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INTERNATO
{Segundo dia}
[Fernanda]
Vá, volte, ande, se mecha, suma da minha frente! Essas são as frases que mais ouço ultimamente. Me sinto esgotada tanto fisicamente como psicologicamente, eu não estava preparada para isso, na verdade acho que ninguém está, a faculdade não nos prepara para isso, não nos prepara para a vida real.
Os músculos de todo o meu corpo protestam em sinal de cansaço quando recebo mais uma ordem do Sargento.
-Vá para a emergência, faça algo de útil por lá. -ele diz e eu aceno em concordância.
Aperto o botão do elevador, espero alguns segundos e aperto novamente, ...nada do bendito chegar. O jeito é descer os cinco andares até chegar ao andar de atendimento da emergência ou ficar esperando o elevador e tomar a maior bronca da galáxia por estar demorando, então resolvo ir de escada.
Chego ofegante ao primeiro andar e tento pensar coerentemente por onde começar.
-Doutora, tem uma garota no leito cinco vomitando e queixando-se de dores abdominais. -uma enfermeira me entrega o prontuário para a paciente.
Vou até o leito cinco e puxo a cortina de privacidade e a fecho atrás de mim. Sobre a cama hospitalar está uma mulher alta, corpo esguio e curvilíneo, cabelos escuros até a cintura e olhos azuis como duas pedras de safira.
A mulher aparentava ser bem nova e muito bonita, mas o estado deplorável em que se encontrava no momento não favorecia muito sua aparência, nem mesmo as caríssimas roupas e os sapatos de salto que agora jaziam no chão, amenizavam a palidez e o suor que grudava alguns fios de cabelo em seu rosto.
-Um minu.... -ela disse com a boca dentro do balde em que vomitava.
Ela terminou me entregando o balde e se recostou nos travesseiros atrás de si. Coloquei o recipiente mal cheiroso no chão e a fitei.
-Moça, pode me dizer o seu nome? -perguntei.
-Uhum, ainda bem que eu não conheço você... -ela disse tentando me reconhecer no meio de suas memória nubladas pelo álcool. -Só não conta... p-pro meu... -ela tentava se lembrar do restante da frase.
Ótimo, a garota estava claramente pra lá de bêbada.
-Tudo bem. Mas eu quero saber o seu nome primeiro.
-Sofia. -ela resmungou rindo de algo com os olhos fechados. -Meu nome é Sofia. -ela repetiu.
-Certo Sofia, o que você está sentindo?
-Uma droga de dor no coração...
-Que tipo de dor? -perguntei enquanto anotava tudo.
-Uma assim... beeem grande. -sua voz estava enrolada. -Do tipo que te faz querer morrer. Aquele cachorro diz que me ama, mas no fundo só consegue me deixar triste... e chateada. -seus olhos marejaram.
Fiquei com um pouco de dó da garota, mas começava a ficar irritada com ela, porque caramba, eu estava trabalhando!
-Sofia, que tipo de dor física você está sentindo? No seu corpo, onde dói?
-Ah. Meu estômago, tá doendo horrores.
-Ok. Vou tirar seu sangue, fazer alguns exames e medica-la, está bem? -perguntei ao colocar as luvas e verificar seu abdômen.
Não parecia haver nada de errado, constatei, ela provavelmente só estava com a cara cheia além da conta.
Abaixei a camisa dela de volta para o lugar antes de retirar as luvas. Só que antes mesmo que eu pudesse me afastar do leito, a garota veio em minha direção, colocou a cabeça para o lado de fora da cama e... vomitou.
A filha de uma mãe sujou além da minha calça de uniforme, meus tênis também viraram parte do conjunto pegajoso e fedorento.
Fechei meus olhos, não cometi o erro de respirar fundo, o fedor a minha volta era o suficiente. Lentamente abri minhas pálpebras, tentando manter a calma.
-Eu sinto muito. -ela disse com os olhos arregalados.
-Não se preocupe, eu já volto em alguns instantes. -me virei para sair dali o mais rápido antes que eu a esganasse.
-Manda isso pro laboratório, por favor. -pedi para um enfermeiro que passava no momento.
Ele fez uma careta para minha roupa mas mesmo assim pegou o conteúdo para os exames laboratoriais.
Segui até o elevador com intenção de ir buscar roupas novas em minha mochila, mas para isso eu teria que ir até a sala destinadas para nós internos, que ficava no segundo andar, tudo isso tendo que encarar os olhares feios das pessoas em minha direção por causa do mau cheiro.
Quando o elevador abriu as portas no meu andar, praticamente voei para fora, andei apressadamente querendo me livrar daquela sujeira, mas ao dobrar o primeiro corredor dei de cara com a última pessoa que desejava ver na vida.
-Mas o que... que droga é essa, garota? -perguntou doutor Vicente.
-Um paciente vomitou em mim...
-Eu não quero saber, some logo da minha frente e troca essa roupa. -disse ríspido e saiu andado.
Grosso, estúpido!
Corri até a salinha e como não havia ninguém por lá, só fechei a porta e troquei meu uniforme por outro e descartei o mesmo em um saco plástico.
