Capítulo 6
Sarah sentou-se ao lado dele, recostada em uma mala. Ele cobriu-a com parte da manta que ela havia levado. E virou-se para o lado.
- Para onde você vai? – Ela perguntou.
- Por que quer saber? – Ele com outra pergunta, permanecendo de costas para ela.
- Eu perguntei primeiro.
- Você aprende tudo bem depressa. – Ele disse.
Ela não viu, mas podia sentir que ele havia dado um sorriso.
– Eu vou para qualquer lugar. – Tristan respondeu.
- Qualquer lugar?
Ele virou-se novamente, ficando ao lado dela e não mais dando-lhe as costas. Mas não olhava em seu olhos. Mirava para frente, para o nada.
- Sim, para qualquer lugar. Eu não tenho nada. Não sou como você... Não tenho posses, não tenho casa, não tenho família.
- Não tem nenhum parente?
- Tenho um irmão. Ele se chama Eric. Mas mora muito longe daqui. O vi poucas vezes. Ele foi criado por uma família que o adotou.
- E por que você não foi adotado?
- Passei mais tempo fugindo dos orfanatos do que dentro deles. Eu nunca quis ser adotado. Sempre fui livre e quero ser assim pra sempre.
- Como um pássaro. – Disse a menina, suspirando.
- Como um pássaro. – Ele confirmou.
- E por que preferiu ficar aqui, com as malas e estes cachorros e não nos vagões com as pessoas? Não gosta de pessoas também?
- Na verdade é um pouco mais complicado. Meu caso não é como o seu, que pode estar lá e prefere estar aqui. Eu entrei no trem quando ele partiu, depois da estação. Não comprei uma passagem, pois não tinha dinheiro. Sou um intruso... Na verdade não me deixariam entrar lá naqueles vagões sem ter uma passagem. Nem aqui me deixariam ficar sem um bilhete. Por isso eu lhe pedi que não contasse à ninguém. Se contar, terei problemas.
- Prometo não contar à ninguém.
- Confio em você, Sarah. Agora vamos tentar dormir um pouco. Temos um longo caminho pela frente até chegarmos à Deolinda.
- Quando pretende visitar seu irmão Eric? – Perguntou ela bocejando, já quase sendo consumida pelo sono.
- Talvez eu vá logo.
Sarah tinha tantas perguntas para fazer àquele rapaz... Quem era ele, na verdade? Quantos anos tinha? Onde morava? Mas aos poucos seus olhos foram fechando e ela não conseguia falar... Mas perguntaria tudo assim que acordasse.
Sarah despertou com os raios de sol batendo no seu rosto. Deu um sobressalto quando percebeu que estava sozinha. Tristan não estava ali.
Ela levantou-se rapidamente e foi andando, tentando encontrá-lo. Viu a porta do fundo do vagão entreaberta e foi até lá.
A visão que tinha era fabulosa. Um pequeno e lindo espaço entre o trem e a paisagem verde. Ela olhou para o lado e viu Tristan.
- É lindo aqui! – Ela disse.
- Sim.
O cume das montanhas ainda tinha gelo. Abaixo deles, muito verde. Árvores em alguns pontos emolduravam o caminho. O trem parecia tão pequenino em meio à tudo que ela via... E apesar do sol, ela sentiu muito frio.
- Por isso eu amo o mundo. – Tristan falou sorrindo largamente.
Ela não entendeu muito bem o que ele queria dizer. E também não perguntou, pois não queria parecer uma menina ingênua e não saber de nada e pedir explicações para tudo.
- Quantos anos você tem, Sarah? – Ele perguntou.
- Tenho 11. E você? – Essa era uma pergunta que ela mais desejou fazer-lhe.
- Quinze.
- Meu pai sempre diz que um menino depois dos 13 já pode comandar uma fazenda.
- Eu não tenho uma fazenda, então não sei se poderia.
- Sei disto.
- Seu pai é dono de uma fazenda em Tulipa?
- Sim. Dono da Fazenda Mackerson. Tem o maior rebanho de gados da região. Também cria cavalos de raça.
- Gosto muito de cavalos. – Ele sorriu.
- Eu também. Mas não posso montar.
- Por quê?
- Meu pai não deixa, por eu ser menina.
- E você faz tudo que seus pais mandam? – A testa dele enrugou-se.
- Sim... Eles são meus pais.
- Não precisa fazer tudo que eles mandam somente por serem seus pais. E quando não concorda, o que faz? Não me imagino cumprindo ordens o tempo todo e sendo impedido de fazer coisas que gosto. Tente contestar e fazer uma coisa que gosta mas que não lhe permitem, pelo menos uma vez... Vai sentir uma sensação boa, eu garanto.
- Não acho que esteja certo. Sou uma criança e preciso cumprir ordens até crescer. E então alguém cumprirá as minhas ordens.
