Capítulo 2 - A casa dos sete espelhos.
Assim que eu cheguei em casa eu fui recebido com festa por minha esposa Jezebel. Ela mal me esperou sair do carro, me abraçou e me beijou de uma forma apaixonada, tão apaixonada que até estranhei. Não que nosso relacionamento conjugal tenha se esfriado, como pode ocorrer com muitos casais casados, cuja rotina muitas vezes se encarrega de determinar a monotonia da relação. Já estávamos juntos há uns dez anos; ainda plenos de energia sexual e no auge de nossa juventude, eu, um pouco mais velho, quarenta e dois anos, e ela com trinta anos de idade.
Havíamos nos mudado para nossa nova casa e estávamos bastante felizes, cuidando da decoração dos ambientes. Jezebel, arquiteta e decoradora de formação, adorava projetar ambientes temáticos nas casas de seus clientes e, evidentemente, estava empolgada com a tarefa de decorar o nosso novo lar.
Eu, enquanto administrador de empresas, apenas gerenciava a aplicação dos recursos financeiros naquele empreendimento domiciliar.
Eu havia acabado de chegar de meu escritório de consultoria empresarial. Embora leve meu nome, reúne outros sócios de profissões afins, como contador, advogado e economista, sendo eu, o sócio majoritário da empresa Olívio e Associados.
O beijo apaixonado, quente e longo que recebi foi retribuído na mesma forma e intensidade, bem na entrada da garagem da casa, uma bela casa, em um condomínio fechado de alto padrão sem as contenções de muros e de frente a uma pequena praça para uso dos moradores daquela quadra, em seus momentos de lazer.
O dia ainda estava claro naquele período de verão e o clima bastante quente, favorecendo às pessoas se vestirem mais à vontade, como era o caso de Jezebel vestindo apenas um top bem decotado e um short curtinho, realçando todo o seu belo corpo, fato que provocou em mim uma enorme excitação, permitindo-nos iniciar ali mesmo, sob os olhares de vizinhos mais curiosos, algumas preliminares que antecederiam um quente e fantasioso ato sexual, cujo clímax aconteceria em nossa cama.
— Uau! Por essa eu não esperava.
— O que você não esperava, amor?
— Ora, você me receber daquele jeito. Já fazia algum tempo que algo assim não acontecia. Que bichinho te mordeu?
— Hummmm! Você gostou da surpresa? Eu não sei, de repente me deu uma vontade louca de ter você em meus braços. Eu senti uma sensação de felicidade, uma vontade de estar próxima de quem eu amo. Não sei explicar. Isso te incomodou?
— Caro que não. Eu adorei. E adoraria que isso voltasse a se repetir de outras vezes. Talvez, quem não goste sejam nossos vizinhos. Começamos a transar no meio da rua.
— Na porta de nossa casa. Nossos vizinhos não têm nada com isso. Por falar em nossa casa, veja esses espelhos que eu comprei. Venha até aqui e vou te mostrar.
Jezebel ainda nua, levantou-se da cama, me puxou pelo braço e me levou até um quarto que estávamos utilizando como uma dispensa para colocar os materiais a serem empregados na decoração da casa.
— Meu Deus, que quantidade de espelhos? Pra quê isso?
— São sete espelhos amor e cada um tem sua função.
— Como assim? Todo espelho é igual. Serve para refletir uma imagem. Qual outro significado isso pode ter?
Jezebel olhou para mim e começou a rir, desdenhando de minha ignorância, quanto à função dos espelhos.
— Tolinho. Vou te explicar. Preste bem atenção em cada um destes espelhos. Sob o ponto de vista do formato eles são todos iguais, mas, cada um carrega um significado e esse significado tem origem nos Essênios.
— Essênios? Quem são essas pessoas?
Jezebel riu mais uma vez, tanto de minha ignorância sobre os tais Essênios, quanto por estar nu e com meu órgão genital em sono profundo.
— Vá tomar um banho e vista uma roupa. Esse pintinho aí nem parece o mesmo de alguns minutos atrás. Aliás, vamos tomar banho e eu explico o que são os Essênios.
