capítulo 7
"Vento não assusta quem tem asa"
V I C T O R I A
Os sapatos apertam meus dedos enquanto eu ando ruidosamente, subindo a estrada em direção à casa. Cortando pela cerca dos Lennis caminho entre a grama e o mato alto, passo pela casa de Mark em minutos. Sua mãe, Clarissa, me vê através da janela, onde está curvada sobre a pia da cozinha. Ela enxuga as mãos no avental e desaparece para surgir na porta erguendo os braços para me cumprimentar de longe, e pedir que me aproxime.
Eu gosto da Clarissa. Respeito-a. O marido dela passa a maior parte do tempo fora dentro das florestas, ela passa dias sem notícias, muitas vezes sem ter ideia de que o companheiro está vivo ou morto. A mulher tem três filhos, Mark o mais velho, Ryan de dezesseis, e Caio de dez. E mesmo assim ela era a melhor pessoa que eu conhecia, Clarissa nunca reclamou de ter que criar os filhos praticamente sozinha, ou manter uma fazenda nas costas e ter que fazer doces para suprir quando o dinheiro do marido não vinha e Mark ainda não tinha idade para ajudar como provedor.
Independente das circunstâncias ela criou os filhos para terem um coração grande, disposto a ajudar mesmo que eles não tivessem muito a oferecer.
— Victoria chegou na hora certa, estou preparando um chá. — Clarisse repousou as costas contra o batente da porta.
— Obrigada Sra. Lennis, mas estou apenas de passagem. — gritei, ainda de longe.
— Querida é só um chá, adoraria que me acompanhasse, estou sozinha, os meninos estão na cidade e Mark está no potreiro organizando os animais.
A mulher sorriu amavelmente, e eu reconsiderei no mesmo momento, dando um sorriso bobo e indo em direção à casa. Talvez aquele chá fosse mesmo bom para meus nervos à flor da pele, um anestésico para o misto de sentimentos que estava prestes a explodir dentro do meu peito.
Quando entro, pouco depois do pôr-do-sol, as lâmpadas acesas fazem as sombras dançarem, trêmulas, no teto alto. Caminho com cuidado, notando o lugar de estrutura simples que muitas vezes foi meu aconchego, vou pra cozinha onde sento na cadeira perto da mesa marrom.
A mãe de Mark me serve uma caneca de chá de ervas, na qual eu envolvo meus dedos gelados de uma forma grata. — Obrigada Clarissa.
— Ah querida bobagem. — a mulher diz guardando a chaleira no fogão e pegando os biscoitos perto da geladeira. — Como estão as coisas?
— Mark não lhe contou? — estreito as sobrancelhas.
— Conhece meu filho.. — replicou depressa. — Ele não costuma contar as coisas, exceto para você..
Eu não posso impedir a vermelhidão que inunda o meu rosto. É estúpido, claro.
Quase ninguém me entende melhor do que Clarissa, ela era o mais próximo de uma figura materna que eu tinha, e sabe do vínculo que compartilho com Mark. Tenho certeza que muitas pessoas achavam que nós eventualmente acabaríamos nos casando, que de fato, éramos almas gêmeas destinadas a ficar juntas. Em partes eu acreditava nisso, exceto pelo matrimônio, a possibilidade de me casar com qualquer pessoa ainda era uma linha distante demais dos meus ideias.
— Aparentemente.. Sou o último membro vivo da realeza Ferro.
Seus olhos levantam, as mãos oscilam e ela se vira lentamente.
— É claro que você é. — Clarissa abre um sorriso tão puro, que faz os meus olhos se encherem de ardência e lágrimas em um curto instante.
Ela estava orgulhosa.
Eu engulo todo o meu chá mesmo que esteja muito quente e o empurro pro centro da mesa.
— Não acha isso loucura? Minha mãe poderia ter sido uma rainha de Ferro, ela poderia ter se tornado a mulher mais poderosa do nosso país. A escolha estava em suas mãos, mas ela não quis e agora, tal fardo se repousa sobre mim.
— Quer a minha opinião?
Faço que sim. Porquê me importo.
