capítulo 5
"Diga-me agora, quem você vê quando olha no espelho? Um Ato, uma Verdade, ou mais uma mentira?"
V I C T O R I A
Minha mãe tinha asma desde a infância, e sofreu quando eu tinha apenas cinco anos de um forte surto de pneumonia que para quem tem alguma doença respiratória — que era o seu caso — poderia ser ainda mais fatal. As condições em Golden Fox para a saúde eram precárias, nada além do básico para a população, o que me faz crer que ela não havia dito muitas chances, afinal, a evolução do seu quadro foi tão rápida e comprometedora que antes da família considerar o Norte como a sua salvação, Amberly já estava morta.
Meu pai desde então entrou em uma profunda depressão, na época eu não enxergava exatamente como ele estava mal e calejado com a dor que corroeu os seus ossos tão profundamente. Mas hoje, mais velha e ciente, eu tinha noção de que ele desfaleceu aos poucos com a morte de sua amada. O que, em consequência de oito meses, também trouxe-lhe a sua. Seis anos. Era essa a idade que eu tinha quando me tornei órfã e meus tios, mais por falta de opção do que por escolha, me acolheram.
Desde então eu aprendi que meus pais não só morreram fisicamente mas também tinham que morrer dentro de mim, eu não os conheço, não ouvi nada sobre eles, ou sobre quem foram de fato. As lembranças deles, seus rostos e o som de suas vozes desapareceram com o passar do tempo. Eles foram mantidos para sempre no meu passado, meros fantasmas de quem eram antes. Ideais de quem eu gostaria que fossem, que nunca serão.
O pouco que eu sabia era devido a mãe de Mark, ou meu Tio Germano que vez ou outra quando muito aéreo contava-me relatos sobre eles, detalhes sinuosos, quase insignificantes, pedaços minúsculos de ideias em que eu me agarrava. Obviamente sempre sem a aceitação de minha tia, sei que para ela era difícil lidar com a perda de seu único irmão e ainda por cima ter que conviver com a lembrança viva dele todos os dias perambulando pelos corredores de sua casa. A consequência de duas pessoas com fins trágicos de pé, brilhante e com detalhes vívidos.
Ainda assim ela havia me criado independente das circunstâncias e eu tinha que ser grata, certo? Bom acho que sim. Pelo menos era o que eu costumava dizer para mim mesma antes de descobrir que tudo que eu acreditei, vivi, e me tornei era uma grande mentira, afinal quem era a minha família?
Quem eu era?
Admito não ser a pessoa mais fácil de se lidar e não culpo ninguém à minha volta por isso, ninguém além de mim mesma tem culpa do que me tornei, mas eu acredito bem lá no fundo, onde guardo resquícios de egoísmo, que não mereço isso. Não mereço sentir essa dor que invade todo o meu ser e me transborda com o seu vazio. Não é uma dor de medo, ou de raiva. Era decepção, e essa palavra tem um poder enorme de destruir você.
— Toria querida quero que nos perdoe, Eliz tem razão! Sentimos muito, de verdade.. — Germano disse quando finalmente alcançou meu olhar submerso. Não chorei, não gritei, nem me movi, meu corpo estava intacto, dormente e anestesiado.
— Toria fale alguma coisa pelo amor de Deus, você está me enlouquecendo! — Eliz disse entre um turbilhão de mágoa e rancor. Imagino o quão doloroso foi para ela recordar da morte de seu irmão e ter que pronunciar tudo isso em voz alta, não somente para mim, mas também para aquela parte si mesma que se negava a acreditar na verdade.
Mas a realidade estava bem ali diante de nós. Antes uma película frágil e transparente, agora uma parede sólida e firme. Totalmente palpável e indestrutível. Poderosa e real.
Suas mãos tentavam controlar as lágrimas teimosas que escorriam pela sua face, respirei fundo buscando o meu autocontrole, não importava o que eu estivesse sentindo, Eliz não teria estrutura para me ver enlouquecer naquele momento.
— Eu não os culpo, tiveram seus motivos em não me contar. — Depois de minutos em silêncio foi o máximo que consegui formular. O gesto mais altruísta que deixei escapar dos meus lábios, talvez o único.
Meus tios se entreolharam confusos, depois repousaram a mesma confusão sobre mim. Não era exatamente aquela reação que eles esperavam, repeti mentalmente para mim mesma que estava tudo bem e delicadamente devolvi a fotografia para minha tia, puxei toda a confusão que havia dentro de mim e a transformei em ternura para ambos, os acalmei e antes que pudessem notar me retirei da cozinha e fui de encontro a Mark, que estava encostado na porta entreaberta que dividia os cômodos da cozinha e sala.
Ele estava com os braços cruzados, a pele dourada brilhava sobre a blusa surrada e suja de ferrugem. Seu olhar amendoado levantou, um meio sorriso fraco mostrando a covinha que ele detinha na bochecha esquerda.
— Tudo bem? — Seus olhos encontraram os meus, e um nó se alojou na minha garganta.
Eu não disse, mas assenti um não no entanto, porque era isso que bastava para ele ver.