Jezebel continuava rindo, enquanto me olhava, deixando-me desconcertado, mas, procurei manter a minha postura de macho após o coito, totalmente passivo.
— Me conta essa estória de Essênios. Eu fiquei curioso.
— Bem amor, os Essênios constituíam um grupo ou seita judaica ascética que teve existência desde mais ou menos o ano 150 a.C. até o ano 70 d.C. Estavam relacionados com outros grupos religioso-políticos, como os saduceus. O nome essênio provém do termo sírio Asaya, e do aramaico Essaya ou Essenoí, todos com o significado de médico; passa por Orum do grego e, finalmente, por Esseni do latim. Também se aceita a forma Esseniano.
— Hum! E daí? Onde você aprendeu isso?
— Eu pesquisei. Sou arquiteta e decoradora. Eu estudo história. Os essênios nos deixaram uma linda análise dos relacionamentos humanos. Eles separaram em sete categorias o modo como nos relacionamos no curso de nossa vida. Sabiamente eles denominaram essas categorias como “espelhos”. Cada momento de vida em nossa realidade interior se espelha nas ações, nas escolhas e na linguagem das pessoas que estão ao nosso redor. Clica no google e você vai encontrar.
— Certo, mas para que sete espelhos?
— Justamente por isso, cada fase de nossa vida e nossos relacionamentos nos remete a um tipo de comportamento. Por exemplo, eu e você estamos em nosso momento presente com muita felicidade e é isso que nós refletimos em nosso comportamento. Por isso te recebi daquela maneira e você me retribuiu do mesmo modo. Nós refletimos o que está no primeiro espelho. Se nós estivéssemos com raiva um do outro, o nosso comportamento seria diferente. Esse primeiro espelho eu vou colocar em nosso quarto.
— Meu Deus, quanta maluquice. E os outros seis espelhos?
Enquanto ela dava sua aula sobre Essênios saímos do banheiro, nos vestimos e colocamos o primeiro espelho na parede.
— Este aqui é o segundo espelho, ele é mais sutil e diz sobre os nossos julgamentos no momento presente. Este espelho eu vou colocar na sala de visitas, pois, ele reflete algo que nos machuca ou tem grande carga emocional para nós. Pode ser algo que fizemos no passado e que não perdoamos. Quando julgamos alguém com grande força emocional, estamos, mais provavelmente, julgando a nós mesmos.
— E porque na sala de visitas?
— Pelo fato de recebermos pessoas e julgarmos essas pessoas, como se estivéssemos julgando a nós mesmos. Nossos vizinhos devem estar nos julgando por terem visto a gente transando na rua, em frente a nossa casa.
— Isso é verdade. Devem estar nos julgando mesmo. E o que vai acontecer com eles?
— Vai depender do tipo de julgamento. Mas, veja esse terceiro espelho. Refere-se àquela sensação quando olhamos nos olhos de alguém e nos sentimos atraídos por ela; algo mágico acontece e queremos passar o maior tempo possível com esta pessoa.
— E onde você quer colocar esse?
— Pois é, amor. Eu ainda não sei. Estou em dúvida. Vou deixá-lo aqui por enquanto. Talvez, no futuro, possa vir a ser o quarto de nosso filho. Não pensamos sobre isso ainda.
— E o quarto espelho? Essa conversa está ficando estranha demais para mim.
— Este reflete nosso amor mais esquecido. Esse amor poderia ser uma forma de vida, ou uma relação inacabada que se perdeu. Pode ser também uma vida passada, onde foi feita uma conclusão equivocada de uma situação. Vou colocá-lo no corredor, em cima deste aparador aqui.
— Só me falta aparecer fantasma aqui de agora em diante, por causa deste espelho.
— Psss! Não fale isso. As paredes ouvem.
— Meu Deus! Minha mulher está ficando maluca.
— Sério Papai? Pois este quinto espelho vai ficar no seu escritório. Ele reflete a mãe e o pai. Quando casamos temos nossos cônjuges como nossos pais. Você adora controlar tudo. Ele vai refletir você para você.
