Capítulo 3 - Adelle: a garota renascida.
A família Cervantes estava ansiosa com a possibilidade de se encontrar um doador que fosse compatível com as características genéticas e de tipagem sanguínea da jovem Adelle, uma garota de dezoito anos, filha única do rico casal Júlio e Rebeca Cervantes, influentes empresários do ramo de negócios agropecuários.
Adelle sofria de uma rara doença congênita que afetara seus rins, já nos seus primeiros anos de vida, agravando-se com o passar dos anos. Somente um transplante poderia dar a ela uma vida normal.
Júlio e Rebeca não mediam esforços para viabilizar um transplante com a devida urgência, ao ponto de oferecerem dinheiro para quem pudesse doar um órgão, mesmo em vida, ou em último caso, mediante o falecimento de alguém.
Com o agravamento da doença, a garota passava a maior parte do tempo hospitalizada, recebendo tratamentos paliativos, até conseguir obter um novo órgão e voltar a ter uma vida normal, maior sonho da família Cervantes.
Entretanto, as coisas não pareciam muito fácei, em razão da escassez de doadores e da alta demanda de pacientes aguardando o tão sonhado transplante, motivo de angústia das muitas famílias que dependem desse tipo de procedimento para salvar a vida de um ente querido, muitos destes, sem poder contar com facilidades econômicas para bancar os altos custos da vida de um transplantado por vários anos.
A família Cervantes ao contrário não via isso como um problema, em razão de suas posses, motivo pelo qual valiam-se de campanhas que patrocinavam com o intuito de conseguir doadores.
Sem muto escrúpulo faziam anúncios em canais de TV, jornais de grande circulação e internet, com o objetivo de recrutarem doadores em potencial, obviamente, respeitando algumas exigências da família na busca pelo doador ideal, vivo ou morto.
Com esse intuito empenharam uma força tarefa que fosse capaz de identificar pessoas com perfil sanguíneo e genético que mais se aproximasse das características desejadas para Adelle.
A cada notícia de acidente grave com vítimas fatais, homicídios ou qualquer outra causa que determinasse a morte cerebral de alguém, sistemas interligados em todo o país indicavam os doadores em potencial. Esses passariam a ser analisados pela família Cervantes, visando o veredito final.
Meses se passaram sem obter um doador com as características desejadas. O tempo estava cada vez mais curto e angustiante para os pais de Adelle. Eles teriam de conseguir um doador de qualquer maneira, a qualquer custo, e assim iriam proceder.
Júlio e Rebeca estabeleceram um plano, a partir do cadastro de doadores que haviam manifestado interesse em fazer doação de órgãos, mediante o pagamento de uma considerável soma em dinheiro, tanto ao doador, caso o órgão pudesse ser doado em vida, quanto para a família daquele que perdesse a vida ou tivesse morte cerebral diagnosticada.
Os contratos com os possíveis candidatos eram formalizados na presença de testemunhas, com a antecipação de uma pequena parte do valor que seria pago pelo órgão a ser doado, a título de sinal de negócio, não superior a dez por cento do valor firmado entre as partes.
Um dos candidatos se encaixava perfeitamente entre as características pretendidas pela família Cervantes e vinha sendo monitorado há alguns meses.
Tratava-se de um jovem, também de dezoito anos, de nome Átila, filho de Denise, uma mãe solteira que trabalhava com serviços domésticos para sustentar a casa e bancar os estudos do filho, cujo sonho era fazer medicina e tornar-se cirurgião.
Denise ficara bastante entusiasmada com a ajuda financeira recebida da família Cervantes, como um sinal do negócio de venda de um dos rins de seu filho, caso ele perdesse a vida ou tivesse morte cerebral diagnosticada.
Os valores desembolsados pelos Cervantes eram proporcionais ao grau de interesse em determinado doador, cujo valor aumentava consideravelmente em razão da preferência demonstrada pelo casal.
Esse era o caso de Átila, cujo perfil se ajustava perfeitamente ao desejado por Júlio e Rebeca. Átila estava na mira para, enfim, ser o grande doador para a filha Adelle. E tudo seria feito para o processo de doação ter o fluxo mais rápido possível.
***
Átila deixou o colégio naquela manhã de outono após ter sido bem sucedido nas provas escolares. Era um rapaz dedicado e estudioso, com o firme propósito de tornar-se médico.
Ao sair do colégio encontrou alguns amigos da escola e falou de sua felicidade pelo bom desempenho na avaliação escolar. De tão estudioso, dedicado e belo, estava sempre rodeado por garotas interessadas nele.
