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Cap 1 - Venha Como Você É

Maio de 1996, Rio de Janeiro capital do RJ

Sou feliz, mesmo que o mundo tente me dizer o contrário. Acho graça quando dizem que uma pré adolescente de 12 anos como eu, não pode ter uma vida normal, só pelo simples fato de ter pais separados.

Algumas pessoas tem cada ideia!

Tenho pais que me amam e se amam, só não são mais um casal. Segundo o meu pai, o respeito é a base de tudo e deve ser esse o motivo que a minha família é tão próxima, mesmo quando estamos distantes. Amo as férias que sempre passo na Bahia junto da minha mãe e adoro o Rio de Janeiro onde moro com meu pai.

Cheguei a morar em Candeias com minha mãe por um curto período, depois meus pais decidiram que eu voltaria para o Rio para ter uma qualidade de ensino melhor. Aqui existem muitos colégios "públicos" de qualidade. Públicos, por assim dizer, são escolas federais que entram através de concurso tão rígido quanto um vestibular - não que eu conheça um vestibular - mas é o que dizem. Ainda existem aqueles que entram pela porta dos fundos, como muitos filhinhos de políticos.

Estudo no Imperador, é simplesmente uma das melhores escolas do estado e quarta melhor do país. Para eu entrar, como diz meu pai "tive que suar a camisa" foi de longe a prova mais difícil de toda a minha vida. Só sendo um crânio de ferro como meu amigo Anttone para gabaritar uma prova dessas.

Ele é muito inteligente.

Um pouco lerdo, mas super inteligente. Ainda bem que o sargento Grimaldi não houve pensamento. Senão essa hora estava me dando uma bronca, por chamar de lerdo meu melhor amigo.

Ser filha de militar tem um lado bem chato, tenho um estilo mais despojado, porém meu pai sempre faz eu sair para escola como se fosse marchar na posse do presidente da república.

Todas as manhãs é o mesmo discurso.

— Minha filha, sua farda tem de estar impecável, passe muito bem a gola, o bolso da blusa e as pregas da saia. — Ele adentra o quarto me alertando. Aff! Ainda hei de ver uma escola que o uniforme será um jeans rasgado, uma camiseta irada e um all star bem surrado.

E assim estou eu, feito um soldadinho do dia sete setembro rumo a escola. A notícia boa de hoje é que meu pai está de folga, assim ele me leva rumo aos estudos. Nós conversamos sobre tudo. Meu pai conhece todos da minha sala sem ao menos tê-los visto.

Com a mão esquerda no volante e a outra repousada sobre a marcha, Ele me chamava atenção. — É errado filha! Não adianta tentar me convencer do contrário. Usou de palavras ofensivas utilizando a forma física do seu colega de sala, para ganhar uma discussão com um moleque grosseiro. Foi tão grosseira quanto ele.

— Fala sério pai! Ninguém é tão grosseiro quanto o João Pedro, lá naquela escola todos os protegem. E o Anttone, não tem ninguém por ele.

— Sei como é difícil lidar com injustiças. Mas deve entender que algumas ações fogem do nosso controle.

— Vou dizer ao senhor o mesmo que disse Anttone. Ele também não gostou que chamei o JP de baleia albina.

— Esse menino além de bom aluno é bom caráter, gosto que tenha esse tipo de amizade. Mas o que disse a ele? — me pergunta curioso.

— Que ao chamar o "Joãozinho" de baleia, — falo com desdém — estou na verdade ofendendo a pobre da baleia, não o João.

Meu pai meneia a cabeça, como se aprovasse o que falei — É uma perspectiva diferente. Entretanto, não devemos fazer coisas ruins e tentar arranjar desculpas para que pareçam boas. Os fins não justificam os meios. 

Adorava ouvi-lo, mesmo quando estava me dando lição de moral, mesmo quando ele falava tão difícil que não entendia bem. O que entendia, era que aquele era o nosso momento.

[•••]

— Chegamos! — Disse meu pai. — Destravei o cinto de segurança e me inclinei para receber seu beijo em minha testa.

— Tchau pai! Até mais tarde.

— Até filha.

O Colégio Imperador por fora é bem legal, tem a estrutura que lembra um castelo. Ao adentrar o primeiro grande portão, olhei para o velho cuco de madeira que ficava na parede da recepção. 

"Em três minutos, o sinal tocará para formarmos filas e cantar o hino."

Antes de chegar a quadra que ficava no fundo da escola, tinha que passar por dois corredores extensos. O primeiro corredor eu passo patinando por ele, o chão negro de tão encerado e deslizante parecia uma pista de gelo.

Estava me divertindo com a patinação.

Até virar para o próximo corredor e dar de cara com a realidade daquela escola que me deixava cheia de raiva.

Aqueles idiotas enchendo a paciência do Anttone. O material do meu amigo jogado ao chão e ele contra a parede, pressionando pelo bando de covardes.

Corri até aonde eles estavam, precisa tirá-lo daquela situação.

— Deixem ele em paz! Porque você não vai procurar a sua turma?— Falo irritada me pondo entre o Anttone e o idiota do João Pedro — Que "pé no saco" são vocês.

— Agora o circo ficou completo. A mulher macho chegou defendendo o favelado. Sempre soube que você tinha um saco por debaixo dessa saia.

E toda sua patotinha caiu na gargalhada. Fazendo com que ele se sinta mais poderoso, pois tudo que João falava, seus seguidores sem cérebro riam.

Vamos ver quem eu por último.