Seu toque me alcançou sem perguntas, um abrigo contra a tempestade, somente o seu abraço foi o suficiente para anestesiar as minhas veias em erupção. Eu não poderia mentir para ele, não era simples como para meus tios. Porque era o Mark, a pessoa que mais me conhecia naquele mundo. Quem me ajudava sem eu precisar pedir, quem me acolheu e me mostrou o que significa ser uma família.
— Não Mark, não está! Mas não tem problema... — sussurrei ao pé de seu ouvido ainda com as bochechas encostadas no seu ombro. Seus braços fortes que enroscavam minha cintura pressionaram mais um pouco meu corpo quando respirei fundo. As veias na sua pele se sobressaindo com o ato.
— Anjo..
— Não precisa dizer nada.
Me soltei do seu toque, embora sua aproximação ainda trouxesse aquela aconchegante sensação de segurança para o meu coração.
— Guardar tanta coisa assim faz mal.
— Quando eu estiver pronta vou falar o que tiver pra dizer.
Mark Lennis tomou minha mão esquerda, seus dedos acariciando a pele do meu pulso, onde o começo de algumas cicatrizes finas e brancas se iniciavam, a pulseira marrom com pedrinhas douradas sem alto valor cobrindo duas delas, um presente do mesmo para o meu décimo quinto aniversário, desde então eu sempre a usava. Uma coisa tão bonita sobre as marcas de algo tão sombrio, aquilo ficaria marcado no meu corpo não importa quanto tempo passasse ou quantas coisas eu fizesse para tentar apagar o dia em que as fiz. Mark subiu seus olhos até meu rosto, sua imagem embaçada pela camada de água nos meus.
— Tudo bem. Vamos acertar as coisas, Toria, vamos dar um jeito.
Ele tinha medo que eu fizesse aquilo de novo. Eu sabia que tinha. Porque se daquela vez ele não tivesse me impedido, nós dois sabíamos que eu não teria voltado atrás.
— Eu prometo. — apertei seus dedos que estavam sob minha palma. Prometo que não vai acontecer de novo. — Preciso me deitar, desculpa.
Reuni forças para depositar um beijo de despedida na covinha em sua bochecha, como costumava fazer quando éramos crianças. Ele assentiu silenciosamente, embora com preocupação, Mark compreendia. Subi as escadas depois que Lennis saiu.
Não olhei para trás. Não abri a porta do quarto. Não respondi ao chamado de Germano ou a insistência de Eliz.
Me deitei na pequena cama e embrulhei meu corpo trêmulo no cobertor, fiquei imóvel por uma grande quantidade de tempo, esperando esperançosamente que as coisas se resolvessem sozinhas. Enquanto repassava detalhes da minha vida, como se em todo aquele tempo eu tivesse deixado passar algo.Minha cabeça doía e sei que deveria estar pensando em o que fazer mais tudo o que meu cérebro pensava era em água.
Então desci as escadas e enchi um copo com o líquido, logo o bebi e voltei para meu quarto, fechei as janelas e caminhei em direção do receptor de luz com a ideia de apagá-lo, todavia meu olhar se encontrou com o de um papel no chão, o recolhi e identifiquei que era a carta que os oficiais haviam me entregado mais cedo. Antes ela era irrelevante mas agora, bem agora eu não tinha nada a perder, as coisas não poderiam ficar piores.
Então me sentei na cama e abri com cautela o papel desgastado, retirei do mesmo uma folha escrita com uma letra incrivelmente bonita e elegante. Respirei fundo e comecei a devorar as palavras;
"Querido irmão,
primeiramente queria lhe dar os parabéns pela chegada de seu segundo filho, uma garota pelo que sei. Tal informação chegou ao meu encontro e me senti imensamente feliz por você, filhos são bençãos disso eu sei, Victoria acabou de completar seu quinto ano de vida e ela tem os olhos da mamãe, azuis como o mar, e sua determinação e personalidade forte me lembram o papai, ela é tão corajosa, você a adoraria sem dúvidas.
Mas infelizmente não trago somente boas notícias irmão, estou doente, muito doente e não sei quanto tempo de vida ainda me resta, por isso a única coisa que lhe peço é que quando eu venha a falecer e caso Sebastian não suporte criá-la, que você a cuide e a ame por mim.
No fundo sempre quis que ela tivesse um pouco da nossa infância, com as histórias de tia Amélia e as idas aos teatros. Os passeios por Vêrmenia e a patinação no gelo que sempre fazíamos quando o inverno deixava aquela crosta no lago do palácio. Eu amo minha vida, mas temo todos os dias que ela passe pelo o que Sebastian passou, a fome, a falta de educação, e as dificuldades.
Quero que faça esta última coisa pela minha pessoa, sua irmã, seu sangue, a mulher que lhe deu tudo aquilo que você sempre quis, e não me arrependo, sei que se tornou um governante melhor do que eu jamais poderia ser. Mas também sei o preço que paguei por negar isto, sou uma sem nome, meu sangue não tem importância onde vivo e nem meus conhecimentos em estratégias e liderança valem de algo aqui.
Ainda assim, essa foi a minha escolha, e sou feliz com ela. Só peço para que não deixe Victoria pagar pelas escolhas que fiz. Essa foi a vida que eu escolhi ter, não ela, meu único desejo é que assim como eu, minha filha tenha a opção de escolha. Cuide da nossa linhagem, os últimos escuros, com amor de sua irmã,
Amberly."