capítulo 8
"Um coração de Ferro, com trancas de aço."
V I C T O R I A
Era dia na fazenda quando me levantei e organizei minhas duas malas na sala, eu não tinha muitas coisas, tudo que era importante estava ali, engraçado notar que minha vida toda poderia caber em duas bagagens. A casa estava silenciosa, a cozinha organizada, as janelas abertas e as lascas de madeira na lareira estilhaçadas, os últimos resquícios da noite anterior em cinzas. Germano provavelmente estava no campo e Eliz deveria ter ido fazer compras no vilarejo, ou simplesmente estava fugindo de mim.
— Anjo..
Ouço a porta se abrir, desperto de meus pensamentos e de meu olhar fixo naquelas malas e me viro para a voz que eu tanto conhecia e amava, era Mark.
— Pensei que não viria se despedir.
— Ah eu nem queria vir, mas sabe.. Clarissa me obrigou. — seus lábios arqueiam em um sorriso.
— Ah claro, Clarissa pode ser bem ameaçadora quando quer.
— Você nem imagina.
É mais uma respiração do que uma palavra. Ele está avaliando meus olhos. Analisando as malas e as minhas próximas reações, eu coloco minhas mãos no bolso da calça e observo ele se sentar no sofá perto da janela.
— Tenho o dia de folga por bom comportamento. Depois de despachar você vou para casa almoçar com a minha mãe e os garotos e depois Ryan, Caio e eu vamos pescar.
— Que incrível, você merece essa folga. Manda um oi para todo mundo.
Ele estica as mãos no sofá, o cabelo castanho está brilhando através da luz que vem da janela. Tendo gravar sua pele, musculosa e amendoada na minha mente, não quero deixar que passe nenhum detalhe sobre ele, não posso deixar.
— Eu queria que você fosse. Esse é o primeiro dia normal que tenho em muito tempo e não parece certo sem você. — Ele fala com sentimentalismo. E sei como é isso.
— É, seu filho da mãe sortudo, vou ter que viver esse dia com você em pensamento. Não se esqueça disso enquanto estiver comendo a lasanha da sua mãe e pescando naquela floresta com os meninos.
— Como poderia? Cada merda de galho naquele lugar tem um traço seu.
— Sei que ama. Nem tente negar.
O canto da boca dele se ergueu, mas não há alegria no movimento. — Você nem foi embora e eu já estou sentindo a sua falta.
Preciso me segurar antes que o mundo se incline e eu caia. Inspiro e tremo
— Estou fazendo o certo em ir, não é?
— É claro que está. Você será a melhor governante que esse reino já viu.
— Ainda não é certo que serei uma Rainha. Na verdade nem consigo me imaginar sendo uma, sabe com toda aquela pompa e responsabilidade, mas só de saber que vou descobrir mais sobre mim e a minha família já é o bastante.
Fecho os olhos quando respiro fundo.
Mas não abro os abro quando Mark se aproxima, me puxa pelas mãos e me trás pra si. Não abro os olhos quando ele me abraça forte contra o peito. Não abro quando pequenas lágrimas tocam a camiseta dele. Não abro enquanto ele murmura baixinho e acaricia minhas costas com a palma da mão.
— Você será uma ótima Rainha anjo. Já posso ver.
Eu fungo.
— Com pompa e tudo?
— Com pompa e tudo. — ele sussurra.
— Me escreve sempre que puder, não some por favor, não desapareça da minha vida. — tendo dizer o mais firme que posso, porque sei da sua dificuldade em se expressar por palavras.
— Prometo não sumir, escrever sempre é me pedir demais.. — ele sorriu da minha cara, odiava como ele sabia exatamente como me deixar fora de mim.
— Não importa se vamos estar há quilômetros de distância, ainda vou me importar como se estivéssemos separados por uma cerca. — Levanto a cabeça levemente. — Nunca vou me esquecer do que fez por mim, todos os dias, sem esperar nada em troca.
Ele levantou meu queixo para que nossos olhares se encontrassem. — Eu amo
você.
Aperto minha bochecha contra o peito dele.
— Também te amo.
Ele inclina a cabeça e olha para mim como se estivesse decidindo sobre contar algo ou não.