— De testículos você entende não é mesmo. Porque está rendido. Deve ser a única coisa que consegue ver por debaixo da sua pançona.

João Pedro arma um soco e vi o desespero do Anttone se pondo a minha frente. Tirou os óculos e apertou os olhos esperando a pancada. Porém o empurrei, não tinha e nunca terei medo de um covarde como JP.

"Meu pai se souber não vai gostar, mas eu sabia um jeito de fazê-lo recuar."

— Me bate. Experimenta a sorte e me bate. Já contei ao meu pai o que faz. Ele disse que se me encostar um dedo, você dorme na FEBEM. Porque ele vem pessoalmente e te enfia lá dentro. Tem papai político? Eu tenho papai polícia.

— Uhuuuuuu que meda! — Ironiza o rechonchudo — Meu problema é com o nerd favelado, não com você. Faz um favor, não se mete.

— Anttone é meu amigo. Já disse para o deixar em paz. Mexeu com ele mexeu comigo.

— E se caso não deixar, você vai fazer o que? Vai chorar, chamar o papai ou a diretora? Não! Já sei! Vai me dar um super golpe de karatê. — Fala com um sorriso, fazendo o gestual do tate zuki.

Era puro deboche, já que esse molóide sabia que pratico três tipos de artes marciais. Para o gorducho, uma menina como eu, jamais saberá lutar. 

— Experimenta continuar a mexer com ele, e você vai ver o que é "bom para tosse."

João Pedro iria revidar, mas a sineta tocou bem na hora. E aquela era a última chamada para formar a fila. Partiu seguido pela sua gang, apontando o indicador para o Anttone. 

Me agachei para ajudar a pegar o material que aqueles vermes jogaram no chão​. Com os olhos para baixo, meio constrangido, Anttone pede que eu me apresse.

— Não precisa Bruna, vai para o pátio se não você irá se atrasar. pode deixar que recolho tudo. Vou cantar o hino sozinho.

— Não tem problema me atrasar, para mim é até melhor, prefiro cantar o hino com você que é meu amigo, do que com aquele bando de metidos.

Essa era a rotina daquela escola, João Pedro um play boyzinho metido filho de político, fazia o que queria. Por onde passava deixava seu rastro podre. Pois sempre saia impune. Aquela escola de gente esnobe não se importava e o deixava fazer o que quiser. 

Não sei o que me dava mais raiva, as agressões ao Anttone ou a omissão da escola.

Meu amigo era um alvo fácil, o mais inteligente e mais desprotegido. Jamais vi seus pais na escola. E pelo que sei, nunca foram em nenhuma reunião. Anttone não se abria muito, contudo sentia que ele não era feliz. Não sei se seus pais morreram, afinal ele morava no Olho de Boi. Segundo meu pai, uma das favelas mais perigosas do Rio de Janeiro. Pode ter acontecido algo de bem ruim com a família dele.

Era o que eu achava.

Depois de tudo, chegamos atrasados para cantar o hino. Logo a coordenadora Abigail tratou de nós chamar atenção. Anttone nunca falava o que se passava. Aliás no começo meio amigo tentou, porém percebeu quem mandava no Imperador era o pai de João Pedro. Mas dessa vez, ou ele fala ou eu mesma falaria. 

[•••]

Fiquei toda a aula tentando convencer o Anttone contar do porquê chegou atrasado. Enchi tanto a paciência do Batutinha que o venci pelo cansaço. E assim fomos nós dois até a secretaria.

O ruim era ter que olhar para diretora Ana Célia, um entojo. Facilmente ela poderia ser mãe da Marisa, filha dos meus padrinhos. As duas tem cara de quem está sentindo cheiro de cocô de gato.

Batemos a porta da secretaria e entramos cheios de esperança. Não tinha ilusão que ela fosse fazer o correto. Porém tinha fé que ao menos com João Pedro, Ana Célia falaria. Contei tudo, tudo o que o "Joãozinho" andava fazendo.

— Meninos não levem tudo tão a sério, seus colegas só estavam brincando. — A diretora fala com total banalidade.

"Será que Ana Célia ouviu o que nós falamos?"

— Brincando!? — Pergunto balançando a cabeça em sinal negativo, não crendo no que ouvia — Porque são eles. Se fossemos nós seria anarquia, mas os riquinhos desta escola burguesa disfarçada de pública, é uma simples brincadeira? — Deixo transparecer minha indignação.

— Abaixa esse tom menina! Ou aplico uma advertência nos dois.

Anttone começou a tremer tanto, que pude ouvir seus dentes batendo.

— Melhor irmos, Bruna. A senhora diretora já disse que nossos colegas só estavam brincando.

Ouvir o Anttone recuar tão fácil, me chateou.

— Que bom que entenderam, agora podem sair da secretaria. Tenho mais o que fazer.

Se a parte mais interessada desistiu, não tinha o que fazer. Voltei pelos corredores rumo a sala de aula completamente muda.

— Tá chateada comigo? — Meu amigo pergunta de ombros  encolhidos.

"Não. Com você não, só com o imbecil frouxo que habita dentro de ti".

Eu pensei, mas não falei. Mesmo irritada jamais conseguiria machucar ainda mais aquele coração, que no fundo, sentia já ser bastante ferido. Com um sorriso um pouco forçado respondi.

— Tá tudo bem Anttone. Sei que não queria que eu tomasse advertência. Está tudo bem.

Com seu cabelo lambido e óculos grande, sorriu para mim.

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