Despediu-se dos amigos, das garotas e deixou o colégio montado em sua bicicleta, presente da mãe em seu último aniversário, comprada com parte do dinheiro oriundo da negociação com o casal Cervantes.
Átila montou em sua bicicleta e iniciou o percurso de volta para a casa, cruzando uma movimentada avenida que dava acesso ao colégio que estudava.
Seus amigos e amigas o observaram tomando a avenida. Acenaram a ele com um breve “até logo”, até serem surpreendidos por algo terrível.
Átila fora atingido por um automóvel trafegando na contramão e em alta velocidade, chocando-se com a bicicleta e lançando o corpo do jovem estudante muitos metros à frente, para cair ao chão desacordado e com um grave traumatismo na cabeça.
— Dona Denise, eu sou o doutor Ramom, chefe da equipe médica que está cuidando do seu filho.
— Como ele está doutor?
— Bem, o estado de saúde dele é crítico. Houve lesão encefálica, em razão do acidente.
— Ele vai sobreviver?
— O que posso dizer é com base nos exames que foram realizados, obedecendo os critérios estabelecidos por resolução de lei federal, seguido de todos os protocolos exigidos para verificação.
— Que protocolos são esses, doutor?
— Bem, ele já está hospitalizado há mais de 6 horas, a temperatura corporal é superior a 35º C, a pressão arterial média acima de 65 mmHg e saturação arterial superior a 94 %, além de outros aspectos neurológicos que estão sem resposta.
— E o que isso significa?
— Infelizmente, seu filho está com o diagnóstico de morte encefálica. Teremos de desligar os aparelhos — A família pretende fazer a doação de órgãos?
A notícia abalou Denise, ante a iminência de perda de seu filho. Contudo, havia chegado a hora de se beneficiar do montante a que teria direito em razão da venda dos órgãos de seu filho para a família Cervantes.
Ao mesmo instante que confirmara ao médico a intenção de doar os órgãos de seu filho, o celular de Denise tocou. Era uma mensagem de áudio gravada pelos pais de Adelle, ratificando o pesar pela perda irreparável, porém, ressaltando que aquela tragédia familiar estava salvando uma vida, a vida de Adelle.
Denise agradeceu a mensagem, cientificando que os procedimentos para a retirada do órgão a ser transplantado já estaria sendo iniciado. Friamente, ela tratou de marcar um encontro com o casal Cervantes, para finalizar os acertos financeiros. Em poucas horas tudo estaria pronto para os procedimentos de transplante.
Alguns dias se passaram e Adelle já estava bem recuperada do transplante e começando a ter uma vida quase normal, em que pese algumas mudanças de ordem comportamental, observadas pela família.
Adelle não saía de seu quarto, tinha temperamento agressivo e mostrava-se bastante inquieta, dizendo frases sem nexo e acusando os seus pais de assassinato.
Num primeiro momento o casal entendeu ser algum trauma pós transplante, algum transtorno depressivo em razão dos períodos de debilitação de saúde que viveu.
Psicólogos foram contratados para iniciarem um acompanhamento terapêutico, além de serem prescritos medicamentos que pudessem acalmá-la, deixando-a sedada a maior parte do tempo possível.
— Bom dia minha filha, como você está princesa do papai? Espero que esteja bem e feliz. Você renasceu, já pode voltar a ter uma vida normal.
Adelle estava deitada, vestindo uma túnica branca. Olhou fixamente para seu pai e começou a gargalhar.
Júlio sorriu também, compartilhando da aparente alegria de sua filha. Aproximou-se para acariciar seu rosto e seus longos cabelos cor de mel.
Adelle continuou rindo e olhando fixamente para seu pai, enquanto ele acariciava seu rosto e seus cabelos. De súbito, ela levou sua mão até as mãos de seu pai e a segurou firme.
— Tire suas mãos de mim, assassino.
— Filha, sou seu pai. O que você está dizendo?
— Tire suas mãos de mim, saia daqui assassino.
Adelle começou a gritar histericamente, sob os olhares assustados de seu pai, quando Rebeca entrou no quarto.
— Júlio? Filha? O que está acontecendo?
— Assassina, vocês dois, assassinos, saiam daqui. Não quero ver a cara de vocês.
— Meu Deus, não estou entendendo, Júlio. O que ela quer dizer com isso?
— Eu sei lá. Ela tem estado sempre agressiva desde o transplante. Já contratamos psicólogos, psiquiatras e todo o tipo de terapeuta, mas, ela está cada vez mais agressiva.