Me importo com os Lennis e me importo com o quê Clarissa sente. Porque tinha sido ela quem cuidou de mim desde que eu era uma criança desengonçada e cheia de temores. Suas mãos me seguravam quando eu chorava em luto por meus pais. E foi ela que se sentou comigo e fez penteados no meu cabelo, era ela que se preocupava em mandar lanche extra com Mark para que eu tivesse o que comer na escola, a Sra.Lennis me fez aprender costura e a arte dos doces, mas também me ensinou sobre bondade e gentileza. Clarissa fez coisas que nenhuma vizinha precisava fazer. Se não fosse por ela, que se importou comigo, como minha mãe faria, eu não sei muito bem o que teria sido de mim naquela época.
— Acho que já sabe a resposta, ela sempre esteve aí, dentro de você.
Meu coração pula uma batida.
— Eu estava vindo da cidade, falei com Lorde Owen esta tarde sobre a minha decisão final e pretendia encontrar Eliz e Germano para explicar o que farei daqui em diante.
— Qualquer que tenha sido a sua escolha, vamos apoiar você. Eu, Mark e os meninos.
— Sei que vão.
É um fato tão sólido quanto a firmeza da terra sobre os meus pés.
— Preciso ir. — Digo mexendo os dedos sobre o forro da mesa.
— Vá em paz querida. Eu te amo.
Clarissa fala, seus olhos me aquecem e eu a abraço agradecida, segundos antes de sair.
— Também te amo. Fala pro Mark que eu lhe mandei um abraço.
— Falarei. — sua voz se mistura com o vento.
E então sigo pela trilha, até que a colina se erga e a casa Megan se torne visível. Atravesso a cerca com cuidado, sentindo quando o nó se expandiu na minha garganta e desceu por todo o meu corpo, mas eu não deixei que ele me agarrasse.
ههههه
— Olha quem decidiu aparecer.
Eliz está sentada na poltrona da sala quando abro a porta, os cabelos dourados presos em um coque firme se mesclam com a luz da lamparina facilmente. Seus dedos enrugados pela água e o sol estão cravados nos braços do móvel. Os olhos se movem silenciosamente perturbadores sob meus ossos, não recuo.
— Germano está em casa? — pergunto fechando a porta atrás de mim.
— Não. Somos só nós duas.
Ouço o fogo na lareira perto de Eliz crepitar quando me aproximo.
— Fui até a cidade.
— Imaginei que fosse. — Eliz alcança o fundo dos meus olhos, no lugar mais obscuro onde ninguém nunca tocou, exceto ela. — Sabe, é assustador como você se parece com ela.
Encaro sua expressão, todas as linhas conhecidas do seu rosto, cada movimento da boca fina e ríspida. Mas não encontro nada que valha a pena.
— É por isso que me odeia? — meu queixo treme. — Por que me pareço com ela?
As sobrancelhas de Eliz se contraem e a cabeça balança em negação.
— Não a odeio, Victoria. Nunca a odiei.
Meu olhar levantou para ela em um silêncio atordoado. Levei um momento para formular uma resposta.
— Ódio, amor. Realmente, no fundo eu acho que você nunca sentiu nada. — Eliz levanta o rosto com receio, desejando secretamente que eu pare. — Somos lâminas uma contra a outra, conviver juntas nos cortou e feriu. Nossas dor.. ela..
— Você não tem o direito de falar da minha dor! — ela se levanta em um súbito de mágoa e raiva. Dou um passo para trás quase caindo quando seus olhos me trancam e me jogam no passado. — Eu fiz o melhor que pude com o quê me restou, mas você Victoria sempre foi ingrata. O seu sangue sempre foi maldito, sangue escuro, sangue amaldiçoado e mesmo assim eu te criei debaixo do meu teto, dei comida e dei roupa.
— Não era o suficiente! Eu precisava de você tia, precisava de amor e precisava que olhasse pra mim..
— Você era fraca. — seu dedo se levantou na minha direção tremendo. — Mas eu a tornei forte. Eu fiz você ser algo melhor do que seu pai ingênuo era, e fiz você ser mais esperta do que Amberly foi.