— Tá bom mamãe. Quero até ver o que vai virar essa brincadeira. E o sexto espelho? Não vai me dizer que vai ficar no banheiro de nossa suíte.
— Acertou querido. Parabéns! Ele representa nossos medos. Quando estamos inseguros é no espelho do banheiro que olhamos.
— Verdade! Faz sentido. Eu faço muito isso quando me sinto inseguro, quando tenho algum novo desafio na empresa. E o sétimo espelho? Este é bem grande.
— Sim. Este ficará no teto de nosso quarto, olhando para nós. Ele pede que acreditemos que qualquer experiência em nossa vida, é perfeita em si própria. Não importa o resultado, aqui somos convidados a não seguir os limites impostos pelos outros.
— Jezebel, sinceramente eu estou surpreso. De onde você tirou essas ideias, qual a finalidade disso? Você, de fato, acredita nessas coisas?
— Não sei. Algo me diz que devo acreditar.
Meses se passaram; havíamos concluído a decoração da casa e todos aqueles espelhos passaram a fazer parte de nossa rotina e, de certa forma, mal nos lembrávamos de todos aqueles significados apresentados de forma romântica e entusiasmada por Jezebel.
Na verdade, nem ela própria parecia ver ou perceber o mesmo sentido em toda aquela representação excêntrica, se é que posso assim dizer. Mal reparávamos, por exemplo, no enorme espelho instalado no teto de nosso quarto, refletindo nossa imagem, que até um tempo atrás servia de inspiração para nossas fantasias eróticas. O fato é que as coisas foram ficando monótonas.
Os meses foram passando e começamos a enfrentar dificuldades no trabalho. Estávamos perdendo clientes, nossa relação conjugal já não era das melhores e algumas brigas começaram a ocorrer por motivos de ciúmes, tanto de minha parte, como por parte de Jezebel.
Estávamos inseguros em nossa relação e isso parecia aumentar de intensidade, na medida que, de fato, passávamos a viver conflitos pessoais que se materializavam sob a forma de adultério.
Minhas viagens a trabalho eram marcadas por noitadas de prazer com acompanhantes, regadas a bebida e muita droga. Eu estava inebriado e cada vez mais mergulhado numa rotina de orgia e bebedeira com mulheres diversas, em cada cidade que eu visitava.
Em que pese todas essas coisas que me aconteciam, eu via tudo isso em Jezebel também. Eu passei a ter sonhos e pesadelos com ela me traindo e sendo disputada por diversos homens e até mulheres em orgias repletas de rituais místicos; e esses sonhos aconteciam até quando eu estava acordado. Eram visões que surgiam diante de meus olhos, sempre que eu me olhava no espelho.
Aconteceu que vi diante de mim, o espelhamento de uma cena terrível em que Jezebel era entregue aos braços de um ser meio humano, meio fera, um animal selvagem, ou alguma figura sobrenatural, que se assemelhava a um lobo, com suas garras gigantescas a se apoderar do corpo de Jezebel que urrava em gritos de prazer.
Era tudo diante de meus olhos, sob os aplausos de vizinhos que assistiam a tudo e aplaudiam, aguardando a sua vez de terem Jezebel em seus braços. Homens e mulheres, velhos e jovens, brancos e negros, todos ali, em plena orgia e eu nada podia fazer.
Eu apenas gritava o nome dela e ela olhava para mim e sorria; e ao mesmo tempo que sorria, zombava de mim, apontando para o meu pênis diminuto, encolhido. Zombavam de mim também, todos aqueles vizinhos que também riam, enquanto aguardavam a sua vez, no banquete erótico do qual Jezebel era o prato principal e o mais desejado.
Em meu momento de terror, eu apenas gritava para que Jezebel me ouvisse e saísse daquela orgia, mas, quanto mais eu gritava, mais ela ria e se entregava àquela figura monstruosa, parecida com um lobisomem, sob os aplausos dos vizinhos que se deliciavam entre eles, homens, mulheres, jovens, velhos, brancos, negros, se beijando, se agarrando e transando entre si.
