03
A esposa de Percy ficou alarmada ao ver o vestido de Aurora manchado de sangue, mas menos horrorizada pela razão do que seria esperado.
− Não sei se teria tido coragem para intervir − disse Jane pensativa quando se inteirou do sucedido.
As duas mulheres estavam sozinhas no quarto de Aurora. Depois de Percy a ter deixado em sua casa, na plantação, e partido para cumprir a sua promessa relativa ao tratamento médico do prisioneiro, a aia de Aurora tinha-a ajudado a mudar de vestido e levara-o logo para que fosse lavado. Lady Osborne permaneceu para escutar uma versão mais detalhada e privada dos acontecimentos dessa manhã.
− Não me parece que seja uma ação particularmente corajosa evitar que um homem seja sovado até à morte − respondeu Aurora ainda indignada pelo incidente matinal. − E a minha intervenção parece ter influído pouco no seu destino.
− O senhor Sabine tem família importante em Inglaterra − disse Jane para a tranquilizar. − O conde de Wycliff é seu primo em segundo grau. Além de possuir uma grande riqueza, Wycliff sempre deteve muito poder nos círculos do governo. Pode muito bem interceder a favor do primo.
− Talvez o enforquem muito antes de chegarem a Inglaterra notícias do seu encarceramento − respondeu Aurora sombriamente.
− Aurora, não começaste a desenvolver nenhum tipo de sentimento em relação a Sabine, pois não?
Sentiu-se enrubescer.
− Como podia fazê-lo? Só o conheci esta manhã e, ainda assim, por um breve momento. Nem sequer fomos formalmente apresentados.
− Ótimo. Porque, francamente, apesar das suas relações, não é em absoluto a classe adequada de cavalheiro. Para dizer a verdade, suspeito que seja um tanto perigoso.
− Perigoso?
− Para nós as mulheres, é o que quero dizer. É um aventureiro e uma espécie de libertino… e, além disso, é americano.
− Percy disse que ele era um herói.
− Suponho que sim. Há alguns anos, salvou a vida a uns duzentos colonos durante uma revolta de escravos em Santa Luzia. Mas isso apenas o torna mais aceitável. As más-línguas dizem que é a ovelha negra da família, que passou anos a viajar por países estrangeiros, embrenhando-se em todo o tipo de aventuras desregradas. Só depois da morte do pai é que se tornou um pouco mais respeitável… E isso unicamente porque herdou uma fortuna e se encarregou dos negócios da família.
− Não o acusaste de ser muito pior do que a metade dos jovens libertinos de Inglaterra.
− É indiscutivelmente pior, garanto-te. Caso contrário, nunca lhe teria sido concedido ser membro da célebre Liga Fogo do Inferno, apesar de ter sido recomendado pelo seu primo Lorde Wycliff.
Aurora sabia que a Liga Fogo do Inferno era um clube exclusivo dos principais libertinos de Inglaterra, dedicado ao prazer e à depravação. Se Sabine era membro daquela associação licenciosa, devia realmente ser perverso.
− E não podes menosprezar o facto de ser um pirata condenado com sangue nas mãos − acrescentou Jane intencionadamente.
Aurora olhou para as suas próprias mãos. Jane era uma das suas amigas mais queridas, e era ao mesmo tempo atenta e astuta o suficiente para avaliar uma situação com objetividade, atributos que a convertiam na esposa ideal de um político. Percy tinha motivos de sobra para a adorar, e esse sentimento era totalmente recíproco.
− Aurora − disse Jane −, será possível que te tenhas absorvido com os problemas desse homem para escapares às tuas próprias preocupações? Talvez procures esquecer a tua própria situação melindrosa envolvendo-te no destino de um desconhecido.
Aurora entrelaçou tensamente os dedos. Sim, era muito possível que a sua simpatia por Sabine fosse maior devido às suas próprias circunstâncias difíceis. Podia identificar-se com ele; sabia o que era ver-se impotente para controlar o próprio futuro, ver que a sua vida deixava de ser sua. Ele estava à mercê dos seus captores, e ela estava sujeita às ordens paternas… e em breve ver-se-ia encurralada num matrimónio extremamente desagradável.
Jane deve ter lido a verdade na sua expressão, porque lhe disse suavemente:
− Tens preocupações mais importantes do que as vicissitudes de um pirata. Farias muito melhor se esquecesses por completo esse incidente. − Ergueu-se com um suave ruge-ruge das suas saias de seda. − Desce para o almoço quando estiveres pronta. Suponho que te sentirás melhor quando tiveres comido.
Todavia, Aurora não se sentiu melhor nem tinha apetite. Limitouse a brincar com a comida enquanto aguardava ansiosa por notícias do primo.
Quando por fim chegou uma mensagem dos seus escritórios em Basseterre, o bilhete de Percy dizia mais ou menos que ficasse tranquila, que já tinha falado com o comandante da guarnição, e que este lhe tinha prometido que o médico da fortaleza examinaria os ferimentos do prisioneiro.
Aurora mostrou o bilhete a Jane e fingiu descartar qualquer outro pensamento sobre o assunto. Pouco tempo depois, desculpou-se com o pretexto de que necessitava de pensar na bagagem para o regresso a Inglaterra, mas não fez absolutamente nenhum progresso em relação ao assunto. Em vez disso, deu por si de olhos fixos no solo, a recordar uns olhos escuros que a fitavam intensamente e o estremecimento que lhe tinham feito sentir…
«Por amor de Deus, para de pensar nele!», repreendeu-se a si mesma.
Logicamente estava de acordo com Jane. Era muito mais prudente afastar o famoso pirata dos seus pensamentos. Estava de partida de St. Kitts daí a poucos dias, e tinha os seus próprios problemas graves para enfrentar, nomeadamente o seu matrimónio com um nobre dominante, uns vinte anos mais velho do que ela. Um homem a quem não só não amava, como lhe desagradava profundamente devido ao seu comportamento imperioso e despótico, e ao seu modo estrito e quase puritano de seguir as convenções. O noivado seria anunciado publicamente logo que regressasse a Inglaterra.
Por um momento, Aurora sentiu a mesma agitação de pânico que lhe provocava pensar no seu matrimónio. Logo que estivessem casados, ela seria uma prisioneira virtual do decoro, e poder-se-ia considerar afortunada se lhe fosse permitido sequer um pensamento original seu. Mas, como vinha a fazê-lo desde há alguns meses, obrigou-se a afastar a sua inquietude.
Abandonando a ideia de planear a sua viagem, pegou num livro de poesia mas, quando tentou ler, foi incapaz de se concentrar na página. Ao invés disso, viu as feições manchadas de sangue de Nicholas Sabine enquanto jazia aos seus pés, seminu e acorrentado. Quando tentou afastá-lo da sua mente, fracassou terrivelmente.