— Parece que chegaram.. — olhei meio decepcionada para janela notando que realmente Lorde Owen e seus guardas estavam à minha espera, me virei para as malas e senti o meu corpo eletrizado como se estivesse levando um choque de realidade, isso realmente estava acontecendo, me dei conta.
— Deixa que eu carrego as suas malas anjo. — ele levanta o que demorei horas pra descer em um segundo. No fundo Mark também está decepcionado por nosso momento ter se encerrado tão abruptamente, mas como de costume ele não expressa seu desaponto, com seu melhor sorriso fomos juntos até a carruagem.
— Victoria, está pronta? — Sr. Owen me pergunta depois dos guardas guardarem as malas no veículo. Olho de relance pra fazenda que se ergue atrás de mim, os estábulos e os cavalos que eu tanto adorava, a floresta para onde eu fugia, a cerca que levarei aos Lennis, e a casa dos meus tios. Agora parecendo pequena e irrelevante, não amedrontadora e fria como costumava ser.
Germano e Eliz não surgem, e aquilo parte meu coração. Embora eu imaginasse que não pudesse se quebrar mais, ele corta. Meus tios não iriam se despedir de mim, a noite passada foi o estopim para aquela decisão, eles estavam com tanto ódio que nem ao menos me dariam um último adeus.
— Sinto muito Victoria, mas deveríamos ter saído ontem. A viagem é longa, não posso esperar mais. — Owen reafirma com um olhar calmo.
— Eu entendo.
Concordo devagar dando um último abraço em Mark. Lennis me olha procurando saber como eu estou, no fundo ele sabe que eu queria meus tios ali comigo.
— Por favor não surta. — falo baixinho. — Mas uma das partes do acordo que eu fiz inclui uma quantia mensal no nome de Clarissa Lennis pelo período em que eu estiver na capital, eu sei que você jamais aceitaria ajuda mas eu quero poder fazer alguma coisa por vocês, algo para compensar todos os anos de apoio..
— Toria.. Você é da família, não deve nada para qualquer um de nós.. e..
— Por favor. — o interrompo. — Não quero que se mate nas fábricas ou que sua mãe perca os dedos fazendo serviços extras. Mande Ryan pra academia em Hirath, deixe ele fazer o curso que ama e não que tenha apenas que esperar para ser convocado pela guarda. Pague as aulas de piano para Caio e por favor Mark, cuide de você. Todo esse tempo você cuidou de todo mundo. Agora eu preciso que cuide de você.
Sorri com lágrimas nos olhos, porque deixar ele doía.
— Quando tudo se resolver vou mandar buscar vocês.
— Você ainda vai me deixar louco, sabia? — ele está sorrindo. Não quer, mas não consegue evitar.
— Adeus, Mark. — beijo sua bochecha.
— Adeus, anjo.
Ele se afasta me lançando um sorriso arrebatador, o olhei uma última vez antes de entrar no veículo, imaginei quando nos veríamos de novo. Se demoraria muito para o oceano de meus olhos encontrarem o sol dos seus outra vez, como uma prece pedi para que fosse logo.
Toda a tensão dos últimos dias se desfaz, e sinto um peso ser tirado das minhas costas. Quase suspiro de alívio quando me acomodo na carruagem e a vejo sacolejar, através da janela avisto de longe a presença de meus tios se aproximando da cerca, ambos estavam abraçados, eles eram fortes e por mais que raramente demonstravam afeto um pelo outro sempre se apoiavam, eram como rochas, inabaláveis e indestrutíveis o mundo poderia ir ao chão e ambos ainda continuariam de pé.
No fundo, eu esperava estar certa sobre a resistência deles, porque independente do meu fracasso ou êxito em Vêrmenia. Não voltaria mais para aquele lugar.
Olhei para o Sr. Owen que me observava atentamente, e lhe lancei um breve sorriso, voltando a me perder nas paisagens que estavam passando pela janela, sentindo profundamente quando uma parte de mim ficou naquele lugar. Dizer o que eu estava sentindo não era algo facilmente descritível, uma parte minha chorava de medo e saudade e a outra almejava me permitir ser maior. Meu único receio era saber que um dia algumas dessas partes deixassem de existir e acabasse restando somente uma.
