Cap 5 - Eu Sei Que Posso Sobreviver
Sorte que tinha macarrão instantâneo em casa. Meu pai saiu cedo sem falar comigo e até agora nada dele. Passavam das 14 horas, só me restava mesmo comer o macarrão de três minutos. Não sou acostumada a sentar à mesa para comer sozinha. Sempre tem alguém comigo, quando não é meu pai, é a minha tia ou o Anttone quando estamos na escola.
Pus o prato fumegante em cima da mesa, em seguida puxei a cadeira e sentei-me. Antes que pudesse colocar a primeira garfada na boca, algo me chamou atenção. Sobre a mesa tinha uma mala vermelha velha, antiga e cafona. Sabia que aquilo não era do meu pai, jamais tinha visto aquele objeto.
Senhor Bruno sempre tentou controlar minha curiosidade. Sempre foi seu propósito e posso dizer que ele conseguiu. Entretanto tinham coisas que era impossível resistir. Ninguém pediu segredo e estava sozinha, abri a mala matando meu desejo de ver o que tinha ali dentro.
Era um envelope com vários documentos de um mesmo homem, com imagens e nomes diferentes. Parecia o homem das mil faces. Junto, tinha uns papéis que não compreendi bem, estavam em espanhol. Contudo, deu para saber que eram cinco milhões em uma conta na Colômbia, o mais estranho é que nesse papel dizia que a conta era de Bruno Oliveira Grimaldi.
"Não. Meu pai não tem esse dinheiro."
Sabia que algo errado acontecia, mas não tinha ideia do que era. Minha tensão e confusão aumentou, quando meu pai entrou dentro de casa com o semblante transtornado. Na noite anterior ele parecia bem e feliz. Agora vejo uma nuvem negra sobre a cabeça dele.
Iria falar com ele, dar um abraço. Nem deu tempo. Foi até o quarto de ferramentas e pegou uma pá, depois pegou a tal mala, papel e caneta e saiu rumo aos fundos do nosso quintal.
[•••]
Pouco mais de uma hora, meu pai voltou e seguiu direto para o chuveiro. Não sabia o que fazer, algo estava muito errado. Ele andava de um lado a outro dentro de casa.
— Pai está tudo bem? Quer alguma ajuda?— Ofereci solicita.
Por um instante ele parou. — Está tudo bem sim minha querida. Porquê você não vai fazer seus deveres. Depois de amanhã já volta à aula.
— Tudo bem pai. — Apenas assinto.
Não quis se abrir comigo. Os adultos acham que só eles tem problemas. Que pessoas na minha idade não conseguem compreender. Queria ajudá-lo, por fim iria obedecer, a única coisa que não queria era deixá-lo mais triste.
Peguei meu material e me sentei a mesa, dando início as minhas tarefas.
Bem a noitinha depois do jantar, meu pai estava mais calmo, assistia a reportagem quando alguém o chamou no portão. Sabia que eram os colegas de trabalho do senhor Bruno. A luz da sirene do carro iluminava meu quintal.
Ali tive a certeza que algo muito grave estava acontecendo. Meu pai levantou rapidamente e antes de atender quem o chamava, veio até mim.
— Filha! Dentro do fundo falso da gaveta no quarto do papai, tem um mapa.
— Mapa!
— Sim. Como se fosse um mapa do tesouro. Quero que tire de lá. E esconda em um lugar mais seguro.
— Estou com medo pai, o que está acontecendo.
— Não tem do que temer. — Ele afirma. — Não está acontecendo nada. Isso que te pedi é um segredo só nosso. Sobre hipótese nenhuma conte a alguém.
— A ninguém — confirmo.
— Exatamente a ninguém.
Ele me beijou a testa e foi no portão falar com quem o chamava, no mesmo instante, fui atender ao pedido do meu pai. Quando voltei, fui direto à janela da sala. Daquela cena jamais me esqueceria, o algemaram. Por um instante ele olhou pra mim e logo disse que me amavs com os lábios, sem emitir som. Aquela foi uma maneira de dizer que iria ficar tudo bem.
Era o que eu acreditava.
Para piorar, um dos policiais adentrou o meu quintal e entrou na minha casa como se fosse a dele.
— O senhor pode se retirar? Meu pai não vai gostar que o senhor fique aqui dentro comigo sozinha.
— Fica tranquila neném! Foi seu próprio pai que pediu para eu tomar conta de você. — O homem à minha frente falava de um jeito que meu estômago revirava.
E não sei se isso era um bom sinal.
Tentando sair daquela situação, meu pensamento foi rápido — Não precisa, vou ligar para dona Esmeraldina e ela está aqui em três minutos. Ela mora no fim da rua. Então o senhor já pode ir.
Vou em direção do telefone o tirando do gancho, mas o homem puxa da minha mão e fala de forma intimidadora — Senta lá e vai fazer o seu dever. — Ele ordena. — De mim não precisa ter medo. O tio aqui é policial como seu pai. Somos mocinhos, não bandidos.
[•••]
Já havia se passado algum tempo, o silêncio era quase palpável no ambiente, só ouvia o barulho das folhas do livro que virava, no qual fingia ler. E as baforadas de fumaça, já que aquele sem noção fumava um cigarro atrás do outro dentro da minha casa.