Já com roupas limpas e novas voltei para a emergência, atendi outros pacientes e fui até o laboratório pegar os resultados.
-Ah, você está aqui de novo. Foi mal pela roupa. -Sofia disse sonolenta.
-Tudo bem, já passou. Vou colocar você no soro, daqui a pouco deve se sentir melhor. -disse prendendo o elástico em seu braço e limpando o local com um algodão embebido em álcool.
-Duvido muito. -ela bufou.
Depois de achar sua veia enfiei a agulha na mesma.
-Prontinho. Agora é esperar entrar na corrente sanguínea e fazer efeito. -verifiquei o fio conectado ao balão do soro.
E tão rápido com foi da primeira vez, a filha da mãe vomitou mais uma vez em mim, só que dessa vez ela conseguiu sujar até a camisa do meu uniforme!
-Mas o que... -eu estava tão irritada que me limitei a virar as costas e sair dali antes que eu pudesse fazer algo do qual eu me arrependesse.
Saí pisando duro até o elevador, apertei o número do segundo andar e aguardei as portas se fecharem.
-É, parece que o dia não está sendo muito bom para alguém. -comentou alguém atrás de mim.
Virei-me e fitei um cara encostado no fundo do elevador, era o mesmo do dia anterior. Tornei a olhar para frente com o semblante fechado.
-Sou Rafael, conversamos ontem. -ele lembrou.
-Eu sei. -retruquei rude.
-Não, você nem mesmo se lembrou do meu nome. -ele debochou.
-Tanto faz. -disse quando as portas se abriram e saí em disparada.
Caminhei a largos passos para tirar aquele uniforme imundo antes que um ser indesejável me flagrasse mais uma vez nesse estado.
Entrei com tanta pressa na sala, que outrora estava vazia, que quase acertei alguém que estava atrás da porta. Mas porque merda tinha alguém atrás da porta? Uma enorme mão a segurou por um momento e logo em seguida se abriu revelando quem estava ali.
Grande Merda.
Seu olhar duro quase atravessava minha pele.
-Por que raios você ainda não tirou essa maldita roupa?
-E-eu... -gaguejei tentando encontrar palavras para explicar, mas estava nervosa de mais para formular uma frase decente.
-Você é surda ou idiota? -ele gritou.
-Eu...
-Some daqui, garota!
-Mas... -tentei protestar.
-Cara, deixa de ser troglodita. -ouvi uma segunda voz dizendo do lado de dentro.
-Não se meta, Itan. -Vicente ralhou.
-Ah, cala a boca. -o outro disse abrindo o restante da porta e eu pude ver o dono daquela voz. -E aí, lindinha? Vai entrar ou não? -ele perguntou brincalhão.
-É claro. -respondi sem graça.
Entrei no local sob o olhar reprovador do doutor Vicente, e uma avaliada da cabeça aos pés pelo outro cara.
Ele era um homem particularmente charmoso e muito bonito. Tinha expressivos olhos azuis que seguiam todos os meus atos e movimentos.
-A coisa não parece muito boa para o seu lado. -o cara comentou casualmente.
Sentir meu rosto esquentar instantaneamente.
Segui até meu armário, encontrei minha mochila e procurei, pedindo internamente para que houvesse um par extra de uniforme.
Eu sabia que os dois ainda estavam ali, praticamente podia sentir seus olhos queimando em minhas costas.
-Itan, é melhor você ir resolver esse assunto. -ouvi doutor Vicente dizer para o outro. -E você, doutora Fernanda, o que ainda está fazendo aqui? Por que não se move e tira esse.... essa coisa fedorenta, hein? -ele disse rude.
Minhas mãos até tremeram de raiva, ele não tinha o direito de brigar e me humilhar publicamente! Por que ele sempre tinha que ser esse ser idiota que gostar de maltratar os internos na frente dos outros? É como se quisesse provar para todos que ele era superior.
Bem, ele realmente era meu superior, mas isso de uma forma hierárquica, e não de uma forma tão literal. Eu era uma pessoa igualzinha a ele, será que ele não conseguia enxergar isso? Será que ele não podia demonstrar um pouco de compreensão?
Não, não. Ele era muito babaca para ter empatia por qualquer pessoa.
-Olha só... -me virei furiosa para ele.
Eu estava cansada de ser seu saco de pancada.
-Eu estava fazendo justamente o que senhor mandou.
-É mesmo? Então por que eu ainda estou te vendo nesses trapos? -disse escorrendo escarnio em cada palavra. -A quanto tempo eu já havia ordenado para que se trocasse, e a doutora ainda continua com os mesmos "trajes"?
Com um estalo liberei a ira que transbordava dentro de mim.
-A.DOUTORA... -eu disse pausadamente enquanto retirava meus tênis e os lançava em um canto qualquer.
-...NÃO.CONTINUA... -retirei minha calça e a joguei contra parede.
Vi os olhos dos dois marmanjos se arregalarem.
-... COM.O.MESMO.TRAPO. -finalizei tirando a camisa de uniforme deixando-a cair aos meus pés.