O inferno havia se instalado em minha casa e estava à frente de meus olhos, em imagens projetadas pelo espelho, o sexto espelho que parecia ter se multiplicado em três, ou três vezes o sexto espelho, representado pela marca da besta, 666, esmaecendo e surgindo repetidamente, como se bombardeasse a minha mente, com todas aquelas visões de terror, sobretudo, a da figura demoníaca, se lançando em estocadas sobre Jezebel, que apenas ria e urrava de prazer, olhando para mim, rindo e zombando de meu pênis diminuto, assim como faziam todos os vizinhos em orgia interminável.
Eu olhei para mim e vi meu corpo nu; a imagem dele e de meu pênis diminuto se refletiam no sexto espelho, multiplicado por três, cada um deles estampando o número 666.
Em um sentimento de muita raiva e ódio eu esmurrei o espelho à minha frente, quebrando-o e fazendo jorrar o sangue de minha mão.
Corri até o quarto para pegar alguma coisa que pudesse estancar o sangue, mas dei de cara com o primeiro espelho que refletiu todo o meu ódio e me energizou com toda a raiva que eu poderia acumular; e eu me servi de tudo quanto era objeto à minha frente para golpear todos os espelhos e quebrar um por um. E assim eu fui quebrando os espelhos da casa até chegar à sala.
Na sala de visitas, munido com um taco de beisebol, quebrei o segundo espelho, espatifando-o e fazendo com que os vizinhos que participavam daquela orgia, juntamente com o lobisomem, fossem destruídos. Foi como se eu tivesse jogado uma bomba em cada um deles. Desapareceram em segundos.
Mas, me dei conta também, o meu golpe no segundo espelho, eu acertei em cheio a cabeça de Jezebel, espatifando seu crânio. Após aquele instante não havia mais espelhos. Todos haviam sido destruídos pela minha ira e ódio. Não havia mais lobisomem, não havia mais vizinhos em orgia, não havia mais Jezebel.
Jezebel estava morta por meu ataque de fúria. Olhei para ela, caída ao chão com o crânio espatifado. Eu estava nu, com o corpo banhado em sangue.
Eu ajoelhei junto ao corpo de Jezebel, abracei o seu corpo ainda quente e com algumas convulsões de sua agonia mortal, acariciei o seu rosto, completamente ensanguentado e desfigurado pelo golpe que recebera, beijei a sua boca e gritei chorando, desesperado, por ter matado Jezebel.
Algumas horas depois, viaturas da polícia, bombeiros e veículos de imprensa se aglomeravam em frente à minha casa.
Eu me rendi sem dizer uma palavra. Fui conduzido até o carro, enquanto ouvia os vizinhos dizerem palavrões, me chamarem de assassino, de monstro e de demônio.
Jornalistas tentaram se aproximar de mim, me fizeram perguntas diversas, sobre qual o motivo me levara a cometer aquela selvageria. Eu nada disse. Apenas abaixei minha cabeça e segui até a viatura, com minhas mãos algemadas, escoltado por dois policiais.
Ao chegar na delegacia foram feitos os exames de praxe. Rasparam minha cabeça, me deram um uniforme do presídio para vestir e me levaram até uma cela; uma pequena cela individual, com um banheiro bem minúsculo.
Eu me banhei na água gelada, usando um pequeno pedaço de sabão. Cobri a minha mão que estava com um corte profundo, para não molhar o curativo que havia sido feito pelos paramédicos, ainda na minha casa. Chegaram a fazer uma sutura de uns quinze pontos. Estava doendo muito.
Terminei de tomar meu banho gelado e me enxuguei em uma toalha surrada que lá estava; me aproximei de um pequeno espelho, pouco acima de uma pia que serviria para lavar o rosto e as mãos ou me barbear e escovar os dentes.
Vi minha imagem refletida no espelho. Havia uma pasta de dente, já quase no fim, sobre a pia. Peguei a pasta de dente, coloquei um pouco em meu dedo indicador da mão que estava ferida e que sangrava um pouco.
Misturei aquele pouco de pasta dentária com meu sangue e fiz uma pequena inscrição no espelho: 666.