Capítulo 4
Tulipa, 1911 - Fazenda Mackerson.
- Sarah, querida, precisa me prometer que vai ficar bem. – Pediu Lia.
- Eu não quero ir, Lia. Não quero. – Sarah chorava no colo da babá.
- Precisa , meu amor. É uma ordem do seu pai.
- Mas eu não quero. – Teimava.
Marla entrou porta adentro, perguntando:
- Por que ela está chorando, Lia?
- Não quer ir, senhora. – Explicou Lia pacientemente.
- Por que isso, Sarah? Por que não quer viajar?
- Não quero ir sozinha, mamãe!
- Precisa ir, Sarah. Já está com 11 anos. Já é quase uma mocinha. Ao chegar em Deolinda estarão esperando por você. Quando sua irmã partiu era ainda mais nova e não fez isto. Todas as mulheres da família Mackerson frequentaram este internato, Sarah e você certamente não fugirá à regra.
- Mamãe, você poderia ir comigo? Eu tenho medo. – A menina pediu, ainda com lágrimas nos olhos.
- Não estará sozinha, Sarah. Muitas pessoas estarão no trem. É a grande inauguração dele e você estará lá, garota! Quantos queriam esta passagem e não tiveram a oportunidade. Por sorte seu pai é muito influente e conseguiu. – Disse Marla sorrindo, satisfeita.
- Mas eu não quero... – Continuou a menina.
- Se insistir com este choro e teimosia seu pai vai ficar aborrecido. E pode até mandar Lia embora para castigá-la. Quer isso, Sarah? Quer que Lia vá embora por sua causa?
Sarah olhou para Lia. Não, não queria que a babá fosse embora por sua causa. E sabia que seu pai poderia fazer isso se quisesse.
- Eu irei sem contestar. – Disse Sarah tristemente, limpando as lágrimas.
- Isso, Sarah. Seja uma boa menina e tudo correrá bem. – Marla saiu do quarto.
Sarah abraçou Lia, que ainda estava sentada ao seu lado na cama.
- Lia, e se eu for e você não estiver aqui quando eu voltar?
- Estarei, minha princesinha. Estarei sempre esperando pela sua volta.
- Promete?
- Sarah, claro que prometo. Mas você também terá que me prometer uma coisa.
- O que quer, Lia? Eu prometo sim. – A menina garantiu, sem sequer saber o que a babá falaria.
- Prometa que sempre lembrará de mim e não me esquecerá quando estiver longe.
- Prometo, Lia. Eu te amo.
- Sarah, você ainda é tão pequenina... Apenas 11 anos. Por isso gosta tanto de mim. Quando voltar, dentro de 4 anos, já terá 15. Estará em idade para casar, será quase uma mulher... Sua irmã quando partiu para o internato também era tão apegada à mim... Prometeu nunca esquecer-me. Mas quando voltou daquele lugar, me odiava. Acho que a repulsa era simplesmente pelo fato de eu ser negra. Naquele lugar vão falar mal de algumas pessoas para você, querida. Talvez tentem lhe ensinar que nós, negros, não somos como vocês. Tente não acreditar em tudo, minha menina. Não deixe que mudem seu puro coraçãozinho. Você é tão diferente dos outros Mackerson... Prove para mim que crescerá diferente deles, Sarah. Mantenha a inocência no seu coração, o amor, o afeto, as inquietudes desta cabecinha que sempre procura explicações para tudo.
- Nunca vou esquecer, Lia. Gosto tanto de você – Sarah abraçou a babá – Por que não vai comigo, Lia?
- Não posso, minha menina. Agora pare de chorar – disse, limpando as lágrimas que teimavam em cair no rosto claro e delicado da menina – Vamos procurar seu pai para que a leve logo, antes que percam a partida do trem.
Quando Sarah chegou à sala, João, Marla e Júlia estavam à sua espera.
- Despeça-se de todos, Sarah. – Ordenou o pai rispidamente.
Sarah deu um longo abraço na mãe, outro na irmã.
