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Capítulo 2

- Deveria ter escrito sobre a primeira... Deve ter sido mais interessante. – Ele disse pegando alguns bilhetes e guardando.

- Sim, imagino. Mas eu não poderia escrever sobre isto porque eu não estava lá. E acho que seria difícil encontrar alguém que estava.

- Talvez encontre alguém que estava lá naquele dia. Não é impossível.

- Bem difícil... Só se for alguém que era criança na época e estaria com mais de 100 anos, o que é quase impossível. Mas de qualquer forma, obrigada.

Natasha saiu. Nem acreditava que estava fazendo aquilo, tentando saber sobre o trem. Ainda se mantinha desconfortável com aquela matéria. Mas decidida: faria a última viagem do trem, escreveria umas poucas linhas contando o quanto era chata a tal jornada e colocaria sua opinião de o quanto era importante o trem azul dar lugar à uma rodovia nova e moderna que ligasse os dois estados.

Depois de ter passado em casa e pego umas roupas, ela se dirigiu para a estação do trem, que ficava mais no subúrbio da cidade. Ficou cansada do trajeto. Aquela estação já havia sido restaurada no mínimo umas 4 vezes em 10 anos pelo que soubera. E continuava terrível. O perfeito retrato da antiguidade, com trilhos enferrujados e maltratados, construção um pouco de madeira, um pouco de alvenaria, mista. Tentaram manter a construção original, a nível cultural e histórico, mas não dera certo. Ela imaginou como estaria o trem, comparando com a estação e os trilhos. E teve até medo do percurso.

Natasha ouviu o som do apito do trem ao longe. Avistou a imensa locomotiva chegando vagarosamente e parando barulhenta na estação. Era a primeira vez que ela via o trem azul tão de perto.

E entendia perfeitamente porque era chamado de trem azul... Era a cor predominante por fora e em vários detalhes por dentro. Achava que ele estaria em pior estado internamente. Mas embora ainda houvesse algumas partes de madeira no interior, o que a deixava incrédula, estava dentro dos padrões do que qualidade pelo tempo que já tinha.

O cheiro era de mofo misturado com tinta fresca. Estranho ao olfato. Diferente. Ela aspirou o ar profundamente... Gostava do cheiro que nunca sentira antes.

Natasha sentou-se em um banco pouco confortável, perto da janela. Haviam cabines para dormir, com camas, mas ela só iria olhar estes cômodos. Não utilizaria para dormir. Nem conseguiria pregar o olho aquela noite... Não naquele lugar. Muito menos numa cabine que provavelmente era apertada e desconfortável. Preferia passar o tempo que tinha no banco do restaurante. Ainda tinha uns 15 minutos antes da partida, caso não atrasasse. Leu que há tempos atrás havia até separação de classes nas viagens do trem. Ficou impressionada. Embora tivesse um design atual para a época, o trem tinha alguns vestígios do passado que pareciam intocáveis. Seriam desde a viagem inaugural de 1911? As luzes pareciam lamparinas antigas. Dava a impressão que usavam as mesmas há mais de 50 anos.

A garota olhava tudo atentamente, mas ainda não via motivos para estar ali. Nem sabia ao certo se deveria anotar e escrever sobre como era o trem por dentro, pois acreditava que quase todos já haviam estado naquela máquina um dia na vida pelo menos, com exceção dela.

Na dúvida, achou melhor anotar. Certamente esqueceria os detalhes, pois estes não lhe interessavam muito, então seria difícil guardá-los na memória.

Começou a escrever...

- Com licença... Posso sentar-me junto de você?

Natasha olhou para cima e encarou a senhora aparentando uns 80 anos ou mais. Nossa, como detestava ser interrompida enquanto escrevia! E não entendia o motivo de a pessoa querer sentar ao lado dela enquanto o trem estava praticamente vazio. Mas foi cortês:

- Pode. – Falou, abaixando a cabeça para suas anotações.

A velha senhora sentou-se exatamente ao seu lado. Natasha fingiu nem notar a presença dela e continuou escrevendo. Não satisfeita, a pessoa baixou a cabeça quase entrando em seu bloco de anotações, sem disfarçar que estava tentando ler. Natasha fechou o bloco sem muita cerimônia e deixou-o descansando em seus joelhos, colocando a caneta em cima.

Mas a mulher continuava olhando para o bloco. E depois seus olhos fixaram nos de Natasha, que percebeu estar sendo observada atentamente. Ficou muito incomodada e se viu perguntando:

- Tudo certo, senhora?

- Sim... Sim...

Natasha respirou fundo. Não tinha vontade nenhuma de fazer aquela viagem. E ter como companhia aquela senhora desagradável não seria nada bom. Decidiu fingir que não estava incomodada e voltou a anotar.

- Por que escreve sobre o trem? – Perguntou a mulher.

Natasha suspirou. Detestava viajar acompanhada a qualquer lugar. Preferia ficar com seus próprios pensamentos. Para ela, fazer um roteiro sentada sozinha era terapia. Aliás, adorava a solidão. Então já imaginou o que aconteceria se iniciasse uma conversa com a idosa. Sabia que os velhinhos adoravam conversar por horas, o que ela odiava.