Mantive-me ereta no banco, decidida a não olhar para outra direção que não fosse à frente. O som dos cavalos que puxavam o veículo irradiava através da estrada, ecoando como trovões. Passamos pelos muros de Golden Fox minutos depois, um piscar de olhos e a estrutura de pedra ficou no passado. Não olhei para trás, mas soube que finalmente havia saído.
ههههه
Já no final do primeiro dia de viagem podia-se notar que não estávamos mais no Sul somente pela visão. As ruas eram todas pavimentadas e organizadas depois que entramos no Norte, os pinheiros e as fábricas foram substituídas por prédios e grandes casas luxuosas. O cheiro também era diferente, marcado por especiarias e uma mistura de perfumes, completamente diferente da lama e a madeira que eu estava acostumada. As pessoas não pareciam estar sempre sujas e cansadas. Elas andavam pelas calçadas com trajes elegantes em direção a teatros, praças enormes e butiques de luxo.
Com uma compreensão quase tola me dei conta que até poderia ter sangue nobre mas não era um deles, nunca seria.
Um dia antes de chegarmos na capital Owen me avisou que iríamos parar em um pequeno chalé no meio do caminho, para descansar e também conversar com mais tranquilidade. O mesmo repetia com frequência que eu não poderia chegar alheia da situação.
— Olá Victoria, sente-se por favor! — suas mãos indicaram a cadeira vazia na frente.
Assim que chegamos no local anunciado por Owen um guarda o acompanhou até os seus aposentos e o outro até os meus. Foi diferente e até divertido ser escoltada por um estranho musculoso e alto, embora uma parte de mim achasse muito firmemente que era desnecessário tentar proteger alguém sem nada a oferecer.
Chegando no quarto do chalé, o guardou firmou posição do lado de fora da porta e eu entrei, aproveitando para tomar um banho relaxante na banheira com água quente que ansiava para que eu a usasse. A sensação me trouxe lucidez ao porquê dos nobres viverem com uma leveza no rosto. A experiência de sentir todo o peso indo embora do próprio corpo era única, uma intensa sensação que levava até os mais pesados pensamentos para bem longe da realidade. Embora infelizmente eu não pudesse perder muito do meu tempo naquele banho, tinha um jantar para comparecer. Me vesti rapidamente, descendo em seguida com a companhia do guarda à espreita.
A sala de jantar do chalé estava vazia e silenciosa quando entrei, tudo relativamente monótono, exceto pela presença de Owen.
— Desculpa-me pelo o atraso, perdi a noção do tempo.. — coloquei assim que ganhei espaço na sua visão.
O pequeno saguão do local não tinha nada de muito extravagante, mas aparentava ter uma áurea muito agradável e aconchegante.
— Sem problemas, imagino que deva estar cansada. A viagem é longa e muito cansativa.. — o mesmo suspirou profundamente. — Victoria tem alguns pontos que preciso ressaltar e quero que me escute com muita atenção, tudo o que eu disser aqui vai implicar na forma como as pessoas vão te ver e acredite em mim quando digo que nesse mundo que entrará, aparência é tudo.
Assenti, sentindo um pequeno calafrio percorrer minha coluna em um raio potente que descia sobre cada fragmento do meu corpo. Será que eu estava mesmo pronta para o que for que acontecesse a partir daquele momento? Tentei me convencer de que sim, porque embora a resposta fosse não. Aquilo não tinha mais volta.
Chegamos na capital em uma manhã enevoada, assim que abri a cortina e olhei para o ambiente externo nos vi passando por um extenso caminho que levava para os imensos portões escuros e prata de Vêrmenia.
Meus olhos ficaram atentos a cada novo mínimo detalhe que tinha naquele lugar, de início guardas reais em um belo uniforme preto com um círculo cinza em volta de uma flor negra que representa a dinastia Ferro nos encontraram, aquela era a minha dinastia. Os mesmos faziam como o milorde havia me dito que fariam na noite anterior, verificaram a carruagem e logo nos permitiram adentrar a cidade, notei que haviam vários deles monitorando a entrada e saída de pessoas daquele lugar com bastante restrição e cautela.
A noção de onde realmente estávamos veio cerca de alguns minutos depois quando meus olhos notaram a presença de casas,prédios, lojas e muitas, muitas pessoas, meu coração acelerava-se a cada nova descoberta que meus olhos faziam. Os vários vestidos encheram meus olhos de brilho. No sul só usávamos vestidos uma ou duas vezes no ano em ocasiões como a colheita e aniversário, os mesmos eram uma fortuna, um sonho muito distante do meu bolso e dos meus olhos.