Ele olhou para ela e ficou em silêncio alguns minutos. Sarah podia vê-lo tão nitidamente naquela hora. Um rapaz alto, magro, negro, talvez mestiço, pela cor dos olhos: verdes. Mas de um tom verde que ela nunca vira igual em toda sua vida. Cabelos não tão curtos, desarrumados, completamente encaracolados. Um sorriso tão lindo, mostrando dentes perfeitos e brancos... A barba começava a crescer em alguns pontos. Por vezes parecia um rapaz e outras somente um menino levado. O certo era que ela se sentia muito estranha na presença dele, como nunca antes aconteceu com outra pessoa. Tristan lhe dava uma sensação de proteção e ao mesmo tempo medo.
- Tenho uma babá que eu amo e é negra. – Ela falou.
Ele fitou-a minuciosamente.
Ouviram um ruído, parecendo de uma porta abrindo. Tristan encostou-se atrás da porta, do lado de fora, no pequeno espaço que tinham disponível e fez um gesto pedindo para que Sarah ficasse em silêncio. Ela recostou-se do outro lado da porta, como ele. Fechou os olhos. Sentiu muito medo e seu coração parecia que saltaria pela boca. Não queria ser encontrada ali. Não queria voltar para o vagão com suas companhias desagradáveis.
- Menina, o que faz aqui? – Perguntou Manoel ao vê-la ali.
- Eu... eu... – Ela não sabia o que dizer.
Os olhos dela sem querer pararam em Tristan, denunciando-o. Manoel acompanhou o olhar dela.
- O que faz aqui, garoto? – ele olhou para um e depois para o outro – O que “vocês dois” fazem aqui?
- Estávamos... Contemplando a paisagem. – Falou Sarah, tentando contornar a situação.
- Pouco me importa a paisagem. Você está louca, menina? Sozinha aqui com este rapaz? Isto não está certo. Você vai voltar agora para o seu lugar.
Sarah foi indo devagar para a porta.
- Não precisa voltar se não quiser, Sarah. – Falou Tristan.
Sarah parou. Tristan tinha razão. Ela não era obrigada a voltar se não quisesse. Em poucos segundos, quando olhou para trás viu Manoel com Tristan pelos braços.
- Solte-o já. – Ela ordenou.
Manoel soltou uma risada debochada e cheia de malícia:
- Há quanto tempo vocês dois estão sozinhos neste vagão?
Sarah não entendeu o que ele queria dizer com aquele tom sarcástico. Mas percebia que estava muito irritado e agressivo com Tristan. Manoel começou a balançar o garoto pelos ombros de um lado para o outro, ferozmente. Sarah interveio e deu tapas em Manoel, com suas delicadas mãos, tentando impedir o pior.
- Saia daqui, Sarah. – Ordenou Tristan.
Sarah não saiu. Não iria obedecê-lo. Ele mesmo dissera que em algum momento deveria fazer algo que ela queria, sem cumprir ordens. E precisava ajudá-lo. Manoel soltou Tristan e pegou Sarah no colo, mesmo sob os protestos da menina. Captou-a pelas pernas, jogando seu corpo sobre os ombros dele. E, naquele momento, quando levantou a cabeça, Sarah pôde ver Tristan se jogando do trem.
Manoel, ao ouvir o barulho, soltou Sarah e ficou ali, parado, incrédulo:
- Como ele foi capaz de fazer isto?
- Ele morreu. – Sarah gritou, não contendo as lágrimas, correndo até a grade de proteção.
- Não... Não pode ter morrido. – falou Manoel ao lado dela, com voz de arrependimento.
Em pouco tempo o corpo do garoto jogado ao chão levantou-se, já bem distante do trem. Ela ainda pôde ouvi-lo ao longe, enquanto acenava:
- Até a próxima, Sarah.
Ela limpou as lágrimas e sorriu. Tristan estava bem, embora fosse ficar com frio no meio do nada, onde pulara. Mas tinha certeza que ele daria um jeito. Também sabia que a chance de vê-lo novamente era quase nula. Mas gostaria muito de reencontrá-lo um dia.
Manoel, irritadíssimo, não deixou Sarah voltar para o seu lugar. Ela passou o restante da viagem com ele, acompanhando-o em tudo que fazia. Conheceu os demais empregados do trem, a cozinha, os maquinistas, as copeiras e limpadeiras. Conheceu toda a primeira classe e a segunda. E foi muito bem tratada por todos, mesmo que não entendessem o que aquela menina desprotegida fazia sozinha naquele trem imenso. E Sarah sentiu-se muito feliz em pode estar no meio de todos eles nas últimas horas de viagem. Ficou mais à vontade do que na primeira classe, ao lado das mulheres estranhas e frias que a acompanhavam. Mas nunca, em nenhum momento, parou de pensar naquele garoto que conhecera. Tristan, o menino rebelde, jamais sairia de sua mente... E de seu coração.