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capítulo 4

"Todo o universo conspirou para que eu chegasse até você."

M A R K

A mãe de Toria morreu quando ela tinha cinco anos, oito meses depois o pai também se foi. Minha mãe dizia que Sebastian amava tanto Amberly que não suportou viver num mundo em que ela não existisse. Na época eu não compreendia o que era aquele amor tão avassalador; quando você se apaixona por alguém ao ponto de suas almas se unirem. Não entendia na época. Mas depois, eu soube.

Certa manhã eu estava passando de bicicleta em frente a casa de Eliz e Germano quando a vi varrendo a varanda.

Toria usava um vestido de morim azul com saias flutuantes que varriam o chão imaculado, enquanto toda a parte da frente contava com a proteção de um enorme avental branco engomado, que dava a volta em torno do pescoço e se amarrava à altura dos rins num laço firme, perfeito. Os cabelos escuros de Victoria estavam soltos em ondas fechadas , mas eu sabia que à luz do sol o cabelo dela acenderia como o luar, tão negros que brilhariam.

Já havia feito dois anos desde a partida de seu pai e quase três da mãe, mas ela nunca mais voltou a ser a mesma. Sempre estava cabisbaixa pelos cantos.

E para piorar Eliz a maltratava. Victoria não precisava me dizer, eu sabia, mesmo naquela época. A mulher culpava a sobrinha pela morte do irmão, fazendo-a pagar por toda a sua dor.

— Opa senhora Eliz, tudo bem? — fui descendo da bicicleta, caminhando até a tia de Toria que catava as folhas do quintal. — Minha mãe mandou eu trazer essa torta para a senhora. — estendi a travessa para a mulher que sorriu desconfiada. Victoria me analisava no fundo, os olhinhos azuis brilhando enquanto mantinha a boca fechada e as mãos na vassoura..

— Agradeça a ela por mim, Mark. — Eliz bateu no meu ombro em sinal de gratidão pegando a travessa coberta pelo pano quadriculado, embora as suas palavras tenham sido ditas num tom mais objetivo do que agradecido. Toria me dizia às vezes, que sentia uma grande vontade de ouvir a tia rir, mas Eliz nunca sorria.

Ela era a irmã mais nova de Sebastian, uma mulher muito bonita para sua idade, muito loira e miúda, de altura inferior à média, mas de rosto duro e severo. Eu costumava pensar que ela deveria viver na cozinha e no quintal, porque era onde eu sempre a via. Aquela altura suas botas pretas e rijas já deveriam ter traçado um caminho circular do fogão à lavanderia, da lavanderia à horta, da horta aos varais e dos varais de volta ao fogão. Era uma mulher calada, desafeita à conversação espontânea. Ninguém nunca soube o que ela pensava. Na vizinhança os mais velhos diziam que ela era seca, por dentro e por fora, tão cheia de amargor que nunca conseguiu gerar um filho, e nem o faria.

— Sabe.. — a chamei de volta no impulso. — Minha mãe perguntou se poderia emprestar Victoria essa tarde, é que eu e meus irmãos vamos ajudar Seu André na colheita e ela precisa de ajuda com as guloseimas.

A mulher parou no meio dos degraus de madeira que a levariam para casa. Seu olhar estreito oscila entre Toria e eu, depois suas mãos seguram a barra da saia flutuante.

— Pode sim, é bom que assim essa garota aprende a fazer alguma coisa que preste com a sua mãe. Ela não sabe nem varrer direito. — disse a mulher em um tom cansado de decepção. Então entrou, sem olhar para trás.

Toria desceu os degraus chegando até a minha direção com as mãozinhas presas uma na outra. Caminhamos juntos até a direção da bicicleta jogada perto da cerca.

— Sua mãe pediu mesmo para que eu a ajudasse, Mark?

Levei o indicador à boca, pedindo silêncio, depois peguei a bicicleta e cochichei em seu ouvido.

— Não. Fui eu que pedi para minha mãe fazer a torta e perguntei se poderia chamá-la para passar o dia lá em casa, ela deixou. Eu sei que hoje faz três anos que sua mãe se foi Toria. — respirei fundo. — Mas não fala nada não.

Ela prometeu sem hesitar e continuamos a subir o morro, ambas as minhas mãos empurrando a bicicleta velha conforme caminhávamos rumo a minha fazenda.

— Eu sei que ela te maltrata, Toria. — Olhei de relance para as marcas roxas que ela tentava esconder no braço. — Por isso que vim. Ainda mais hoje, você merece uma folga.

