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Capítulo 5

Ela percebeu o chão com terra, deixado por vestígios de calçados sujos. Com muita raiva passou as mãos com força sobre aquele pó e depois esfregou nos braços, até que ficassem marrons, da cor de sua amada Lia. Por que ela não nascera como Lia? Por que não nascera filha de Lia?

Não conseguia parar de chorar, tamanha tristeza que tomava conta de si.

Sarah ouviu um barulho e assustou-se:

- Quem está aí? – Perguntou, limpando as lágrimas rapidamente.

- Não tenha medo.

Ela olhou para o garoto negro que surgia no meio das malas. A claridade da janela sob o sol iluminava-o completamente, quase como se fosse uma aparição.

- Quem é você? – Perguntou amedrontada.

- Meu nome é Tristan.

- O que está fazendo aqui?

- Não falo com pessoas que não sei o nome. – Ele sorriu gentilmente.

- Meu nome é... Sarah. – Disse a menina apreensiva.

- Por que está aqui, Sarah? Por qual motivo chora? – Ele perguntou sem sair do lugar, olhando para ela.

Ela tornou a limpar as lágrimas. Um estranho estava vendo-a chorar.

- Desculpe-me. – Pediu.

- Por que me pede desculpas?

- Por estar chorando na sua frente.

- Eu não me importo. – O garoto deu de ombros, com sinceridade.

- Mas eu não posso chorar na sua frente. Uma mulher não pode chorar na frente dos outros. – Falou ela, quase que para si mesma.

- Mas você não é uma mulher. É só uma menina.

- Sou... Sou quase uma mulher. – A garota ficou um pouco irritada por ele mencionar que ela era só uma menina.

- Por que chora, Sarah? Por que está se sujando deste jeito?

- O que você está fazendo aqui?

- Eu perguntei primeiro.

Ele era tão firme em suas perguntas que Sarah não via outra alternativa senão responder.

- Eu... Estou triste. – Confessou, sem entender direito porque conversava com aquele garoto que nem conhecia.

- Por que uma garota tão bonita e rica como você poderia estar triste?

- Eu não queria partir. Não queria ir para Deolinda.

- O que irá fazer em Deolinda?

- Vou para um internato para moças.

- Por quê?

- Meus pais querem que eu vá.

- Eles estão com você no trem?

- Não.

- Então não vá para lá. – Ele disse, encontrando a solução de imediato.

- Como se fosse possível não obedecê-los. – Ela falou.

- Sarah, você está sozinha neste trem, sem conhecer ninguém? Não há alguém acompanhando-a até Deolinda?

- Sim... Estou sozinha. E você?

- Sim... Também. – O garoto desviou o olhar dela, virando para o lado.

- Seus pais também lhe mandaram para um internato? – Ela perguntou curiosa.

- Claro que não. Eu nem tenho pais.

- Você não tem pais? – perguntou – Mas isso é possível?

Ele riu:

- Sim, é possível.

- Nunca pensei que pudesse haver pessoas sem pais. – Disse ela impressionada.

- Está viajando na primeira classe?

- Primeira classe? – Ela questionou, sem entender a pergunta.

- Um lugar cheio de janelas, comida boa, gente bem vestida. – Tristan explicou de forma divertida, um meio sorriso nos lábios.

- Sim... Tem tudo isso lá. – Sarah confirmou.

- Então é a primeira classe. O lugar onde os ricos viajam. Dá pra ver olhando para você que é rica.

- Você também está viajando lá, Tristan?

- Não... Estou viajando aqui mesmo.

- Com as malas? – Ela sorriu, confusa.

- Sim, com as malas. – Ele também não conteve o riso.

Ele ouviram o som de um das portas se abrindo.

- Não diga à ninguém que estou aqui, Sarah. Por favor. – Ele pediu, sussurrando enquanto se escondia entre as malas.

- Não vou dizer. – Falou ela pra sim mesma, pois nem o via mais naquele momento.

Um homem abriu a porta. Vestia o uniforme dos empregados do trem.

- Quem é você? – Perguntou confuso ao ver o estado da menina.

- Sou Sarah... Sarah Mackerson. – Ela disse.

- Mackerson? O que faz aqui, menina? Seu lugar é na primeira classe. Deve ser a filha de João Mackerson. Seu pai praticamente é um dos donos deste trem.

- Não falo com pessoas que não sei o nome. – A menina imitou a frase de Tristan.

- Pois bem, engraçadinha, meu nome é Manoel e eu sou o Supervisor deste trem. E você vai vir comigo agora.

Manoel levou Sarah Mackerson pelo braço até uma mulher que também trabalhava no trem. Esta tratou de limpar a menina, trocar sua roupa e levá-la novamente ao seu lugar.

Sarah detestou voltar ao seu lugar devido lugar, com aquelas mulheres que debocharam dela.

Depois de um tempo, distraiu-se olhando a paisagem pela janela, que ia mudando a cada minuto.

Mas logo a noite chegou e ela já não conseguia observar mais nada pelo lado de fora do vidro, a não ser a escuridão. Com os olhos perdidos no nada e pensando no garoto do trem, Sarah acabou adormecendo.