- Aquele lugar não é nada bom, Sarah. Mas garanto que você irá se acostumar. – Avisou Júlia.
- Não a deixe mais insegura do que ela já está, Júlia. – Censurou Marla.
Júlia riu. Sarah teve um pouco de medo. Ao tentar dar outro abraço em sua amada Lia, foi impedida por João, que pegou-a pelo braço, levando-a dali.
Enquanto caminhavam pelo campo alvo e verde, Sarah continuava com uma imensa vontade de chorar. Mas não podia, pois seria severamente castigada pelo pai. Havia sido ensinada que não podia chorar, e caso o fizesse, nunca deveria ser na presença dos outros. Mas sabia que junto de Lia poderia fazer isso... Na verdade com Lia ela sempre conseguia ser ela mesma, falar o que pensava, chorar, fazer perguntas sobre o mundo e todas as pessoas.
O caminho foi longo, ainda mais com o silêncio que pairava entre os dois.
Quando Sarah chegou na estação ferroviária ficou ainda mais nervosa. Haviam tantas pessoas... Nunca em sua vida vira tanta gente reunida num mesmo lugar. Falavam alto, alguns gritavam, a maioria sorria, crianças choravam. Havia muita poeira ao longe, que o vento trazia para perto deles, por vezes cegando seus olhos ou embaçando sua visão. Sarah sentia que poderia ser pisoteada a qualquer momento enquanto olhava para cima, tentando ver o rosto das pessoas.
- És uma privilegiada, Sarah – disse João – Este trem é o mais famoso do país. A grande promessa de fartura para nosso estado e prosperidade dos Estados. E você fará parte da viagem inaugural dele. Ele é muito veloz... Em pouco mais de um dia você estará em Deolinda. Há uma cabine reservada para que durma, ou se preferir também poderá ficar lá, sozinha, até o final da viagem. Quando quiser usar seu espaço individual, comprado na primeira classe, é só pedir para o funcionário encarregado do trem. Paguei-lhe muito bem para orientá-la durante o percurso para que chegue em Deolinda sem maiores problemas.
- E o que eu faço quando chegar em Deolinda? – Perguntou ela ansiosa.
- Uma das freiras responsáveis pelo internato estará esperando por você na estação. Basta fazer sempre o que ela mandar e tudo ficará bem. Quando voltar, será uma moça, estará preparada para o casamento. Saberá se comportar como uma verdadeira dama. É o mínimo que precisa para ser uma Mackerson. E até aprenderá a ler, como sempre desejou.
- Papai, pode me acompanhar até o interior do trem? Eu tenho medo. – Falou num tom quase de pavor, implorando.
João olhou firmemente para a filha. Ela intensificou o semblante de tristeza, para ver se ele se compadecia. Não que seu pai fosse um homem tivesse dó de alguém, mas talvez ela sendo sua filha pudesse mudar isso, pelo menos naquele dia. E ela conseguiu. João lhe deu a mão e foi com ela para o interior de um dos vagões.
O pai acomodou-a em um banco próximo da janela, alegando que olhar a paisagem lhe faria bem. Ali era o vagão restaurante. Havia uma mesa à sua frente, com biscoitos enfeitados com merengue e chá quente em um bule de porcelana.
Tinha pessoas entrando e saindo o tempo todo, muito eufóricos. Homens davam tapinhas nas costas uns dos outros e falavam coisas que ela não entendia. Não havia um que não cumprimentavam seu pai cordialmente. E tudo assustava a menina.
- Não tenha medo, Sarah. Tudo vai sair conforme o esperado – garantiu João – Adeus.
Ela tentou, mas não conseguiu evitar as lágrimas. Logo começou a limpá-las com a palma das mãos, lembrando da proibição de chorar em público.
- Adeus, papai.
Antes mesmo de ela poder falar outra palavra, vieram alguns homens e disseram para João que o governador precisava falar com ele. E seu pai se foi, sem sequer olhar para trás, deixando a pequena Sarah ali, frágil, sensível, com medo e completamente indefesa, sozinha no meio de todas aquelas pessoas estranhas.