Naquele dia, depois de ajudar Seu André na colheita, eu voltei para casa e Toria estava sorrindo, ajudando mamãe a montar os bolinhos que haviam feito na cozinha. Minha mãe conversou com Eliz e acabou convencendo a mulher a deixar Victoria passar o final de semana conosco, e foi incrível. Brincamos até tarde da noite e comemos muitas das guloseimas que minha mãe fez, ajudamos meus irmãos a fazerem suas tarefas e andamos de cavalo. Eu nunca tinha visto ela tão feliz quanto naqueles dias.

Eu era o mais velho de três irmãos. Meu pai sempre viajava trabalhando nas fábricas dentro das florestas para conseguir dinheiro suficiente e, enquanto o mesmo estava fora, eu era o homem da casa, meu pai dizia que eu deveria cuidar da minha mãe, dos meus irmãos e deveria cuidar de Victoria.

Eu esperava por Toria na porta da Fazenda todos os dias para irmos juntos a escola. Brincávamos sempre que possível, enchendo nossas roupas com frutinhas silvestres que cantávamos da floresta. Com a minha mãe íamos na cachoeira banhar e depois ela fazia sanduíches frescos para lancharmos. Toria era sempre geniosa, divertida e sorridente. Mas eu via o seu olhar, as marcas vermelhas e roxas dos golpes que levava da tia, eu sabia das vezes em que ela ia pro celeiro chorar escondida, com saudade dos pais. Saudade de uma vida que nunca mais poderia ter.

Com o tempo ela aprendeu a lidar com essa dor, com o desprezo dos tios. Ela costumava me dizer que ficaria bem, enquanto tivesse a mim. Mas ela estava enganada quanto a isso, Toria ficaria bem de qualquer jeito, ela era forte, resiliente e me ensinava todos os dias sobre felicidade; que ela poderia ser encontrada mesmo na escuridão.

Era Victoria que sempre seria o meu anjo, a pessoa que minha alma escolheu para se unir.

ههههه

Atualmente.

O silêncio era iminente na cozinha, o tio de Toria estava calado na mesa, esperando pela esposa assim como Victoria, vez ou outra nossos olhares se cruzavam e eu poderia notar que mesmo ela negando, ainda estava com medo. Suas íris entregavam a ansiedade e o temor. Um misto de emoções perigosas perdidas na intensidade do azul.

O semblante estava tenso e nitidamente perdido quando seu queixo levantou e ela me lançou um sorriso frouxo, uma demonstração singela de que estava bem.

"Olhe pra mim Toria, eu posso voar." Ergui os meus pequenos bracinhos para o Mundo, enquanto o cavalo disparava pelos campos verdejantes com a minha melhor amiga bem atrás de mim. "Tente isso" Me lembro de ter dito. "Eu não posso, Mark. Não posso voar..".Aquela era a sua maior qualidade e o seu pior defeito; ser incrivelmente forte e terrivelmente cruel consigo mesma.

Era difícil qualquer um de nós não crescer com tamanho peso sobre o peito. Ainda quando crianças, um selo era colocado sobre nós, sulistas. A marca do abate. Isso significava não apenas o lugar de nossa origem, mas o destino de nossas vidas. O futuro cruel e mastigante que esperava à nossa frente. A maioria, quando não convocada para guarda, ficava sem opções a não ser ir para as fábricas, a única forma de trabalho rentável que garantiria comida sobre nossas mesas.

Tinham noites em que eu pensava sobre a guarda, o mesmo pesadelo frequente dos soldados falando o meu nome na praça de Golden Fox. Mark Lennis, convocado. Mamãe chorava com meus irmãos e Victoria ficava sozinha. Em alguns meses o meu maior medo poderia ser concretizado, o período de convocação era um fato inegável, uma marca no meu futuro que me esperava ansiosamente. E talvez, ela ir para a Capital fosse a melhor escolha, um presente. Assim, Toria nunca teria que me ver ser levado, e seria feliz, longe desse lugar que nunca foi o bastante, nunca seria.

Alguns passos começam a retumbar no fundo da minha mente, um som agudo que me fez retornar a realidade, os barulhos indicavam que finalmente Eliz havia voltado, agradeci mentalmente por ela ter surgido, quebrando aquele clima tenso que havia se formado entre nós.

Eliz coça a garganta, as mãos se envolvendo na caixa deteriorada pelo tempo conforme o corpo ganha espaço no ambiente.

— Toria.. — a voz dela sai pesada como uma sentença. — antes de qualquer coisa, tudo o que eu te contar aqui eu não fiz antes porque eu queria te proteger, queria o seu bem. Sua segurança sempre foi prioridade para mim e para Germano. Peço para que guarde essas palavras e não se esqueça delas, não importa o que aconteça..