— Não! — Meus dedos explodiram onde eu os torci. A raiva aumentou tão rapidamente que fiquei surpresa por não ter respirado fogo quando exalei.
— Você não me tornou forte, a única coisa que fez foi me ferir, quando você me batia eu não aprendia com aquilo, eu ficava triste e sentia ódio. Quando você mentiu sobre meu passado e proibiu que eu falasse sobre os meus pais eu me atroviei, eu comecei a ficar tão traumatizada e com medo que feri meu próprio corpo para fazer aquela dor parar. — levanto meu braço, as cicatrizes brancas no pulso ficando à vista quando meu peito fechou tão firmemente que eu perdi o ar. Ela recuou os olhos arregalados. — Agressão não torna ninguém mais esperto! O trauma não o faz mais estável! E a dor não deixa mais forte. Tudo isso só ferra com você, mesmo anos depois quando você achar que estiver indo bem aquilo ainda vai vir e vai te arrebatar.
Ela pareceu se enfurecer mas não consegue dizer nada.
— Você não me fez forte. Eu tive que ser porque ainda precisava continuar vivendo.
Respirei fundo aproveitando aquele momento de quietude entre nós.
— Você não me queria, eu entendo. Você culpa a minha mãe por tudo o que aconteceu e consequentemente me culpa também. Mas eu não sou a razão da morte deles, ou a raiz da sua frustração. Não é porque sua vida é infeliz, que a minha também tenha que ser. Sinto muito Eliz, — paro de falar um pouco, sentindo uma súbita compreensão. — Mas isso sempre teve a ver com você, nunca foi sobre mim.
— Eu não sou o monstro aqui Victoria. — disse ela, e quando eu a olhei, vi um músculo flexionado ao longo de sua mandíbula enquanto encarava o fogo minguante.
— Eu não entendia o que você queria de mim, quando me batia e quando me olhava com ódio. Eu nunca entendi, e nunca vou entender. — Meus lábios abriram quando meu estômago se estabilizou, mas meu coração deu voltas e se comprimiu. — Eu só queria que você me amasse. Mas de qualquer forma, não preciso mais. Não preciso do seu amor ou da sua caridade..
Ela riu por entre uma lufada pesada de ar frio. — Diz isso porque agora tem a oportunidade de ir embora. E quer saber? Melhor que vá mesmo, pegue sua ingratidão e dê o fora daqui!
— É exatamente isso que eu vou fazer. — ela me encarou com uma expressão mortal. — Encontrei com Lorde Owen esta tarde… — Eliz me analisa enquanto por dentro assisto meu corpo desabar contra a ventania. — Eu vou pra capital Eliz, e vou lutar por tudo aquilo que me foi negado. Vou lutar por meus pais, por mim, pela garotinha que você maltratou e que sonhava com um futuro melhor. Farei o que for necessário para dar oportunidades às pessoas que estão presas por conta da maldade de adultos infelizes.
Engulo o nó na minha garganta, sem conseguir falar mais por medo de cair no choro. Não vou fazer isso na frente dela. Minha tia não merece minhas lágrimas, minha piedade ou meu amor, por menor que possa ser. Eliz ergue a cabeça, seu corpo estremece enquanto ela inspira delicadamente.
— Se seu desejo é ir, vá, mas saiba que pra cá você não volta.. — ela disse de uma forma tão dura que fez cada fragmento existente do meu corpo arrepiar. — Não se esqueça Victoria, essa coroa que você busca ainda vai ser a sua perdição.
Abro um sorriso arrebatador com lágrimas incandescentes nos olhos.
— Eu vou me reerguer. E você nunca mais poderá me derrubar outra vez.
Virei as costas e subi pro quarto sem olhar para trás. Nada mudaria a nossa relação. Nada poderia contornar as mágoas que tínhamos uma pela outra. A ventania inundou o ambiente, jogou-me no chão e derrubou o meu coração. Eu não conseguia ficar de pé, e ainda assim nunca me sentirá tão viva. O vento não me assusta, não mais, ergui as minhas asas e voei.