- Gosto de anotar coisas. – Disse, sem olhar para mulher.

Quis parecer irônica, mas não sabia se havia conseguido.

- Este trem não era assim....

Natasha fechou os olhos e recostou sua cabeça no banco. Pensou em trocar de lugar... Mas como fazer isso sem ser rude?

- E pensar que esta é a última viagem do trem azul... – Ela falou em tom de lamento.

Natasha não respondeu e nem se moveu. Deixou bem claro que não queria conversar. Fechou os olhos.

Ela continuou:

- Agora é praticamente um dia até Tulipa... Chegaremos lá às 10 horas da noite de amanhã.

O trem apitou novamente, assustando Natasha. E lentamente começou a se movimentar sobre os trilhos, fazendo um barulho chato e irritante. Seria assim pelas próximas 24 horas? Ela não suportaria.

- Não se preocupe, logo o barulho vai parar. – Disse a velha senhora, como se adivinhasse os pensamentos dela.

Natasha abriu os olhos e levantou a cabeça, um pouco impressionada.

- Sabe, este trem não deveria parar... Ele tem tanta história para contar. – Falou a mulher com um suspiro de pesar.

Natasha olhou nos olhos da sua indesejada acompanhante. Uma sensação estranha invadiu seu corpo. Sabia que ela tinha muito a contar... E que queria contar. E certamente dentre suas histórias, havia um pouco sobre o trem azul.

Decidiu conversar um pouco, pois certamente a senhorinha não desistiria mesmo de tagarelar durante a viagem. O que Natasha mal poderia imaginar é que a história daquela mulher se fundia na origem e no fim do trem azul.

- Sabe bastante sobre este trem? – Perguntou Natasha.

- Se eu sei? – ela riu... Um sorriso bonito, dentes brancos dentro dos lábios já bastante enrugados. – Este trem é a minha vida, menina. Os momentos mais importantes da minha existência foram aqui.

- Então viajou muito nele?

- Meu nome é Sarah. – Disse ela, estendendo a mão para Natasha, que apertou a mão gelada.

- Então me conte. – Pediu, pouco interessada no nome da mulher.

- Não falo com pessoas que não sei o nome. – Rebateu ela, ainda sorrindo gentilmente.

- Me chamo Natasha.

- Natasha... – soletrou lentamente. – Tenho uma neta que se chama Natália.

Natasha não entendeu a comparação.

- Nem acredito que esta é a última viagem do trem azul. – Lamentou ela novamente.

- A última – confirmou Natasha – do trem azul. – Entendeu que a senhora poderia já não estar tão lúcida, devido à idade.

O trem apitou novamente, fazendo Natasha dar outro sobressalto, assustada.

- Assustou-se? – Perguntou ela, docemente.

- Odeio este barulho. Para que serve? Há necessidade disto?

- Eu amo este som... – falou ela, fechando os olhos e em seguida abrindo-os novamente – É ele que me dá forças para viver. Na verdade, foi o que me manteve viva por tantos anos.

Natasha ficou atenta. Certamente ali estava sua história. Sinceramente não tinha muito interesse na “vovó” que contaria todo enredo do seu grande amor, que talvez tenha partido para a guerra a bordo do trem e nunca mais voltou... Mas a mulher sabia muito sobre o trem no passado e sua real importância. Seria quase uma aula de história sem precisar fazer pesquisa. Vivenciaria cada detalhe sobre o trem que um dia teve alguma importância para as pessoas, as cidades, a economia do país.

- Por que o apito tem tanta importância para a senhora? – Perguntou.

- Sabe, quando ele apita, a cor do trem é a que você quiser... E você pode se permitir sonhar.

- Não entendi. – Natasha ficou confusa.

- Se você ouve o apito do trem mas não o vê, não sabe como ele é... Imagina-o de qualquer outra forma, menos da real maneira. E ele é mesmo diferente de todos os trens.

- Por quê? – Natasha entendia cada vez menos.

- Porque ele é o trem da minha vida. – Falou a senhora firmemente.

- Para onde a senhora está indo? – Natasha perguntou, curiosa.

- Para Tulipa, última parada do trem azul.

- Qual a importância do trem para a senhora? – Tentou uma resposta mais sensata.

- Por favor, me chame de Sarah, querida.

- Qual a importância do trem... Sarah? – Insistiu.

- Sabia que eu estava aqui na primeira viagem do trem azul?

Natasha ficou incrédula. Ali estava o que ela procurava, mas achava impossível: alguém que conhecia a história do trem azul. E o fato de ela ter estado na primeira viagem era simplesmente muito melhor do que esperava conseguir. Perfeito!

- Esteve na primeira viagem e agora está na última? – arriscou Natasha, para ver se ela começava logo a contar sua história, para não perder muito tempo.

- Esta não é só minha última viagem no trem azul. É a última viagem da minha vida.

- Não pretende viajar nunca mais? – Natasha já se via fazendo perguntas, mesmo sem querer.

- Não... Nunca mais. Estou retornando para Tulipa para terminar minha missão nesta vida e cumprir meu destino.

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