Eliz Megan pronunciou mas não recebeu nenhuma resposta de Toria, ou de qualquer um de nós, mesmo assim a mesma continuou, firme e sem se opor, sentando em uma cadeira e abrindo a pequena caixa de madeira repousada em suas mãos trêmulas. Com cuidado ela retirou de lá uma foto que colocou nas mãos da sobrinha, Toria inicialmente recusou, mas após um tempo entre brigas silenciosas e olhares desafiantes, a garota pegou a fotografia para si.

— Este é seu pai quando era mais novo, com a roupa de cozinheiro. — Toria levantou os olhos, a mão mal se mexendo conforme os dedos acariciavam a imagem com carinho. Como se ela de alguma forma pudesse quebrar o tempo e tocá-lo. — Pois é, Sebastian Megan era um cozinheiro, na verdade o melhor que eu já conheci.. — Eliz sorriu com a lembrança de seu irmão. Um brilho no olhar tão puro que era inevitável não saber o tamanho de seu apreço. Talvez seu único resquício de bondade seja reservado à ele.

— Por ser tão bom ele foi convocado para ir ao Norte, foi quase um milagre o seu talento não ter sido desperdiçado mas fábricas do Sul, ou na guarda. Uma arte que teria morrido com ele e a falta de oportunidade do nosso lugar. Na época eu me lembro de pensar que fora aquilo que o salvou, sua dedicação e o seu dom. O salvaram.

Eliz oscilou pela primeira vez desde que a conheci. Eu a vi pestanejar.

— Ele trabalhou em cidades nortenhas até juntar dinheiro suficiente para ir à Vêrmenia. Junto a um grupo de amigos eles montaram um restaurante na capital, flor do mar. Me lembro de ler na sua carta quando me contou. Foi um sucesso rápido, tão rápido e lucrativo que recebeu atenção mesmo dos mais nobres. Lordes, Duques e alguém do palácio. Os boatos correram e o rei convocou um bufê da flor do Mar para uma de suas festividades. O sucesso foi tão grande que aquilo virou um compromisso recorrente para todos os grandes eventos no castelo.

Não só eu, mas Toria e Germano, notamos sua respiração falhar e a mesma vacilar com suas palavras, o marido se levantou e calmamente repousou sua mão sobre o ombro de sua esposa a fazendo instantaneamente se acalmar e mesmo que com pesar, continuar a sua fala.

— Foi em uma dessas festas que ele conheceu sua mãe, Amberly Campbell, ela não era.. ela nunca foi uma simples costureira como você acreditava, ela era da realeza uma princesa criada sua vida toda para se tornar rainha, mas ela se apaixonou... se apaixonou de verdade o amor deles era único e verdadeiro e foi através desse amor irrefreável e até mesmo impulsivo que nasceu você. E também foi por ele que ela renegou todo o seu destino, linhagem, sua herança, seu nome e família por você, e por Sebastian. Ela sempre soube que jamais poderia ter os dois; a coroa e ele. Então Amberly fez a sua escolha. Ela abdicou do seu cargo como herdeira e o deu para Freen, que ao completar sua maioridade assumiu o lugar como um Ferro no trono. Obviamente esse escândalo foi abafado, se não fosse por Sebastian ter se casado com sua mãe, eu jamais saberia que um dia Allen quase teve uma rainha ao invés de um Rei.

Eliz fecha os olhos com força. Sua expressão lutando contra uma mágoa antiga; Amberly. Ela deveria achar que a mulher fora a perdição do irmão. O começo e o fim de Sebastian. E Victoria era a cópia dela, era a sua mágoa viva debaixo de seu próprio teto.

— Eles viveram de forma simples, mas meu irmão me dizia que eram felizes, muito felizes, sua mãe queria isso; Viver feliz com Sebastian e com você ao lado...Mas sua doença a impediu de continuar sua trajetória, todos os sonhos apaixonantes e as promessas de amor, todo o sacrifício e dor que causaram para ficarem juntos no fim, não adiantou.. — a mulher soltou um sorriso seco, entrecortado por uma fungada de choro. — Amberly costuma dizer que tudo tinha valido a pena. E eu deitei todas as noites na minha cama desde então, imaginando que não valerá o bastante.

Assim como um reflexo, um movimento rápido me fez levar as mãos até a cabeça. Isso tudo era loucura! Uma grande e terrível loucura! Tentei me recompor e respirar fundo antes de olhar para Toria. Meus olhos procuram pelos seus em uma tentativa clemente por respostas, desesperados eles buscam ler e me preparar para o que viria depois, mas ao contrário do que eu esperava sua reação para tudo aquilo foi um completo vazio. Victoria continuava da mesma forma de antes, imóvel com a foto em mãos. Banhada por um olhar que eu nunca havia visto antes, sentimentos completamente indecifráveis e agonizantes.

No fundo eu sabia que havia prometido juntar os seus cacos, mas era real, naquele instante; A verdade vinha com um poder: Nada poderia ser consertado depois daquilo.

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