Quando o telefone fixo tocou, me assustei, foi um barulho estridente em meio ao um silêncio assustador que estava na minha sala. Mas levantei correndo e o policial ergueu a mão fazendo o sinal de pare, não deixou que eu atendesse o telefonema, que de certo era para mim.
Ele foi quem atendeu.
Me deixando ainda mais confusa, ele atendeu o telefone e disse seis palavras: Alô e cinco vezes Ok. Tenho pouca idade, mas não sou boba. Aquele homem recebeu uma ordem.
E provavelmente iria me machucar.
Sentada estava, sentada continuei. Sei que ele sabia que nada eu estudava, mesmo assim continuei a fingir. O tempo estava fresco no Rio por conta da chuva e naquele momento, escutava as gotas do meu suor bater ao chão, como em um dia de calor.
A passos largos, como quem tem pressa. Ele saiu do sofá, pondo o telefone na banqueta de madeira que ficava ao lado do mesmo. E se pôs a me contar mentiras.
— Era seu pai ao telefone, me pediu para você pegar a mala e o envelope que deixou por aí, ou com você, algo assim. — Ele mente, achando que cairia nessa historinha. — Quer que eu leve até ele. Seu pai está precisando dessas coisas urgente.
Não podia dizer que sabia que ele mentia. Resolvi fazer o mesmo.
Mentir.
— Que coisas são essas? É o envelope que está com a minha certidão e a nossa mala de viagem? Para que meu pai quer isso agora? — Tentei, infelizmente não deu certo.
Só consegui irritar aquele homem. Ele deu mais uma baforada nojenta, deixando aquele mau odor no ambiente. Virou minha cadeira e me levantou, puxando-me pelo braço com brutalidade.
— Não estou para brincadeira menininha, então vai logo pegar o que seu pai pediu, para o tio aqui ir embora e você poder dormir feito um anjinho.
O tempo todo tentava me intimidar, ele conseguia. Sentia muito medo, mas a voz do meu pai na minha cabeça, era a força que me encorajava.
— Olha só “titio polícia”, não sei que coisas são essas. E se era o meu pai, por que você não deixou o próprio falar comigo? Assim, ele mesmo poderia me dizer o que quer com clareza.
Nesse momento o tirei do sério. Se existia alguma paciência no policial corrupto, ela se esvaziou como a fumaça do seu cigarro fedorento. Com ignorância me empurrou novamente na cadeira.
Pegou outra cadeira de forma brusca, a colocou ao contrário, sentou como se montasse em um cavalo de frente para mim. Ficou me encarando com sua cara feia, por alguns segundos que pareciam uma eternidade. Estalou a sua arma a movimentando com as duas mãos, colocou em cima da mesa ao lado do meu material escolar. Olhou bem para os meus olhos, todo esse ritual era para me fazer tremer.
— Aqui por enquanto, só está o “titio”, pois o polícia não está aqui. Se caso o policial estivesse, JÁ TERIA COLOCADO ESSA ARMA NA SUA CABEÇA, E LHE OBRIGADO A ENTREGAR ESSA MALDITA MALA E ENVELOPE. — Ele gritou como um monstro, senti seu bafo quente e fedido na minha cara. Meu medo só aumentava, precisava ser corajosa e me manter firme — Se você ainda quiser ver o seu pai vai buscar agora e me entrega de uma vez por todas, os itens que lhe pedi.
O cabo tinha um tom ameaçador. E eu tremia como o Anttone, quando foi falar com a diretora. Toda fragilidade e medo que sentia naquele momento, me fazia lembrar do meu amigo que não via há quatro dias.
Estava apavorada de medo. Por um único momento pensei em entregar tudo ao tal Mendes, a etiqueta na farda me mostrava a todo momento o nome dele, mais uma vez, a voz de meu pai ecoava na minha cabeça, dizendo que não podia falar a ninguém, pois era um segredo somente e unicamente entre nós dois.
Novamente o Anttone ocupou a minha mente e como ele sofria covardias. Como eu naquele momento. Passou um filme na minha cabeça com o João Pedro e sua turma o ameaçando e o que tinha feito para defendê-lo.
Eu tinha uma espécie de tara por apontar meus lápis, tanto que mal duravam dois dias. Meus lápis estavam ali, ao lado da arma dele, com a ponta tão afiada, que lembrava um espeto que meu pai utilizava para destrinchar frango, poderia furar com facilidade qualquer pedaço de carne.
Sem pensar duas vezes, e mais rápido do que Mendes pudesse imaginar. Peguei o lápis e cravei no olho do policial bandido. O lápis entrou furando e jorrando sangue em cima de mim.
Que nojo!
Ele começou a gritar de dor, como em um filme de horror.
— Sua putinha! Arrrrrg ai que dor! — urrava com uma das mãos no olho, completamente ensanguentado, na outra mão segurava a arma apontando a esmo — vou te pegar sua vagabunda mirim. E quando pôr as minhas mãos em você, não vai sobrar nada. Sua puta.
Tentando ficar viva, peguei meu pequeno travesseiro lilás em cima do sofá e pulei a janela. Em meio a um breu, subi na mangueira sem que ele visse. Fazia tanto isso por diversão que nem precisava de claridade. De cima da árvore comecei a rezar
"Meu Deus, eu quero meu pai. Estou aqui, nessa árvore no escuro, e esse homem me gritando, me xingando lá embaixo... Cadê meu pai que não chega?".