— Filha, diz para mamãe, qual a razão dessa revolta? O que você está sentindo meu amor?
— Assassinos, saiam daqui ou eu mato vocês. Saiam!
Rebeca e Júlio deixaram o quarto bastante assustados, sem entender o que estaria acontecendo.
— Querido, ela deve estar sob efeito de medicamentos. Ela deve estar tendo alucinações. Você acha que devemos hospitalizá-la novamente?
— Sim, querida. Ela deve estar com algum tipo de transtorno comportamental. Precisamos acionar os médicos para que eles recomendem a internação. Assim, não pode ficar. Ela pode se tonar violenta.
— Ela já está violenta Júlio. Escute. Ela está gritando e quebrando as coisas no quarto. Ela parece possuída.
O casal Cervantes acionou rapidamente os médicos da família e foi dado o encaminhamento para nova hospitalização de Adelle. Dessa vez em um hospital psiquiátrico.
Adelle foi internada e em razão de seu transtorno comportamental passava a maior parte do tempo internada e em isolamento.
Na medida que os dias iam passando seu estado de saúde apenas piorava, agravado pelo excesso de medicamentos e por ser mantida em isolamento total. Em alguns raros momentos de calmaria era conduzida por enfermeiros para um banho de sol, nos jardins do hospital psiquiátrico.
Adelle apenas ria e não pronunciava qualquer palavra, além de alguns grunhidos parecidos com o grunhido de algum animal estressado.
A manhã era de sol e o céu estava límpido, com temperatura amena. Dois enfermeiros a conduziam para um passeio pelo jardim, em que um jardineiro realizava a poda de algumas plantas.
Do jardim, a levaram até o refeitório, onde algumas pessoas trabalhavam na preparação das refeições que seriam servidas no almoço dos internos.
A garota, em sua cadeira de rodas, apenas ria de tudo o que via. Ria das pessoas, ria das coisas e grunhia. Adelle, apenas deixou de rir quando se aproximou de um dos cozinheiros que manuseava uma faca, cortando alimentos.
A menina, com seus cabelos longos e olhos azuis, vestida com sua túnica branca, fixou seu olhar na faca que estava de posse do cozinheiro. Suas mãos começaram a tremer, seus olhos ficaram vermelhos, seu rosto branco empalideceu e com uma força descomunal levantou-se da cadeira, atacando os dois enfermeiros que a acompanhavam.
Em um golpe certeiro estrangulou os dois, sob os olhares assustados do cozinheiro que saiu correndo em desespero.
Adelle apossou-se da faca e passou a ameaçar a quem dela se aproximava. Em pouco tempo dirigiu-se ao muro que limitava os arredores do hospital e fugiu.
Completamente transtornada, empunhado uma faca, circulava pelas ruas, assustando a todos que a via e os ameaçando. Ninguém ousava se aproximar daquela fera, cujo rosto se assemelhava a uma figura bestial, de cabelos compridos, vestindo uma túnica branca e portando uma enorme faca.
***
Denise estava em casa, sua nova casa adquirida com o dinheiro recebido da venda de órgãos de seu filho. Sua vida havia mudado. Já não trabalhava mais de doméstica e passou a ser dona de uma agência de empregos para mães solteiras e em situação de vulnerabilidade.
Júlio e Denise haviam iniciado um romance, tão logo ocorrera o transplante de e planejavam viver juntos, desde que para isso dessem um fim em Rebeca.
— Meu amor, as coisas estão cada vez mais complicadas. Depois da internação de Adelle, Rebeca ficou insuportável e eu estou cada dia mais apaixonado por você. Rebeca passou a ser uma pedra em nosso sapato.
— Relaxa meu bem. Vamos dar um fim nela. Tudo tem o seu tempo.
— Você tem razão. Vamos cuidar disso. O fato é que estou completamente apaixonado por você. A morte de seu filho acabou unindo a nós dois. Coisas do destino.
— Verdade, meu bem. Minha vida mudou e tudo graças a você. Mas, tenho de lhe dizer uma coisa.
— Diga. Estou curioso.
— Átila não era meu filho.
— Não era seu filho? Como assim?
— Eu o havia adotado, já pensando na possibilidade de um dia poder vender seus órgãos. Eu havia recebido uma revelação.
— Que revelação?
— Foi em um sonho que tive. É uma história muito comprida. Depois eu te conto mais detalhes. Agora venha cá tesão. Faça comigo o que você mais gosta de fazer. Eu sou toda sua.
