Capítulo 3. Amigos e Flores
— Aqui, Mina. – Edu entrou e me estendeu um copo grande de vitamina, com um canudo.
Nem faço questão de saber o que ele coloca nessas vitaminas que me dá para beber, minha experiência diz que é melhor não saber.
Edu é bonito e gentil, loiro, magro, olhos castanhos e boca carnuda, daria um bom namorado, se não fosse gay.
Bebo pelo canudo, aos poucos, pra não forçar o maxilar. Olho para ele agradecida. Ele assente com a cabeça, compreendendo o que quero transmitir. Me conhece tão bem, foram muitas as vezes que tratou de minhas feridas.
Conheci Edu assistindo as aulas de capoeira. Ele costumava assistir também, era uma fuga dele de sua realidade com seu padrasto alcoólatra. Passava mais tempo fora de casa que dentro. Sua mãe não ligava e o importante pra ele era sobreviver a essa etapa da adolescência. Já estava com quinze anos e eu com nove, faltava pouco pra ele se tornar independente da mãe sem ser levado pro instituto de correção para menores. Por isso se refugiava nesses grupos de auxílio a crianças de rua.
Nos tornamos amigos, na verdade, ele se tornou meu protetor. Quando percebeu que eu me disfarçava, me ensinou a conseguir dinheiro nas ruas, vendendo bala no sinal, no trem ou no ônibus, também a fazer pequenos serviços, como lavar carro, carregar sacolas de compras e até ir a padaria comprar pão em troca de café.
Com o tempo aprendi outros meios de sobreviver e comecei a juntar dinheiro. Não podia ir à escola, mas assisti às aulas com as outras crianças de rua, com um professor que ensinava embaixo do viaduto.
Descobri dias de leitura na livraria do shopping e através das dicas dos leitores, ia à Biblioteca ambulante e pedia ao seu Antônio se podia arranjar. Com o tempo fui lendo livros mais especializados e a facilidade que tenho pra leitura me ajudou a conhecer diversos assuntos e aprender sobre várias profissões. Até direito eu estudei e aprendi a conseguir uma identidade falsa.
Com a ajuda de Rui, consegui uma certidão de nascimento de um bebê que faleceu semanas após o nascimento, na mesma época em que provavelmente eu também havia nascido. Quando ele me deu a certidão e quis ir comigo providenciar a identidade, não deixei, dei uma desculpa, não queria ele metido em mais uma ilegalidade.
Fiz a identidade, o CPF, abri conta no banco e depois de decorar todos os números e senhas, escondi todos os documentos em um lugar seguro, só usava quando ia ao banco. Rui não sabe, é melhor assim. Edu sabe que dei um jeito, mas não sabe o nome da certidão, então continuo aquela que não existe. Só não posso ser pega pela polícia, pois agora tenho as digitais registradas com o RG.
Edu me fez deitar, me deu um comprimido pra dor e mandou eu dormir, no que obedeci com prazer, estou moída. Vou ficar de molho até sarar.
**
Enquanto isso, no outro lado da cidade, um certo CO, de pé na sacada de seu apartamento, olhava a cidade, pensando no mapa que tinha traçado com os pontos onde o tal Soco da noite tinha aparecido lutando. Havia um ponto central para onde todos os pontos convergiam e provavelmente era ali que se escondia.
– Hoje você não me escapa Soco da noite, ou não me chamo Gatuno.
Rafael
Passei duas noites à espreita e nada. Talvez tenham avisado ele ou resolveu dar um tempo por causa das batidas policiais. Só sei que uma hora terá de aparecer.
Hoje fazem dezesseis anos do rapto da irmãzinha de Carlos, todos os anos envio flores para a mãe dele, com um cartão dizendo:
Não perca a esperança!
A menina nunca apareceu, nem os sequestradores pediram resgate. Houve outros raptos semelhantes na mesma época, nenhuma criança apareceu, depois pararam. Não tivemos nenhuma pista dos sequestradores, foi terrível para meu amigo e sua família.
Eu, particularmente, sinto uma coisa no peito, que não sei explicar. É como se alguém tivesse me roubado algo que eu tinha, mas não percebia que era tão precioso, até perder. Meu coração clama constantemente pela presença daqueles olhinhos cheios de amor, me chamando de namorado.
Naquela época, fazíamos pinturas/pichações pela cidade. Depois do ocorrido, passei a ir sozinho e vigiar mais as ruas, quem sabe descobrir alguma coisa. Não consegui descobrir nada sobre os raptos, mas descobri muitas outras coisas.
Apesar de muito triste e desanimado, não desisti de procurar.
No momento, continuo minha vigilância e vejo um movimento mais para o lado da periferia. Parece a fábrica de sabão abandonada, vou seguir por sobre os telhados e dar uma olhada.
Me tornei um profissional de parkour e tem facilitado bastante minha locomoção silenciosa.
Cheguei!
Têm muitos veículos aqui, parece um galinheiro, pelo barulho. Vou olhar por essa janela quebrada. Olha só! É rinha de galo, só podia ser, o cheiro é horrível. Vou ligar para o delegado, ele saberá o que fazer. Pego o celular preso em meu braço e já tenho o número salvo em discagem direta, faço a denúncia com meu codinome e
pronto, feito, agora preciso sair daqui.
Volto ao lugar de sempre e lá está o gayzinho indo para casa depois de fechar a lanchonete. Todo dia faz a mesma coisa. Mas espera aí, ele tá seguindo a rua ao invés de entrar a direita, em direção a sua casa.
Vamos ver para onde ele vai.
Pulo para o próximo telhado e vou me arrastando até ter que pular novamente. Ele entrou no beco, o que será que foi fazer ali? Não tem nada naquele lugar, é o fundo de dois prédios que têm janelas basculantes que nunca abrem. Vou esperar, uma hora ele sai dali.
Depois de dez minutos.
Tem alguém saindo e não é o gayzinho, será que era só uns amassos? Vou seguir esse encapuzado. Parece um homem forte, tem um andar firme, dobra na esquina e segue até uma calçada onde tem um carro estacionado ao lado dos prédios da companhia de energia elétrica, pego o celular e tiro umas fotos, dito e feito, ele entra no carro e sai. Tomara que apareça a placa do carro nas fotos.
Isso parece importante, porque o Edu (nome do gayzinho) tem um cara fixo e não costuma ficar de pegação por aí. Aquele não era o Soco da noite, porque não estava se escondendo e era muito grande. Vou averiguar amanhã, agora tá na minha hora. Tô cansado, preciso dormir.
Rui
Não gostei de ir falar com o Edu, mas estava muito preocupado com a Mina, acabei dando mancada, soube que o Gatuno estava por lá, pois acho que foi ele que dedurou a rinha de galo do meu padrasto, bem feito pra ele, cansei de avisar que um dia iam estourar aquela m**da.
Agora já foi, seja o que Deus quiser. Pelo menos fiquei sabendo que Mina tá se recuperando de um golpe e que estará saindo amanhã. Pedi pro Edu avisar-lá da vigilância do Gatuno. Aproveitei pra deixar com ele também, as flores que sempre dou a ela nesta data, o aniversário da aparição dela debaixo do viaduto. Quinze anos já se passaram…
Lembro como se fosse hoje, aquela criança enrolada num cobertor, dormindo sobre um forro de papelão.