Voltei até meu armário, apenas de lingerie, para pegar novas roupas para me vestir. Depois de alguns segundo ouvi um assovio, que certamente, não vinha do doutor Vicente e sim do outro cara bonitão.
-É, pelo visto acho que escolhi a profissão errada. Queria eu ser médico agora, e trabalhar nesse hospital.
Rolei os olhos por tamanha infantilidade.
-Itan, cai fora daqui. Falo com você mais tarde.
-Não mesmo, cara. Vou apreciar o show até que a estrela diga que acabou. -ele riu.
-Eu vou contar mentalmente até três, no dois eu vou arrebentar a sua cara até que você perca a consciência. -Vicente disse tão duro que até eu estremeci coma a ameaça.
-Tá, tá, eu já tô indo.
-Vê se pega sua irmã e vai direto para casa dessa vez.
-Nossa irmã você quer dizer.
-Some. -Vicente rosnou.
Ouvi o som da porta se abrir e novamente fechar atrás de mim. Pesquei uma camisa amassada no fundo da mochila e uma calça que ficava um pouco larga de mais em mim, mas era o que eu tinha no momento.
Passei a camisa pela cabeça e ajeitei desleixadamente meu cabelo que se desprendeu no processo. O doutor-de-merda não tirava os olhos de cima de mim.
-Que foi? -perguntei ao notar sua expressão dura.
Ele pigarreou e finalmente voltou a falar, quer dizer, brigar.
-O que você acha que está fazendo doutora? Não pode ser insubordinada ao seu superior! Posso fazer da sua vida um inferno, se isso for necessário. Existem regras nesse hospital e elas devem ser cumpridas. Então quando seu superior te da uma ordem, você não questiona, não grita, e muito menos desobedece. Você se acha melhor do que algum de seus colegas internos? E por isso acha que pode fazer e dizer o que bem entende? Pois eu te digo que não!
-Olha aqui, senhor. -fui até onde ele estava, parei a pouquíssimos centímetros de distância de seu rosto, e cutuquei seu peito com a mão que ainda segurava a calça. -Com todo respeito, mas eu não fui insubordinada. Por diversas vezes tentei explicar a situação mas o senhor não me ouviu. Eu não estava com o uniforme sujo de hoje mais cedo, eu já havia me trocado, mas uma há uma bêbada lá na emergência que fez o favor de vomitar em mim DE NOVO. E eu corri para tirar isso a tempo, mas o senhor estava aqui e... e... -comecei a gaguejar de nervosismo. -... o senhor c-começou a brigar e-e g-gritar...
Eu já estava mais afastada dele nesse momento sentindo o peso e o cansaço de um dia inteiro sem dormir e nem descansar por um só minuto.
Com a visão meio embaçada vi doutor Vicente olhar ligeiramente assustado para mim e piscar algumas vezes seus grandes olhos azul safira.
-Er... desculpa, Fernanda. -era a primeira vez que ele me chamava pelo primeiro nome sem o sarcástico doutora antecedendo. -Fui um pouco duro com você hoje.
-Um pouco? -eu disse meio que rindo meio que chorando.
-Tá, talvez eu tenha sido bastante duro com você hoje. Mas não foi por mal, juro que não. Eu trato a todos assim, não pense que é uma coisa pessoal com você, mas isso também faz parte da sua formação. É assim que se formam grandes profissionais. -ele agora segurava em meus ombros e olhava diretamente em meus olhos.
Sequei o vestígio de lágrimas que ainda restava em meu rosto com o dorso da mão.
-Você... está melhor agora? -perguntou parecendo verdadeiramente preocupado.
-Acho que sim. -balancei a cabeça.
Ele deu um sorriso meio tenso. Suas palavras não consertavam o estrago, mas pelo menos amenizavam o efeito.
-O senhor não vai me marcar pelo resto da vida, não é? Tipo me perseguir e me espezinhar por causa do que aconteceu na frente daquele outro médico. Eu não quis de maneira nenhuma desrespeita-lo, só que... é...
-Relaxa, garota. Vou fingir que o episódio de hoje nunca aconteceu. -disse condescendente.
-Mas o que o outro médico vai pensar?
-Isso não importa, ele nem médico é, esqueceu que ele mesmo havia dito?
-Ah, sim...
-Se não se importa, tenho mais coisas a fazer. -ele cortou o clima ameno.
-Eu também. -sorri sem graça. -Doutor... -chamei quando ele estava se dirigindo a porta.
Ele parou e voltou o olhar para mim.
-Obrigada por me ouvir e compreender. -eu disse baixinho ao me aproximar dele.
-Tudo bem, doutora. Volte ao trabalho ao sair daqui. E ah, só mais uma coisa, faça isso com uma calça de preferência. Não queremos que um show particular se torne um show público, apenas poucas pessoas tem direito a um passe vip. -ele piscou sedutoramente e saiu pela porta.
E eu? Eu fiquei pasma com tamanha ousadia e insinuação, porque essa era a primeira vez que ele dizia algo do gênero, já que ele era considerado o sargento-mandão-perfeitinho.