Sonhou que era ela num corpo de uma mulher. Usava um longo vestido de seda vermelho e nos lábios um batom da mesma cor. Estava partindo da fazenda Mackerson... Com Lia... E Tristan. João não queria que ela se fosse e insistia em correr atrás, tentando impedi-la. Mas ela fugia. Corria muito. E o vestido não pegava no chão, embora fosse longo. Ela segurava o tecido fluído nas mãos. Tristan e Lia conseguiram partir. Mas ela não. João a pegava com força pelo braço e gritava com ela. Lia e Tristan precisavam esperar por ela. Mas eles não podiam ouvi-la... Já estavam muito longe. João a mataria.

Ela deu um grito, acordando do pesadelo e chamando a atenção algumas pessoas que estavam próximas à ela no trem. Percebeu que havia bem pouca conversa no vagão... As luzes estavam baixas. Poucos pasageiros ainda bebericavam chás ou cafés. Outros já não estavam mais ali, certamente nas cabines de sono.

- Menina, o que é isso? Cale-se, por favor, não está em sua casa. Isso é um trem e há várias pessoas aqui. – Condenou a mulher que sentava ao seu lado, de forma nada sensível.

- Teve um pesadelo? – Perguntou a passageira da frente, com voz um pouco mais delicada.

- Sim. – Respondeu a menina.

- Por que não vai à sua cabine de sono e tenta dormir novamente? – Sugeriu.

Sarah ficou calada e fingiu não ouvir. Não queria ficar sozinha em uma cabine de sono. Fechou os olhos e tentou dormir novamente. Estava cansada. O trem apitava com frequência, fazendo com que ela desse sobressaltos, assustada.

Temeu dormir e ter o mesmo pesadelo. Começou a pensar em Sandy, a menina da história que ela tanto amava escutar. Se Lia estivesse ali, ela não teria medo.

Estava fresco o ar ali e Sarah pegou uma pequena manta disponível. Lembrou de Tristan... Ele devia estar com frio. A vidraça da janela estava embaçada. Ela passou as pequenas mãos, tentando limpar. Não via nada fora do trem, somente a escuridão. Nem sequer uma claridade ao longe. Como a luz estava bem fraca, para respeitar o descanso das pessoas, Sarah pegou uma espécie de lampião sem fogo que estava sobre uma das mesas. Saiu de vagão em vagão, devagar, procurando não fazer barulho para não chamar muito a atenção.

Observou algumas famílias inteiras viajando juntos, pais e filhos. Desejou que Marla, João, Júlia e Lia estivessem ali com ela. Imaginou o quanto Lia iria gostar de tudo naquele trem. Mas certamente não seria bem recebida naquele espaço, por causa da sua cor. Embora os negros fossem livres, se viam bem poucos deles junto dos brancos, a não ser como empregados.

- Ei garota, está perdida de seus pais? – Perguntou uma mulher com a qual ela trombou no corredor.

- Não... Não estou perdida – disse – Só vou ao toalete.

A mulher sorriu e fez um gesto afirmativo com a cabeça. Sarah também sorriu e seguiu em frente. Se deu conta de que o trem era todo azul, tanto por fora quanto por dentro. As paredes, a decoração, os assentos, tudo na mesma cor, mas em diferentes tons. Os empregados que trabalhavam no trem usavam uniformes pretos com detalhes azuis.

Sarah abriu a porta do último vagão, que estava na escuridão. A luz que ela trazia na mão pouco iluminava.

- Tristan? – Chamou.

- Sarah? – Ela ouviu a voz dele, não identificando muito bem de onde vinha.

- Sim... Sou eu. – Sussurrou para não ser escutada por ninguém além dele.

Tristan saiu de um canto escuro. Ela só o reconheceu quando ele chegou bem perto.

- O que faz aqui, Sarah? – Perguntou surpreso.

- Vim ver como você estava.

- Não consigo dormir... Está muito frio. – Ele confessou.

- Eu... Trouxe uma coberta. – Ela entregou a manta que o aqueceria, nas mãos dele.

- Não posso aceitar. Como você vai se cobrir?

- Eu... Não sei. – Falou, confusa.

Aquele menino sempre a deixava assim... Sem respostas.

- Bem, acho que se você pedir lhe darão outra. Afinal, você está na primeira classe e pagou muito por esta viagem.

Ele sentou-se no chão e cobriu-se com a manta que ela havia trazido. Parecia cansado.

- Tristan...

Ele olhou para cima, fitando-a.

- Eu posso ficar aqui com você? – Pediu.

Ele fez um longo silêncio e em seguida perguntou:

- Por que você quer ficar “aqui”?

- Eu... Não gosto de lá. – Ela apontou para a porta, referindo-se ao lugar onde estava viajando.

- Sarah, seu lugar é lá. Não pode ficar aqui.

- Não me sinto bem lá. São todos adultos e não me tratam bem. Com você é diferente. Somos amigos, não somos?

- Somos? – Perguntou Tristan, olhando fixamente para ela.

Mesmo na escuridão ela conseguia ver nitidamente o brilho no olhar daquele menino.

- Somos – ela confirmou ela – Por favor, me deixe ficar aqui com você. Prometo não importuná-lo.

Ele pensou um pouco antes de responder:

- Tudo bem, Sarah.

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