1 - DAVID
Dois anos atrás...
Sentindo minhas mãos suarem e meu coração pesar a cada passo, rogo para ser um terrível engano, algum trote de um desalmado qualquer. A sirene da ambulância entorpece meus sentidos, dificultando um pensamento lógico e tenho que me dividir entre ignorar o barulho agoniante e continuar abrindo caminho. No entanto, o aglomerado de pessoas continua impedindo minha passagem, fazendo com que eu tome a atitude drástica e desesperada de sair empurrando até chegar o local do acidente.
Caídos sobre a BR-33, que liga São Vicente à Arapuna, estão os corpos sem vida da minha mulher e filho, preciso piscar algumas vezes para acreditar no que meus olhos me mostram. Tendo a certeza de que não é um terrível pesadelo.
Uma dor imensurável toma-me a alma e um rugido alto deixa minha garganta, chamando a atenção dos curiosos. Ignoro os olhares penosos que começam a me dar e chego mais perto do meu filho e esposa, ignorando os avisos do policial pego meu primogênito nos braços, sentindo sua pele já fria coberta de sangue. Olho na direção do carro que minha mulher dirigia, os amassados indicam a intensidade do acidente e meus olhos ardem, cada parte do meu corpo parecendo ser perfurado por milhares de pequenas agulhas, a raiva e indignação sendo agora misturadas com dor. De imediato, já procuro pelo outro veículo, encontrando a BMW X6 prata não tão longe e tão acabada quanto o celta que Lígia dirigia. Busco o rosto do causador da minha desgraça, desejando poder fazer com que sinta o mesmo. O homem está praticamente intacto, apresentando desorientação enquanto conversa com o policial, tendo apenas um curativo na testa e arranhões pelo resto do corpo.
Raiva me toma, fazendo minha visão escurecer. Largo o corpo de Luís Miguel e corro na direção do homem, ainda não sei com precisão o que aconteceu, mas existem burburinhos sobre o infeliz está alcoolizado.
Porra, minha família morreu e o desgraçado só sofreu escoriações.
Isso não está acontecendo!
Não é justo.
Avanço pra cima do infeliz, agarrando seu pescoço com minhas duas mãos e apertando forte, sentindo sua pele esquentar. Ele se debate, tentando me empurrar para longe.
— Senhor, o solte. — O policial fala, me puxando para longe do desgraçado, pedindo ajuda para o parceiro.
— Me solta. — Grito, sentindo uma força descomunal crescer dentro de mim.
Desvencilho-me do policial e pulo de volta para o pescoço do desgraçado, o homem está massageando a área que estava sobre meu aperto quando nota minha aproximação e tenta fugir, mas o agarro pelo braço e por trás, tento lhe aplicar um mata leão.
— Por Deus... — Ouço um policial murmurar, olhando—me como se eu fosse de outro planeta.
Eles não entendem. Não podem entender a dor de um homem que acabou de perder seus bens mais preciosos, a única família que ele tinha devido à irresponsabilidade de outra pessoa.
Eu sempre fui passivo, adepto a resolver problemas com diálogos e nunca com violência. Minha profissão sempre exigiu paciência e autocontrole, afinal eu lido com muitas crianças rebeldes. Mas nesse momento, senhor, eu só quero matar esse desgraçado e depois acabar com a minha vida.
Me encontrar com Lígia e Luís Miguel no outro plano.
— Puxa ele! — Alguém grita.
Sinto dois braços masculinos me cercarem por trás, agarrando minha cintura com força e puxando. Outro policial tenta tirar minhas mãos sobre o homem, mas estou botando muita força para eles conseguirem, mais homens chegam e me levam para longe.
— Sinto muito, senhor. Foi um acidente. — Um deles murmura e o olho, notando a compreensão e empatia em seus olhos.
— Um acidente que custou a vida da minha família. — Rosno, sentindo minha garganta queimar ao dizer tais palavras em voz alta.
Ele abaixa a cabeça, me guiando para perto de outros homens, mas estes vestem roupas de socorristas.
— O desgraçado está bêbado! — Falo para o policial que ainda está ao meu lado, me escoltando como se eu fosse a porra de um bandido.
Minha cabeça está doendo, latejando por culpa desse maldito pesadelo.
Ele não diz nada por um tempo, parando de repente, me fazendo cessar a caminhada junto. O olho intrigado, então sua mão esquerda vem para o meu ombro, apertando fraco e dentre de alguns segundos ele está me abraçando.
— Ele vai pagar. — Sussurra, ainda me mantendo entre seus braços, e, só então, percebo o quanto precisava desse gesto.
Meu choro volta com tudo, meus ombros caindo cansados.
E tudo que eu consigo pensar é que não será suficiente, não importa quantos anos o infeliz fique na cadeia, no fim da noite, quando eu chegar em casa depois de um dia difícil no trabalho, estarei sozinho envolta da mesa, afundando na minha miséria e solidão, sentindo falta dos dias em que tinha meu filho e minha esposa comigo.
Nada pode trazê-los de volta.
Nada.
O policial me solta, voltando a apertar meu ombro e apontando com a cabeça para onde os socorristas se encontram.
— Eles precisam que você libere os corpos. Tem algum outro familiar que possa te ajudar?
Nego com a cabeça.
— Não, sou só eu agora. — Digo, sentindo um gosto amargo na boca.
Nós planejávamos ter outro filho.
Uma menina, para ser sincero.
Os olhos do policial, que agora percebo serem de um marrom quase preto me analisam.
— Você tem condições para lidar com isso? — Sua voz é calma, controlado, posso comparar com a que costumo usar com meus alunos.
— Eu vou cuidar disso. — Desvio meu olhar para onde se encontram os corpos deles, meu peito dói.
— Tudo bem. Vamos. — Ele me guia de volta para a caminhada, me apresentando para equipe de socorristas que ainda tentou salvar a vida do meu filho, ao que parece Luiz Miguel não morreu de imediato, mas sofreu uma hemorragia interna e não aguentou por muito tempo.
Engulo a seco, imaginando sua figura pálida e cheia de dor, sentindo a vida lhe deixar aos poucos.
PORRA!
Meu filho era tão jovem.
Estou apenas balançando a cabeça para as informações que estão sendo me dadas, ainda esperando acordar e perceber que foi apenas um sonho ruim.
— Senhor? — Encaro a mulher, os braços estendendo uma porrada de papéis.
O que é?
Foda-se! Não quero saber.
— O senhor precisa assinar aqui e aqui. — Ela aponta, mostrando as linhas negras alinhadas.
Assinto, assinando os documentos com uma rubrica. Ela se afasta, me dando um sorriso de pesar antes de partir de vez.
Os corpos são levados. As pessoas gradualmente vão se dissipando, daqui posso ver o exato momento que o desgraçado do motorista que matou minha família é levado de viatura e ao contrário do que imaginei, vê—lo algemado não me traz nenhuma satisfação.
O policial que me abraçou, vem até mim novamente, pergunta se eu preciso que alguém me leve pra casa, tudo que faço é balançar a cabeça em negativo, desejando que todos me deixem finalmente sozinhos. Ele me fala que os corpos serão liberados amanhã e a funerária vai cuidar de todo o processo, ele mesmo ligou para pedir por isso.
Agradeço, sabendo que eu não teria forças para cuidar dessa parte.
Alguns minutos depois ele também vai embora, pedindo para eu fazer o mesmo.
Mas eu não vou, apenas fico encostado no meu próprio carro, não conseguindo desviar os olhos do sangue no chão, sabendo que não tem nada para mim em casa ou em qualquer outro lugar.
Minha vida acabou hoje, com a deles.