiente. Segurava na alça levando a porcelana na boca e sou interrompida pela indignação da delegada.
— Enfiou uma pau em um suspeito novamente?! — Pergunta já sabendo a resposta.
— Perdão senhora! Mas não foi um pau, foi uma vareta. — A corrijo.
— Dá no mesmo. O que acontece é que não pode fazer isso. É arbitrário.
-— Se não usasse a vareta, seria a pistola. E o estrago seria maior.
— Mas a pistola você tem autorização para usar. O estado lhe permite. Se algum dia alguém fizer uma queixa terá problema.
— O estado deveria me agradecer pela economia. Não gastei munição e ao invés de cirurgia para extrair o projétil, no máximo que o SUS vai gastar é a atadura e um pouco de rifocina.
Ela sorriu e bufou ao mesmo tempo. — É a melhor e mais estranha policial que o batalhão manda para cá.
— Estranha por quê? — Finalmente consigo sorver o meu café.
— Ainda pergunta! Enfia as tais varetas por aí e é uma tenente que gosta de atuar em campo.
— Sabe que quero ir para a P2, e meu currículo nunca será bom para eles se eu não atuar em campo. Se fosse homem, minha patente bastaria, mas sou mulher e a coisa muda.
Naquele momento nada falou, apenas gesticulou com a cabeça, em sinal de positivo. Deixando a entender que eu tinha razão.