— Victoria, olhe pra frente, aquele é o seu novo lar.
O milorde parecia animado com as minhas reações mas realmente o vi ficar estático quando me deparei com o exuberante castelo do qual nos aproximávamos. O mesmo sorriu e voltou a se concentrar nos papéis sobre seu colo quando o sol atravessou a janela e iluminou minhas mãos.
Um longo e belo caminho de pedras criava uma linha entre o bosque que ingressamos.
As árvores altas e fechadas pareciam engolir a estrada por ambos os lados e, conforme o veículo cortava o seu meio e ganhava aproximação dos portões a visão do palácio entrava em posição.
Me lembrei do que Owen disse sobre aquele lugar, que antes o castelo tinha uma ligação interna com o bosque, mas depois do ataque eles fecharam todos os caminhos com exceção daquela na esperança de isolar o castelo e a floresta. Aquela extensão magnificamente verde agora era só uma lembrança sombria de um passado sangrento. Fiquei razoavelmente desolada por não poder ter contado com a natureza, eu realmente amava isso e aquele lugar parecia ser lindo para explorar, mas era só isso. Uma beleza perigosa que ajudou os rebeldes a atacarem, e que não poderia mais ser vista.
Assim que o trajeto de pedras findou, guardas presentes em duas grandes torres nos muros do palácio fizeram algum tipo de sinal com os outros guardas que estavam conosco e então, abriram os portões, mil vezes mais belos do que os da entrada da cidade, com diversos desenhos em prata pura. Estremeci quando notei o palácio de perto, por um momento senti minhas mãos trêmulas e minha garganta seca, pisquei algumas vezes torcendo para me recompor e continuar admirando à vista.
Um jardim repleto de flores vermelhas ficava na entrada dos portões, de acordo com o Lorde depois dos ataques aquele lugar havia se tornado uma fortaleza imbatível com uma segurança inigualável. Sua extensão era tão grande que meus olhos não encontram o fim do terreno, em volta do castelo haviam infinitos e diversos tipos de jardins, além de dois grandes lagos, uma capela e um estábulo, também presenciei enormes espaços onde cavalos eram treinados, e algumas pessoas ao alto de um morro jogavam alguma coisa que eu não conhecia, aquele lugar era duas vezes maior do que Golden Fox, sem contar o imenso castelo de Ferro, assim como muitos dos detalhes da cidade ele era rodeado por prata, pintado por cinza e cheio de janelas de vidro negro em toda a sua extensão, cinco grandes torres o percorriam e o tornavam grandioso, belo, assustador.
As cinco torres foram construídas séculos atrás pelos primeiros Campbell a governarem, a história diz que o grande Rei Reizer as construirá em homenagem às suas três filhas, o filho e a esposa, todos com poderes das sombras, mas nenhum deles sabia exatamente como controlar a força daquela magia, e isto os tornavam perigosos, uma ameaça para sua própria nação, portando o mesmo construirá as mais altas torres já vistas para serem o abrigo de seus temíveis e mágicos poderes, admito gostar de histórias antigas sobre Allen e com certeza minhas favoritas eram as da família de Reizer, os últimos Campbells a terem poderes em seus sangues escuros.
Senti minha perna vacilar quando desci do veículo, para minha sorte um dos guardas me ofereceu sua mão, o que fez meu tremor passar imperceptível.
— Está pronta?
Owen me ofereceu seu antebraço e gentilmente me convidou para entrar no lugar, mesmo assustada busquei meu melhor sorriso e assenti.
Quando guardas abriram às imensas portas negras revelando o interior do palácio o meu corpo inteiro queimou, escadarias enormes rodeadas por janelas e diversos lustres dourados ocuparam meu campo de visão, o piso octogonal branco e negro brilhou à luz do Poente, dando visibilidade as duas saídas a direita e as três da esquerda que revelavam extensos corredores, me peguei imaginando para onde aquelas saídas levariam.
Uma torrente vazia retirou todos os meus pensamentos do transe quando figuras elegantes desceram a escada principal. Os quatro poderosos conselheiros se alinhando firmemente, me definindo como presa.