01
Aurora tinha já um pé no degrau da carruagem quando um tumulto no cais a fez deter-se. O prisioneiro tinha atingido o fim da prancha de desembarque, e estava a ser obrigado a subir para um vagão, uma tarefa que era, obviamente, difícil devido às correntes.
Ao verem que se movia com demasiada lentidão, os guardas aplicaram-lhe um empurrão brutal que o fez tropeçar e quase cair de joelhos. Para o impedir, o homem segurou-se à porta traseira do vagão, endireitando-se e fitando o guarda com um olhar desdenhoso.
A sua fria insolência pareceu enfurecer os seus carrascos porque recebeu um golpe nas costelas com a culatra de um mosquete que o fez dobrar-se de dor.
O grito de protesto que Aurora estava prestes a soltar perante o cruel ataque morreu-lhe na garganta quando o prisioneiro agitou as suas correntes na direção do guarda. Era um gesto inútil de desafio, pois ele estava amarrado de uma forma demasiado firme para conseguir causar algum dano real, mas, aparentemente, a sua rebelião era a desculpa que os guardas pretendiam.
Ambos os marinheiros o atacaram com a culatra dos seus mosquetes fazendo-o cair sobre as pedras da calçada com gritos de «cão desprezível» e «escória bastarda!».
Aurora retrocedeu horrorizada ao ver alguém a ser tratado com tanta crueldade e sem misericórdia.
− Por amor de Deus…! − murmurou com uma voz rouca. − Percy, fá-los parar!
− É assunto da Marinha − respondeu o primo num tom sombrio, falando como tenente-governador de St. Kitts. − Não tenho justificação para intervir.
− Meu Deus, vão matá-lo à pancada!
E, sem aguardar resposta, recolheu a saia e correu em direção ao tumulto.
− Aurora!
Escutou Percy a praguejar entre dentes, mas não abrandou nem se deteve para refletir no perigo ou na loucura de intervir na violenta disputa.
No dispunha de nenhuma arma e não tinha um plano definido para além de tentar um resgate, mas quando chegou junto dos guardas lançou a sua bolsa contra o atacante mais próximo e conseguiu acertar-lhe num lado da cara.
− Que diabo…?
Quando o surpreendido marinheiro se deteve perante o ataque inesperado, Aurora largou a bolsa e abriu caminho entre o prisioneiro caído e os seus assaltantes. Dissimulando o seu próprio temor, ajoelhou-se cobrindo parcialmente o homem quase inconsciente com o seu próprio corpo para o proteger de ser novamente atingido.
O guarda praguejou de um modo vulgar.
Com uma fúria gélida, Aurora ergueu o queixo e olhou-o fixamente, desafiando-o silenciosamente a atingi-la.
− Minha senhora, este não é assunto para si − declarou irritado. − Este homem é um pirata violento.
− E o senhor deve dirigir-se a mim como milady − respondeu ela num tom de voz que, normalmente era sereno, mas que agora era quase feroz, enquanto sublinhava a importância da sua posição social. − O meu pai é o duque de Eversley e conta entre os seus amigos mais chegados com o príncipe regente e o lorde primeiroalmirante.
Aurora reparou que o marinheiro avaliava o seu aspeto e as suas roupas; a sua elegante touca de seda e o traje de passeio eram no tom de cinzento de meio luto, apenas com o toque de lilás na guarnição das lapelas da casaca para aliviar a severidade.
− E este cavalheiro − acrescentou enquanto Percy chegava apressadamente ao seu lado −, é o meu primo, sir Percy Osborne, que por acaso é o tenente-governador de Nevis e St. Kitts. Eu pensaria duas vezes antes de o desafiar.
Percy cerrou o maxilar com força perante esta declaração e murmurou em desaprovação:
− Aurora, isto é muito impróprio. Estás a provocar um espetáculo.
− Seria mais impróprio ficar sem fazer nada enquanto estes cobardes assassinam um homem desarmado.
Ignorando o olhar furioso do guarda, observou o prisioneiro ferido. Tinha os olhos fechados, mas parecia estar consciente, porque apertava o maxilar devido à dor. Ainda parecia meio selvagem. A pele reluzia com o brilho do suor e do sangue e tinha o queixo coberto por uma barba incipiente e escura.
A cabeça parecia ter sofrido os danos maiores. Não só sangrava profusamente da têmpora, como os seus cabelos dourados pelo sol, de um dourado muito mais escuro que o dela, estavam emaranhados e negros de sangue seco, evidentemente de uma ferida anterior.
Aurora sentiu-se tensa quando o seu olhar desceu pelo corpo dele, contudo, ainda assim, sentiu acelerarem-se as batidas do seu coração. A manifesta masculinidade que a havia desconcertado à distância era ainda mais evidente de perto, a dureza do corpo do homem, inconfundível. O peito e os ombros bronzeados estavam cobertos de músculos, enquanto os calções de lona cingiam as suas coxas musculadas.
Foi então que ele abriu os olhos e os fixou nela. O seu olhar era escuro da cor do café, salpicado de âmbar. Aquele olhar fixo produziu a mesma sensação surpreendente que Aurora havia experimentado antes: a de estar totalmente sozinha com ele, juntamente com uma intensa consciência da sua feminilidade.
Quase tão estranhos eram os delicados sentimentos de proteção que as suas feridas lhe despertavam. Aurora enxugou-lhe suavemente o sangue que tinha na fronte.
Com as correntes a tilintar, ele segurou-a pelo pulso.
− Não o faça − murmurou com voz rouca. − Fique fora disto… sairá prejudicada.
A pele ardia-lhe onde os dedos dele lhe haviam tocado, mas procurou ignorar aquela sensação, da mesma forma que tencionava não fazer caso do pedido dele. Naquele momento, estava menos preocupada em proteger-se a si mesma do que em salvar-lhe a vida.
− Não espera que eu fique a assistir enquanto o assassinam, pois não?
O sorriso de sofrimento que ele esboçou foi fugaz, enquanto lhe soltava o pulso e se esforçava por se apoiar nos cotovelos. Uma tontura momentânea fê-lo fechar os olhos.
− Necessita de um médico − proferiu Aurora alarmada.
− Não… Tenho a cabeça dura.
− Pelos vistos, não o suficiente.
Tinha-se esquecido de que não estavam sozinhos até que o primo se inclinou sobre o seu ombro e proferiu uma exclamação consternada.
− Santo Deus…! Sabine!
− Conhece-lo? − perguntou Aurora.
− De facto, conheço. Possui metade dos barcos mercantes do Caribe. É americano… Que diabo estás aqui a fazer, Nick?
O homem fez uma careta de dor.
− Receio ter tido um encontro desafortunado com a Marinha Britânica.
Quando o primo se voltou para os guardas e lhes pediu uma explicação, Aurora apercebeu-se de que a sua maneira de falar era muito mais suave e delicada, quase de adulação, em contraste com os seus próprios sons entrecortados.