Denise e Júlio se entregaram ao prazer, enérgico, quente e voluptuoso. Dar um fim à vida de Rebeca vinha fazendo parte de seus planos e tudo seria uma questão de tempo.
A revelação de Denise quanto ao fato de ter adotado Átila não causara nenhum grande espanto a Júlio, assim como os detalhes a ele revelado, após uma jornada sexual quente e prazerosa.
— Gostei de seu espírito empreendedor e de sua visão de futuro ao adotar o menino. Fez tudo planejado. Isso significa que posso contar com você para planejarmos a grande viagem de Rebeca. Ah! Esqueci de dizer. Fiz uma apólice de seguros milionária para ela, sem ela saber, do qual somos beneficiários.
— Claro, meu bem. Vamos mandá-la para o quinto dos infernos. E logo.
— Sim. Daremos a ela o mesmo destino que demos a Átila. Um mero acidente.
— Somos loucos é verdade. Mas, quem, não é? Adelle? — o casal debochou da situação.
Riram e se beijaram, depois de bebericarem uma taça de vinho.
Alguns poucos quilômetros dali, Rebeca foi surpreendida com uma intimação para depor no caso do acidente que resultou na morte de Átila.
— O que significa isso?
— A senhora é suspeita da morte do garoto Átila. Imagens de câmeras confirmam que a senhora dirigia o carro na contramão, quando atropelou o rapaz e saiu sem prestar socorro.
— O carro é de meu marido. Ele não estava dirigindo porque havia bebido. Foi ele quem mandou entrar naquela via pela contramão. Foi ele quem me mandou acelerar o carro e sair sem prestar socorro.
— Isso a senhora vai explicar para os juízes no tribunal, afinal, a senhora estava dirigindo. Vamos conduzi-la à delegacia, pois sua prisão está decretada preventivamente. Lá a senhora vai prestar os esclarecimentos e permanecerá presa. Pode ligar para seus advogados.
***
Após o sexo ardente e as várias taças de vinho, Denise e Júlio adormeceram. O quarto estava todo revirado, com as coisas fora do lugar, muita bebida, drogas e peças de roupa espalhadas pelo chão.
Nada parecia interromper o sono do casal, exceto, a fúria de uma garota ensandecida com uma faca na mão, em sua túnica já não tão branca e bastante ensanguentada pelas vítimas que havia feito pelo caminho.
Adelle chegara à casa de Denise; com sua força sobrenatural, passou a quebrar tudo pela frente, até despertar suas duas próximas vítimas.
Com vários golpes certeiros desferidos sobre os corpos nus de Denise e Júlio, Adelle tirou-lhes a vida de modo brutal sem que pudessem esboçar qualquer reação. Enquanto desferia os golpes grunhia e gritava ao casal. “Assassinos”. Denise e Júlio tiveram suas cabeças decepadas pelos golpes de faca desferidos por Adelle.
Minutos depois policiais chegaram ao local do crime, a tempo de renderem Adelle, antes que empreendesse fuga para novos ataques.
Adelle foi sedada e encaminhada a uma viatura, devidamente desarmada e imobilizada. Sob os olhares de curiosos, o local do massacre foi cercado para exames periciais.
Policiais em suas viaturas e profissionais da imprensa, davam conta de uma serial killer foragida de um hospital psiquiátrico na cidade.
***
Rebeca, após encerrar seu depoimento foi conduzida a uma cela onde ficaria presa, juntamente com outras mulheres. Todas de cabeças raspadas e vestindo uniforme de presidiárias.
Algumas semanas haviam passado e Rebeca, ainda presa, aguardando julgamento, curtia seu banho de sol em um canto do presídio, isolada e desolada.
Através dos noticiários na TV, mostrados em um aparelho instalado em sua cela, soube da morte do marido e da amante, a então, mãe de Átila, aquele que havia salvado a vida de sua querida filha.
Tudo que aqui se faz aqui se paga, pensou, refletindo sobre o que ainda poderia lhe acontecer dali para frente.
Enquanto pensava e refletia, fumando um cigarro barato, viu surgir à sua frente, também vestida com uniforme de presidiária e com os cabelos raspados, ninguém menos que sua filha.
— Adelle? Filha? É você?
Adelle virou-se para trás e viu sua mãe sentada em uma pequena mureta. Não esboçou nenhuma reação. Apenas riu, balançando negativamente sua cabeça raspada. Fixando seus olhos azuis em sua mãe, apenas murmurou.
— Assassina. Saia daqui. Eu vou te matar.