Ela fechou os olhos, respirou profundamente e pensou em sua história favorita, que Lia contava todas as noite, sobre Sandy, a garotinha que conseguiu voar. Lembrava de cada parte: “... A garotinha não tinha medo e sequer sabia de seus poderes. Mas um dia, quando corria perigo, o maior de sua vida, ela fugiu correndo e subiu no telhado de uma velha casa para se esconder. Quando percebeu que a feiticeira negra estava próxima, se viu sem chances e se jogou lá do alto. Mas não teve medo naquele momento. Foi muito corajosa, como sempre. Abriu os olhos e os braços... E saiu voando como um pássaro. Foi aí que ela descobriu que todas as pessoas corajosas tem um pouco de magia guardada em algum lugar para o momento que precisarem. E ela, Sandy, perseguida toda sua vida pela feiticeira, podia agora fazer qualquer coisa que quisesse, inclusive voar...”
Sarah amava aquela história e como queria ser como Sandy. Pedia para Lia contar várias vezes antes de dormir e na maioria delas conversavam sobre a menina, sobre sonhos, sobre magia.
O trem apitou, assustando a menina. Em seguida foi partindo lentamente. Todos começaram a bater palmas, tanto quem estava dentro como fora da locomotiva. Sarah também aplaudiu, mesmo sem entender muito bem o porquê de estar fazendo aquilo.
Ao lado de Sarah sentou-se uma mulher muito elegante, alta, pele clara, cabelos longos e encaracolados. Usava um vestido de pura seda, cinza claro e na cabeça um lindo chapéu, com laço exatamente da cor do vestido. Ela tinha batom rosa nos lábios. Sarah achava lindo mulheres de batom... E aqueles vestidos... Um dia teria tantos vestidos de seda que nem saberia qual usar! A mulher tomava seu chá em uma xícara de porcelana pintada à mão e havia pedido brioches doces.
- Por que me olha tanto? – Perguntou a mulher, encarando a menina.
- Nada. – Falou Sarah, olhando para o outro lado rapidamente, disfarçando.
Sarah conseguia ver a paisagem passando pelos seus olhos rapidamente. As casas, o verde, o rio, as árvores... O trem era veloz.
Aquele lugar pelo qual o trem passava ela reconheceria de olhos fechados, só pelo cheiro. Era a Fazenda Mackerson. A menina não conseguiu conter a emoção e levantou de seu assento. Queria ver toda a fazenda dali. Conseguia visualizar os peões trabalhando na plantação.
Começou a gritar pela janela, eufórica. Mas ninguém a escutava. Já quase no limite com a outra fazenda, conseguiu ver Lia ao longe, acenando e correndo pelos campos verdes. Lia estava vendo-a? Uma imensa felicidade tomou conta de si. Era sua Lia... Amada Lia.
- Adeus, Lia, eu te amo. – Gritou, acenando veementemente.
- É sua babá? – Perguntou a elegante senhora que se sentava à sua frente.
- Não... É minha mãe. – Mentiu, orgulhosa.
As duas mulheres presentes começaram a rir.
Sarah sentiu-se imensamente triste naquele momento, sendo zombada por duas adultas que não a conheciam. Levantou-se e saiu foi correndo dali, de vagão em vagão, abrindo e fechando portas.
Havia muitas pessoas, todos os vagões lotados. Depois de algum tempo ela chegou ao que imaginava ser o último vagão. Não havia mais ninguém ali. Só malas de viagem... Muitas, inúmeras, de todas as cores e tamanhos. Em duas caixinhas, num canto, dois cachorrinhos confortavelmente acomodados.
Sarah sentou-se no chão, colocou a cabeça entre as pernas e chorou. Chorou sem medo, sem repressão. Chorou enquanto tinha lágrimas. Chorou sem saber quanto tempo se passou. Ela realmente queria ser filha de Lia. Tanto a babá quanto todos os demais empregados de seu pai lhe tratavam com mais afeto que sua própria família.